Acórdão nº 1207/18.0PBFAR.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 22 de Junho de 2021

Magistrado ResponsávelMOREIRA DAS NEVES
Data da Resolução22 de Junho de 2021
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I – Relatório a. No 3.º Juízo (1) Local Criminal de Faro, do Tribunal Judicial da comarca de Faro deram entrada os presentes autos, apresentados pelo Ministério Público, sendo distribuídos como processo comum, da competência do tribunal singular

No controlo liminar do processo, efetuado nos termos previstos no artigo 311.º do Código de Processo Penal (CPP), a Mm.a Juíza considerou que a acusação era manifestamente infundada, por nela se não conter a factualidade necessária ao preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito imputado ao arguido, razão pela qual, ao abrigo do disposto nas als. a) do § 2.º e b) do § 3.º do citado artigo 311.º, rejeitou a acusação, que considerou nula, em razão do que determinou o arquivamento dos autos. b. Inconformado com essa decisão dela vem o Ministério Público recorrer, finalizando a respetiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição): «1 – Recorre-se do despacho proferido pela Mmª Juiz “a quo”, que decidiu rejeitar o despacho de acusação proferido pelo MP com fundamento na alegada omissão da descrição do elemento da astúcia, e com fundamento em os factos descritos não constituírem crime, nos termos do disposto no art. 311º, nº2, al. a), e nº3, al. d), do C.P.P., bem como da decisão de arquivamento (após trânsito); 2 – O art. 283.º, n.º 3, al. b), do C.P.P. dispõe que a acusação contém, sob pena de nulidade, a descrição, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, grau de participação do agente e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; 3 – No despacho de acusação devem estar descritos os factos que integram o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime que é imputado; 4 – No despacho de acusação proferido nestes autos encontram-se devidamente descritos os elementos objetivos e subjetivos do crime de burla imputado ao arguido, estando descrito o negócio usado como forma de obter ganhos indevidos, bem como o engano através de astúcia (na parte do elemento subjetivo), e ganho patrimonial, de forma perfeitamente percetível ao arguido, nomeadamente, para exercício do seu direito de defesa, sendo o caso típico de burla através de anúncio na Internet; 5 - No despacho de acusação consta expressamente os factos que consubstanciam o erro ou engano astuciosamente provocado, a saber, o anúncio feito através da Internet sobre a venda do produto (não resultando apenas a descrição de um mero incumprimento contratual), não se exigindo a indicação de que o arguido, no momento ou em momento anterior ao da publicação do anúncio, já teria formulado a resolução de se apoderar das quantias monetárias de terceiro; 6 - Com efeito, e apesar de nalgumas vezes, tal constar nos despachos de acusação dos crimes de burla, tal circunstância não consiste na descrição de um facto objetivo, mas, sim, integrada na intenção e vontade subjetiva do agente de crime (ou seja, na descrição dos elementos subjetivos), cuja conclusão se retira da análise conjunta da prova feita em julgamento, nomeadamente, em face da conduta do arguido antes, durante e/ou depois da celebração do negócio; 7 - O que se exige, na descrição dos factos dos elementos integradores do crime de burla, é a descrição do negócio e a indicação de que o arguido agiu com a intenção de obter benefícios pecuniários de forma que sabia não ser legítima, através de pagamentos na sequência da criação de aparência de negócio, ou seja, através de erro ou engano por factos astuciosamente provocados; 8 - Ou seja, a exigência que a Mmª Juiz “a quo” parece defender, quanto à exigência de descrição da astúcia, não se situa, ao contrário do que defende, na descrição dos elementos objetivos, mas, sim, na descrição dos elementos subjetivos do agente, quanto à intenção, que, no caso dos autos, se encontra descrito na acusação, sendo que a sua subsunção em sede de julgamento se fará em face da prova que vier a ser produzida; 9 - Deste modo, rejeitar o despacho de acusação com esse fundamento não só viola o disposto no art. 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do C.P.P., como viola o princípio do acusatório, já que antecipa o próprio mérito do despacho de acusação antes da produção de prova; 10 – Pois uma coisa é concluir que não estão descritos os elementos objetivos e subjetivos do crime que se imputa; outra coisa, bem diversa, é achar que determinadas condutas deveriam estar mais concretizadas para melhor decisão, antecipando a produção de prova e o próprio mérito da acusação, e violando, desta forma, o princípio do acusatório; 11 – Confunde, assim, no nosso entender, a Mmª Juiz “a quo”, a falta de descrição dos elementos objetivos e subjetivos do crime, ou com os factos descritos não integrarem a prática de crime (que, manifestamente, não ocorre, no caso), com a sua discordância como os factos se encontram descritos, nomeadamente, quanto a maior concretização da conduta, que, a entender-se relevante em sede de julgamento, deverá ser considerada através do mecanismo previsto no art. 358.º, do C.P.P. 12. E muito menos se mostra admissível fundamentar que os factos descritos não integram a prática de crime com fundamento na alegada omissão, nos termos do disposto no art. 311º, n.º 3, al. d), do C.P.P., estando tal hipótese reservada aos casos em que os factos descritos não integram, de forma evidente, a prática de qualquer crime (sendo que a alínea a ser considerada, face aos fundamentos do despacho de rejeição de acusação, seria a al. b), ou seja, a falta de narração de factos); 13. Deste modo, e também por homenagem ao princípio do acusatório, a lei processual penal é extremamente exigente (bem como, acertadamente, a jurisprudência dos tribunais superiores) quanto aos casos em que o despacho de acusação deve ser rejeitado, reservado aos casos em que a acusação se mostra manifestamente infundada, nos termos do disposto no art. 311.º, n.º 2, al. a), do C.P.P., sendo que esses casos se encontra descritos nas alíneas a) a d), do nº3, do mesmo artigo, consistindo em lacunas evidentes (a saber, falta de identificação do arguido, falta de narração dos factos, falta de indicação das disposições legais aplicáveis, ou quando os factos descritos não constituem a prática de qualquer crime); 14. Concluímos, assim, que não só os fundamentos do despacho que se submete a apreciação não integram a previsão do art. 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do C.P.P., como viola o princípio do acusatório; 15. O despacho proferido pela Mmª Juiz “a quo” que se submete a apreciação, que decidiu rejeitar o despacho de acusação deduzida pelo Ministério Público, viola o disposto no art. 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do C.P.P. – o que expressamente se alega, para efeitos do disposto no art. 412.º, n.º 2, al. a), do C.P.P - bem como o princípio do acusatório, pelo que se entende que deverá ser revogado e substituído por despacho que decida admitir o despacho de acusação proferido, com os ulteriores termos processuais subsequentes; 16. Sem prejuízo, e na hipótese de tal despacho transitar em julgado, entende o Ministério Público, nesta instância, que não poderá a Mmª Juiz “a quo” determinar o arquivamento do processo, já que tal decisão forma apenas caso julgado formal e não conhece do mérito da acusação (não tendo o processo chegado à sequer à fase de julgamento), nada obstando à reformulação de nova acusação, pelo que deverão ser os autos devolvidos ao Ministério Público, enquanto titular do inquérito e da ação penal, pelo que se entende que, também nesta parte, deverá o despacho ser revogado.» c) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu entendimento no sentido da procedência do recurso

d) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, veio o arguido manifestar a sua integral concordância com o teor do despacho judicial sob impugnação, sustentando não deverem ser atendidas as razões do parecer, nem ser concedido provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, devendo, antes, manter-se a decisão do tribunal a quo de rejeição da acusação e do consequente arquivamento dos autos

Colhidos os vistos, teve lugar a conferência

II – Fundamentação 1. Delimitação do objeto do recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (2)

Sendo as questões a examinar, neste caso, as seguintes: i) A acusação deduzida pelo Ministério Público é manifestamente infundada ou apenas deficiente; ii) A decisão de rejeição da acusação, por manifestamente infundada, constitui caso julgado material ou apenas caso julgado formal

  1. O despacho recorrido A Mm.a Juíza a quem os autos foram distribuídos para julgamento proferiu o seguinte despacho liminar (311.º CPP): «O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia. O Ministério Público tem legitimidade para o exercício da ação penal. Ressalvado o quadro de apreciação que segue, o processo mostra-se isento de nulidades que o invalidem totalmente, inexistindo outras exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer

    * Registe e autue como processo comum, com intervenção do Tribunal Singular. * A fls. 156 a 158 o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido CALD, imputando-lhe a prática de um crime de burla, p. e p. pelo art. 217.º, 1, do Código Penal. Estriba tal imputação na seguinte (transcrita) factualidade: (…) De harmonia com o estabelecido no n.º 1 do art. 217.º do Código Penal, “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de...

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