Acórdão nº 1126/19.2T9STC.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 21 de Setembro de 2021

Magistrado ResponsávelJO
Data da Resolução21 de Setembro de 2021
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - RELATÓRIO

No Processo Sumaríssimo nº 1126/19.2T9STC, do Juízo Local Criminal de Santiago do Cacém (Juiz 1), o Ministério Público requereu a aplicação de uma pena (não privativa de liberdade) à arguida MLCCB, imputando-lhe a prática de um crime de difamação agravada, previsto e punido pelos artigos 180º, nº 1, 183º, nº 1, als. a) e b), e 184º, todos do Código Penal

Através de despacho judicial, o Tribunal rejeitou o requerimento apresentado pelo Ministério Público para aplicação de pena em processo sumaríssimo, por entender que os factos descritos não consubstanciam qualquer crime

Inconformado com tal decisão, interpôs recurso o Ministério Público, extraindo da motivação as seguintes (transcritas) conclusões: “I - No caso presente, a falta de elementos constitutivos do crime de difamação agravada não resulta do texto do requerimento apresentado pelo Ministério Público

II - No requerimento do Ministério Público descreve-se uma conduta da arguida que configura, em abstrato, um ilícito criminal

III - Destarte, não era de rejeitar o requerimento do Ministério Público com fundamento em que os factos aí descritos e imputados à arguida não integram a prática de ilícito criminal, pois tal não resulta do texto do requerimento apresentado pelo Ministério Publico

IV - Ou seja, existindo despacho que decida de modo diverso do previsto nas diferentes alíneas do nº 3 do artigo 311º do C.P.P. (como é o caso do despacho recorrido), não existe fundamento razoável para concluir que o recurso não deva ser admissível, já que isso comportaria restrição excessiva da garantia ao recurso, desde logo, porque teria como consequência que o processo não pudesse vir a prosseguir mesmo que sob outra forma processual, o que o legislador não terá querido

V - Como tal, ao abrigo do disposto no artigo 399º do CPP, este recurso deve ser admitido, dado que este versa sobre despacho cuja irrecorribilidade não resulta da lei

VI - Neste sentido, v.d. douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, nº 75/18.6 PFPRT.P1, de 11-04-2019, e o douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora, nº 35/10.5PESTB.E1, de 31-5-2011, acessíveis na base de dados do ITIJ

VII - O MP considera que o despacho recorrido, ao rejeitar a acusação que descreve factos jurídico-penalmente relevantes, e ao determinar o arquivamento do processo, violou o disposto no artigo 395°, nº 1, alínea b), e violou o artigo 311º, nº 3, alínea d), do Código de Processo Penal

VIII - Ao contrário do que ali foi considerado, o despacho de acusação contém todos os elementos de facto necessários ao preenchimento do tipo legal de crime, cuja prática nele vem imputada à arguida

IX - O fundamento da rejeição da acusação previsto na al. d) do nº 3 do artigo 311º do CPP (quando os factos descritos na acusação “não constituírem crime”) só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos, objetivos e subjetivos, de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa, seja devido a uma insuficiente descrição fáctica, seja porque a conduta imputada ao agente não tem relevância penal

X - É, no entanto, necessário, nesta fase processual de triagem, que os factos descritos não constituam inequivocamente crime, não bastando que assim seja entendido por uma das várias correntes seguidas pela doutrina ou jurisprudência

XI - Ou seja, só e apenas quando, de forma inequívoca, os factos que constam da acusação não constituem crime, é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la

XII - E os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra, de forma inequívoca, qualquer conduta tipificadora do crime imputado

XIII - Sublinhe-se que este juízo tem que assentar numa constatação, objetivamente inequívoca e incontroversa, da inexistência de factos que sustentam a imputação efetuada. Não se trata, nem se pode tratar, de um juízo sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja (cfr. Ac. da RC de 12/07/2011, proc. nº 66/11.8GAACB.C1)

XIV - No saneamento do processo (artigo 311º do CPP), só há lugar à rejeição da acusação se ela se revelar “manifestamente infundada” (nº 3), o que não abrange os casos em que a acusação trata questão juridicamente controversa (cfr. Ac. da RP de 13/07/2011, proc. nº 6622/10.4TDPRT.P1)

XV - Se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o juiz, no despacho do artigo 311º do CPP, não pode considerar a mesma (acusação) manifestamente improcedente (cfr. Ac. da RP de 11/07/2012, proc. nº 1087/11.6PCMTS.P1)

XVI - Assim, por exemplo, o juiz não pode rejeitar a acusação com base no disposto na al. d) do nº 3 («se os factos não constituírem crime») se a questão for discutível. Só o poderá fazer se for inequívoco e incontroverso que os factos não constituem crime (cfr. Vinício Ribeiro, “Código de Processo Penal - Notas e Comentários”, pág. 644)

XVII - E o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15 de outubro de 2013 (relatora Ana Barata Brito, disponível em www.dgsi.pt): “a margem de atuação do juiz de julgamento, no momento em que recebe a acusação, confina-se necessariamente ao enquadramento jurídico dos factos tidos como suficientemente pelo acusador público. Mas mesmo esta margem de conhecimento sobre a questão de direito, limitada à valoração jurídica da factualidade imputada pelo Ministério Público, não é irrestrita. Bem pelo contrário. Os poderes do juiz, sobre a acusação, antes do julgamento, são limitadíssimos”

XVIII - Assim, e levando em conta a estrutura acusatória do nosso processo penal, da qual decorre que compete ao acusador a iniciativa da definição do objeto da acusação, pensamos ser hoje indubitável que, no momento a que se refere o artigo 95º, nº 1, alínea b), e 311º, nº 3, do Código de Processo Penal, o juiz não pode decidir do mérito da acusação, por via da sindicância da avaliação da suficiência dos indícios efetuada pelo Ministério Público

XIX - Com efeito, a posição defendida no despacho recorrido sobre o mérito da causa, e que levou à rejeição da acusação, apresenta-se como altamente controversa, como o demonstra a jurisprudência de tribunais superiores em sentido oposto

XX - Aqui chegados, e não obstante a controvérsia doutrinal e jurisprudencial, independentemente da posição do tribunal a quo quanto à mesma, devia tal tribunal ter considerado que os factos imputados constituem crime

XXI - O que para nós temos como certo é que, sendo por demais sabido que não existe uniformidade na jurisprudência em torno desta questão - existem, ao invés, correntes divergentes -, e sendo ela crucial para aferir da relevância penal e subsunção jurídica dos factos cuja prática vem imputada à arguida na acusação, não é no momento da prolação do despacho de saneamento do processo que deve ser feita a opção por um dos entendimentos em confronto

XXII - E isto porque, perante os entendimentos divergentes, não é possível afirmar, para fundamentar a sua rejeição, que a acusação é manifestamente infundada - poderá eventualmente vir a ser julgada improcedente, o que é um efeito jurídico distinto da rejeição

XXIII - Motivo pelo qual o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que, considerando que os factos imputados constituem crime, proceda à apreciação dos requisitos de admissibilidade do prosseguimento dos autos sob a forma sumaríssima, com as legais consequências, que poderá passar pela sujeição da acusação ao debate público e contraditório do julgamento, resolvendo-se oportunamente a questão de facto e a questão de direito, na sentença, conforme pretende o Ministério Público

Nos termos vindos de expor, e nos mais de direito que, como sempre, mui doutamente suprirão, devem V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora: 1º - admitir o recurso, por o despacho do qual se recorre ser recorrível; 2º - julgar totalmente procedente o presente recurso e, por consequência, deverão revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que, considerando que os factos imputados constituem crime, proceda à apreciação dos requisitos de admissibilidade do prosseguimento dos autos sob a forma sumaríssima, com as legais consequências”

* O recurso foi admitido, e não foi apresentada qualquer resposta

Neste Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se pela improcedência do recurso (entendendo, em suma, como na decisão revidenda, que os factos em causa nos autos não integram a prática de qualquer crime)

Cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso

No presente caso, a única questão evidenciada no recurso, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem (nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal), consiste em saber se os factos narrados pelo Ministério Público integram, ou não, a prática de um crime de difamação

2 - A decisão recorrida

O despacho revidendo é do seguinte teor: “Estabelece o artigo 395.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, que o juiz rejeita o requerimento e reenvia o processo para outra forma que lhe caiba (…) quando o requerimento for manifestamente infundado, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 311.º; Acrescenta o n.º 3, na sua al. d) que a acusação considera-se manifestamente infundada (…) se os factos não constituírem crime

Nos presentes autos de sumaríssimo o Ministério Público acusa a arguida MLCCB da prática de um crime de difamação agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 1, alíneas a), e b), e 184.º do...

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