Acórdão nº 771/21 de Tribunal Constitucional (Port, 01 de Outubro de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Fernando Vaz Ventura
Data da Resolução01 de Outubro de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 771/2021

Processo n.º 563/2021

2.ª Secção

Relator: Conselheiro Fernando Ventura

Acordam, em conferência, na 2.ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Vem o recorrente A. reclamar, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, da decisão sumária n.º 476/2021, que decidiu não conhecer do recurso de constitucionalidade que interpôs, ao abrigo da alínea b) do nº1 do artigo 70.º da LTC.

2. O presente recurso inscreve-se em processo criminal, no âmbito do qual, por via do acórdão recorrido, foi negado provimento ao recurso interposto pelo aqui recorrente, e mantida a sua condenação pela prática, na forma consumada, de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p. e p. pelo artigo 165.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 6 anos de prisão e na pena acessória de suspensão de funções por igual período, nos termos do disposto no artigo 67.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, bem como no pagamento de indemnização.

3. O arguido interpôs então o presente recurso para o Tribunal Constitucional, através de requerimento onde enuncia a pretensão de ver apreciada «a inconstitucionalidade da interpretação normativa do artigo 165.º. números 1 e 2 do Código Penal e artigos 125.º e 127.º do Código de Processo Penal (doravante "CPP") segundo a qual o preenchimento do tipo objetivo e subjetivo do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, ali supra previsto, far-se-á por remissão a prova indireta, sem necessidade de apreciação e ponderação prévia da prova direta existente nos autos in casu a falta de credibilidade das declarações da assistente face à prova existente nos autos; a deficiente desconsideração das conclusões das perícias e dos consequentes esclarecimentos das peritas). Tudo em clara violação dos princípios de distribuição do ónus da prova, princípio in dúbio pro reo in dúbio pro libertate, prerrogativas constitucionais de natureza garantística consignadas no artigo 32.º, número 2, 1.a parte da Constituição da República Portuguesa (doravante "CRP")».

4. A decisão sumária reclamada afastou o conhecimento do recurso, com os seguintes fundamentos:

«5. No sistema jurídico-constitucional português, os recursos de fiscalização concreta, pese embora incidam sobre decisões dos tribunais, conformam-se como recursos normativos, ou seja, visam a apreciação da conformidade de normas ou interpretações normativas, e não das decisões judiciais, em si mesmas consideradas. Como tem sido reiteradamente salientado, não incumbe ao Tribunal Constitucional apreciar os factos materiais da causa, definir a correta conformação da lide ou determinar a melhor interpretação do direito ordinário, sendo a sua cognição circunscrita à questão normativa que lhe é colocada. Assim, por imperativo do artigo 280.º da Constituição, objeto do recurso (em sentido material) são exclusiva e necessariamente normas jurídicas, tomadas com o sentido que a decisão recorrida lhes tenha conferido, sem que caiba ao Tribunal Constitucional sindicar a atuação dos demais tribunais, a partir da direta imputação de violação da Constituição - mormente no plano dos direitos fundamentais - por tais decisões.

6. No caso, o modo como foi fixado o objeto do presente recurso, no respetivo requerimento de interposição, demonstra, à evidência, que a questão apresentada não comporta verdadeiro questionamento normativo, dirigido a controlar a conformidade de um ato do poder normativo com parâmetros constitucionais; trata-se, antes, de procurar neste Tribunal uma nova instância de controlo do mérito da decisão judicial, em si mesma, mormente no tocante à valoração da prova produzida e ao resultado aplicativo – condenação - atingido no caso concreto.

Assim decorre, desde logo, da formulação adotada, que corresponde a construção de acordo com o juízo subjetivo e crítico que o recorrente faz decorrer do sentido da decisão proferida, e da problematização inscrita no requerimento, inteiramente assente na discordância do recorrente sobre a atividade judicial de apreciação e valoração da específica prova dos autos, concretamente e na sua ótica, ao “desconsider[ar] completamente toda a prova direta (e demais prova) existente nos autos (…)”, visando confrontar o entendimento que diz ter sido aplicado com o que entende ser “a única interpretação do artigo 165.º, números 1 e 2 do Código Penal, e 125.º e 127.º do CPP, consentida pelo artigo 32.º, n.º 2, 1.a parte da CRP”. No mesmo sentido depõe o remate do recorrente, ao sustentar que “a douta decisão do Tribunal da Relação, baseada na interpretação normativa já suficientemente veiculada, ao negar provimento ao recurso interposto, mantendo no mais a decisão recorrida, violou o artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte da CRP”.

Trata-se, com evidência, da colocação de uma questão de legalidade, comportando uma crítica ao próprio ato de julgamento, que se tem como errado face aos parâmetros contidos no direito ordinário e às circunstâncias do caso, ainda que mobilizando argumentos fundados em princípios com assento constitucional. Ora, não cabe a este Tribunal sindicar a própria decisão judicial, mais precisamente o juízo de valoração da prova produzida, enquanto ponderação concreta e casuística das circunstâncias próprias e específicas do caso concreto, e a operação subsuntiva levada a cabo pelo tribunal a quo, pese embora o apelo a princípios constitucionais.

Tanto basta para se concluir, in casu, pela inidoneidade do objeto conferido ao recurso e afastar o respetivo conhecimento.

7. Acrescente-se que, ainda que assim não fosse, sempre haveria que concluir pelo não conhecimento do recurso de constitucionalidade, em virtude de não assistir legitimidade ao recorrente, por não ter suscitado perante o tribunal recorrido, de forma processualmente adequada, uma qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea a ser conhecida (artigos 70.º, n.º 1, al. b), e 72.º, n.º 2, ambos da LTC). Com efeito, se atentarmos na motivação do recurso dirigido ao tribunal a quo, em especial as conclusões LIV e LV, verifica-se que, de igual modo, a crítica de inconstitucionalidade é dirigida, não a um efetivo critério normativo de decisão, mas ao ato de julgamento em si mesmo considerado.

8. Resta, pois, concluir pelo não conhecimento do objeto do recurso de constitucionalidade, o que justifica a prolação da presente decisão sumária (artigo 78º-A, nº 1, da LTC).»

3. Na extensa peça de reclamação, sobre os pressupostos de admissibilidade do recurso, alega-se como segue:

«I - Questão da inidoneidade do objeto do recurso

26. Como antes vimos, o indeferimento sumário do recurso assenta no entendimento que a censura que o recorrente dirige ao acórdão da Relação de Évora não tem a ver com uma dimensão inconstitucional de uma interpretação normativa feita por aquela instância, mas sim com uma crítica ao ato de julgamento por errada valoração da prova ainda que estribada na invocação de princípios constitucionais.

27. Nestes termos o recurso não se fundaria numa interpretação normativa contrária à constituição, mas apenas pretenderia com uma invocação formal de argumentos de inconstitucionalidade encontrar nesta instância um grau de recurso a que sabe não ter direito, pelo que o recurso não comporta um verdadeiro questionamento de constitucionalidade.

28. Não podia ser mais errado o entendimento da decisão sumária reclamada.

29. O que o recorrente argumenta é que, a forma como o tribunal valorou a prova comporta uma dimensão interpretativa (no sentido de atribuição de um conteúdo útil à norma) dos preceitos processuais ao abrigo dos quais é apreciação da prova recolhida em julgamento, é contrária a um princípio constitucional.

30. Concretamente, argumenta o reclamante que a decisão recorrida só pôde formular um juízo de culpabilidade porque a forma como valorou a prova, balizada pelos princípios processuais da legalidade da prova e da livre interpretação da prova violou os limites que são impostos pelos princípios in dúbio pro reo e in dúbio pro libertate, constitucionalmente consagrados pelo n.º 2, 1.ª parte, do artigo 32.º da CRP.

31. Portanto, ao recorrer de forma indiscriminada à prova indireta, ao dar prevalência a determinados meios de prova (declarações da ofendida) em detrimento de outros (declarações do arguido e das testemunhas que corroboram aquelas), sem adiantar justificação racional para tanto, ao aceitar uma conclusão de facto (que a penetração ocorreu com preservativo) não...

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