Acórdão nº 11570/19.0T8PRT.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 14 de Outubro de 2021

Magistrado ResponsávelFERNANDO BAPTISTA
Data da Resolução14 de Outubro de 2021
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

I – RELATÓRIO AA intentou contra BB e “Partilha Palavra, Lda.” a presente acção declarativa condenatória, com processo comum.

Pede: - seja reconhecida a anulabilidade do contrato-promessa celebrado em 25 de junho de 2018 e o seu aditamento; - os Réus sejam condenados a devolver a quantia de €190.000,00 entregue a título de sinal, acrescida de juros vencidos e vincendos.

Para tanto, alegou, em síntese, que é um cidadão estrangeiro e pretendeu comprar um imóvel para fazer investimento em alojamento local. O agente imobiliário sugeriu a compra de um imóvel onde já funcionava alojamento local e que seria necessário fazer um registo na Câmara Municipal para mudança de designação do espaço como armazém mas seria algo muito simples, sem problema. Com a assinatura do contrato-promessa de compra e venda foi paga a mencionada quantia a título de sinal. Através da avaliação do banco para concessão de empréstimo bancário, o Autor tomou conhecimento de que o alojamento local não estava legalizado e que o imóvel, destinado a armazém e atividades industriais, não pode ser alterado para aquele fim. O preço do prédio justifica-se apenas pela possibilidade do alojamento local e não sendo um mero armazém, avaliado em € 120.000,00. Se tivesse conhecimento destes factos previamente à assinatura do contrato-promessa nunca o teria celebrado.

A 1.ª Ré contestou alegando que, desde a primeira hora, exigiu garantias pela imobiliária de que o possível comprador estava ciente que o imóvel, apesar das obras, estava licenciado para armazém com problemas de humidades, tendo transmitido essa situação pessoalmente ao Autor aquando da visita ao imóvel. Esgotado o prazo para realização da escritura, por motivo imputável ao Autor, resolveu o contrato-promessa em início de novembro.

Contestou também a 2.º Ré declarando, em resumo, que foi expressamente referido ao Autor que o espaço em causa apenas estava licenciado como armazém, pelo que era necessário avançar como pedido de alteração da licença para habitação. Forneceu todas as informações solicitadas e remeteu, em inglês, uma versão do contrato-promessa de compra e venda. O motivo pelo qual o negócio não foi concretizado foi por falta de verbas do Autor.

O Autor respondeu.

Proferiu-se sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré do pedido.

Inconformado com a sentença, o Autor interpôs recurso de apelação, vindo a Relação do Porto, em acórdão, a proferir a seguinte “V—DECISÃO Pelo exposto, acordam as Juízas que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso, e em consequência, declaram a anulação do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre as partes e condenam a Ré a devolver ao Autor a quantia de €190.000,00 acrescida dos juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, desde a citação até integral e efectivo pagamento, mantendo o demais decidido sobre a 2.ª Ré.” Agora inconformada a Ré/Recorrida BB, vem interior recurso de revista, apresentando alegações que remata com as seguintes CONCLUSÕES: I. O Autor, em 24.05.2019, intentou a presente acção requerendo a anulação do contrato promessa de compra e venda de imóvel, celebrado com a Ré em 25.06.2018, em virtude de, segundo aquele, o armazém (imóvel) adquirido não puder ser licenciado para um destino diferente (de armazém), tal como lhe tinha sido garantido. Efectivamente, na sua PI o Autor declara ter sido advertido que estava a adquirir um armazém, porém, segundo aquele, foi-lhe transmitido por um qualquer mediador imobiliário que “...também seria necessário fazer um registo na Câmara Municipal para mudança de designação do espaço como armazém, mas seria algo muito simples, sem qualquer problema.” (cfr. art. 10º da PI) II. Mais alega que quer o banco avaliador, quer um arquitecto seu contratado lhe disseram que “...o imóvel destina-se a fins industriais e o seu uso não podia ser alterado…” e que “… a construção está legalizada como armazém e que, no caso concreto, a licença de mudança de uso nunca seria aprovada pela Câmara Municipal ..... Havia desconformidade com o Regulamento Geral das Edificações Urbanas.” e “Quanto muito teria de demolir tudo e fazer uma nova construção.” (Cfr. Arts. 30º, 31º e 32º da PI) Concluindo o Autor, na sua PI, que “O imóvel não tinha as características essenciais que ele tinha exigido, e, como tal, o contrato tinha de ser dado sem efeito.” pois “Se o Autor tivesse conhecimento destes factos previamente à assinatura do contrato promessa, nunca o teria celebrado.” (cfr. Arts. 36º e 37º da PI). Esta é a causa de pedir e a anulação do contrato promessa é o pedido do Autor plasmado na sua PI.

III. Pelo que sem surpresa os temas da prova, na parte que interessa para o presente recurso e para a boa decisão do presente pleito, foram os seguintes: I. Haver um erro do Autor na emissão da declaração de promessa de compra e venda, conhecendo a Ré a essencialidade do elemento sobre o qual incidiu o erra; II. Estar o Autor esclarecido quanto à afectação do uso do imóvel.

III. Ter o Autor sido induzido em erro quanto à afectação do imóvel.

IV. Ser o uso do imóvel para alojamento local determinante para a vontade do Autor o vir a adquirir.

V . (…).

Ou seja, o cerne da presente acção, e o que aqui está em causa, é conhecer se o imóvel objecto do contrato promessa era susceptível de ter uma afectação diferente daque tinha aquando da sua celebração, importando saber se o armazém, licenciadocomo tal, podia ser licenciado como habitação para eventual exploração comoalojamento local. Não se alegando nem tão pouco aflorando, em momento algum,qual a tipologia ou o número de unidades de alojamento pretendidos pelo Autor…Eisto porque o que estava em causa era saber se o Autor tinha sido induzido em erroquanto à afectação do uso do imóvel, nomeadamente se o imóvel podia, ou não, ser licenciado como habitação.

IV No entanto, para grande surpresa da Ré, vem o Tribunal da Relação sustentar o seu Acórdão num suposto erro-vício na vontade negocial do Autor relativamente à tipologia do imóvel. Com efeito, diz-nos o ponto II do sumário do Acórdão que: “II. O comprador que, na visita prévia realizada ao imóvel juntamente com as informações obtidas (essenciais na formação da sua vontade de comprar) recepcionou um espaço onde estava a ser explorado um alojamento temporário para turistas, com seis quartos, quando, na realidade, não possuía licença municipal que autorizava essa actividade e principalmente não é possível obter licença de utilização para habitação de um T6 mas apenas de um T1, formou, com erro vício, a sua vontade negociar, causado por dolo omissivo.” V Essa essencialidade da tipologia – conceito e matéria sobre a qual nos debruçaremos adiante –, apesar de abordada em sede de audiência de julgamento, não foi articulada pelo Autor como fundamento da sua pretensão e por isso não foi sujeita ao contraditório da Ré.

Não tendo sido a Ré confrontada com esse facto de modo a que lhe fosse possível tomar uma posição processual sobre o mesmo, pelo que, com essa decisão, o Acórdão ora recorrido violou grosseiramente o estipulado no Artigo 5o n° 2 do CPC.

VI. Não desconhecendo a Ré os poderes de cognição do tribunal plasmados nesse preceito e a amplitude que lhe foi dada por via das sucessivas reformas do C.P.C., tais poderes não são ilimitados! Efectivamente dispõe a alínea b) do nº2 do Artigo 5º do C.P.C. que: “Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juíz: (…) b) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles se tenham tido a possibilidade de se pronunciar…” Ora, no nosso entendimento, e na esteira daquilo que vem sendo preconizado pela doutrina e jurisprudência maioritárias, o Acórdão de que se recorre violou o preceito legal supra referido por duas ordens de razão, a saber; a) uma razão de substância, uma vez que os factos de que lançou mão, para estribar a sua decisão (e como tal essenciais), não são meramente complementares dos que foram alegados. A tipologia do imóvel e a sua essencialidade para o negócio, tal como é configurado no Acórdão de que se recorre, terá de ser necessariamente considerado um facto essencial tout court, já que, por si só, implica uma alteração da causa de pedir (ou pelo menos uma ampliação da causa de pedir) que não aquela que suporta o pedido formulado pelo Autor na PI e demais articulados, o que aliás é cabalmente demonstrado se atentarmos nos supra referidos temas da prova fixados e que balizaram as traves mestras do processo.

VII. E b) uma razão de forma, na medida em que, ainda que se entendesse que estávamos perante um facto complementar, o que não se aceita, sempre teria de ser observado o estipulado na parte final do supra referido Artigo 5º, nº2 b) do C.P.C., que nos diz expressamente que, nesses casos tem de ser concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem, o que não sucedeu in casu! A Ré viu-se assim coartada no seu direito de exercer o contraditório, vendo-lhe negado o direito de exercer a sua defesa quanto a determinados factos, que, pasme-se, vieram a ser considerados pelo Tribunal da Relação como decisivos para a decisão da causa. A este respeito se debruçou cristalinamente o Acórdão da Relação do Porto de 30.04.2015 no processo 5800/13.9TBMTS.P1 - 3ªSec: “I - Para puder levar em consideração factos que resultem da instrução da causa e sejam instrumentais, complementares ou concretizares do que as partes alegaram, o tribunal tem de dar previamente às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a atendibilidade desses factos. II - Dar às partes a possibilidade de se pronunciarem pressupõe, cumulativamente, que: i) o tribunal anuncie, antes do encerramento da audiência, que está a equacionar usar esse mecanismo de ampliação da matéria de facto; ii) a parte que beneficiará desses factos manifesta a concordância ou vontade de que esses factos sejam considerados pelo tribunal; iii) se permita à parte...

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