Acórdão nº 341/21 de Tribunal Constitucional (Port, 27 de Maio de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução27 de Maio de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 341/2021

Processo n.º 998/2020

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam, em conferência, na 3.ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público e B., S.A., foi interposto o presente recurso, ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10 de julho de 2019.

2. Pela Decisão Sumária n.º 725/2020, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objecto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:

«3. Segundo o disposto nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 280.º, da Constituição da, e nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 70.º, da LTC, o recurso para o Tribunal Constitucional tem sempre normas por objeto, «identificando-se assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso» (v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98).

O recorrente enuncia da seguinte forma o objeto do recurso: «norma interpretativa criada pelo Tribunal da Relação e decorrente da leitura extraída naquele acórdão recorrido do conjugadamente disposto nos arts. 127º e 428º do CPP, e a partir da qual, nesse acórdão recorrido, vem afirmada a impossibilidade prática de recurso e do pleno conhecimento da impugnação da decisão respeitante à matéria de facto, designadamente, quando a págs. 32, 33, 34 do acórdão recorrido, o TRP afirma a sua opção de recusar a reapreciação da prova gravada e a sua opção de total adesão à convicção e decisão respeitante à matéria de facto proferida na 1ª instancia».

Por outras palavras, o objeto do recurso consiste, nesta parte, numa determinada interpretação que o Tribunal da Relação terá dado aos artigos 127.º e 428.º do Código de Processo Penal e que, no juízo do recorrente, se consubstancia num obstáculo à possibilidade prática de recurso que vise impugnar a decisão sobre a matéria de facto, dado que o Tribunal recorrido afirma a sua opção de recusar a reapreciação da prova gravada e de total adesão à convicção e decisão do Tribunal de 1.ª instância.

Sucede que tal forma de colocar a questão obsta à possibilidade de se conhecer do objeto do recurso, na medida em que o mesmo é destituído de natureza normativa.

Desde logo, deve notar-se que o recorrente não chega a enunciar o conteúdo da interpretação que terá sido conferida pelo Tribunal da Relação aos artigos 127.º e 428.º do Código de Processo Penal, limitando-se a dizer que dela resulta uma impossibilidade prática de se obter uma reapreciação da decisão sobre a matéria de facto. Tendo o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade por objeto uma norma, ainda que extraída de vários preceitos legais, incumbe ao recorrente enunciá-la, não bastando a remissão para a decisão recorrida ou a descrição das consequências da sua aplicação.

Na verdade, a circunstância de o recorrente delimitar o objeto do recurso por referência às consequências da aplicação de determinada norma é bem reveladora de que a questão que pretende ver apreciada não se prende com a conformidade constitucional de uma determinada norma, mas de uma decisão judicial: no caso vertente, a decisão de não reexaminar a matéria de facto e os meios de prova indicados pelo recorrente. Tanto assim é que o recorrente se refere sempre à decisão do Tribunal a quo como «recusando o cumprimento da obrigação de proceder ao reexame da matéria de facto e apreciar de forma completa, autónoma os concretos fundamentos da impugnação relativo à prova testemunhal e documental indicada pelo arguido […]», o que evidencia que não se trata da aplicação de uma norma inconstitucional, mas da inobservância de um dever legal e constitucional de reapreciação efetiva da matéria de facto.

Vale isto por dizer que o objeto do recurso é inidóneo, dizendo respeito, não à desconformidade constitucional da lei, tal como a mesma foi interpretada na decisão recorrida, mas à ilegalidade e inconstitucionalidade desta.

4. Ainda quanto a esta norma, o recorrente funda também o recurso na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.

Constitui requisito do recurso interposto ao abrigo deste preceito a aplicação, pela decisão recorrida, de norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional. Tal requisito que não se pode dar por verificado no presente recurso, justificando-se, também nesta vertente, a prolação da presente decisão sumária (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC).

O recorrente invoca o Acórdão n.º 116/2017 para fundamentar a admissibilidade do seu recurso. Em tal aresto decidiu-se, «julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 428º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2ª instância se limite a afirmar que os dados objetivos indicados na fundamentação da sentença objeto de recurso foram colhidos na prova produzida, transcrita nos autos

Em primeiro lugar, também no caso da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC se exige que o recurso tenha por objeto uma norma, o que se viu não suceder e que, por isso, logo implicaria a sua inadmissibilidade. Acresce que o recurso fundado na alínea g) não se basta com a analogia de situações, antes pressupondo identidade da normativa. No caso vertente, tal não sucede: nem quanto aos preceitos legais dos quais as normas se extraem, nem quanto ao respetivo conteúdo.

Face ao exposto, resta concluir pela impossibilidade de conhecimento desta parte do objeto do recurso, justificando-se a prolação da presente decisão sumária, segundo o previsto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.

5. O recorrente pretende também a apreciação da constitucionalidade da «norma interpretativa criada no Acórdão proferido no TRP a partir do estipulado nos arts.118º nº3, 126ºnº3, 188º nº9, 189º e 190º do CPP e que o leva a qualificar como mera nulidade relativa, em vez de proibição probatória absoluta, a valoração de prova proibida, feita no Tribunal “a quo” aquando da prolação da Sentença recorrida, quando na elaboração da sentença proferida em 1ª instancia, tomou em boa conta, valorou positivamente e estribou a sua fundamentação em meros “comentários” e “opiniões” expressas por escrito pelos senhores peritos que, fora da fase da sua investigação e inquérito e já na fase de julgamento, sem para tal estarem mandatados por decisão judicial, se introduziram e acederam a correspondência eletrónica muito anterior ao ano de 2013 e, por isso, muito anterior ao período temporal balizado e fixado na acusação pública, passando a extrapolar para a frente e a descontextualizar correspondência dos anos de 2007, 2008, 2009 e 2010».

Este enunciado evidencia que está em causa uma divergência sobre o juízo de qualificação que o Tribunal a quo fez sobre a natureza do vício que atingiria determinados meios de prova ou meios de aquisição probatória. O Tribunal recorrido entendeu que se trataria de uma nulidade relativa, contrariamente ao recorrente, que entende estarmos perante uma proibição absoluta de prova e consequente valoração de prova proibida. Em substância, o recorrente não aponta nenhuma inconstitucionalidade a norma extraída dos artigos 118.º, n.º 3, 126.º, n.º 3, 188.º, n.º 9, 189.º e 190.º, todos do Código de Processo Penal; o que contesta é o acerto do juízo que o Tribunal a quo fez sobre o enquadramento da realidade em litígio no âmbito das nulidades processuais relativas e não no âmbito das proibições absolutas de prova.

Sucede que a formação da premissa menor do chamado silogismo judiciário é uma operação reservada à justiça comum, não podendo ser sindicada no recurso de constitucionalidade. O que pode ser objeto de recurso de constitucionalidade é a norma legal eventualmente implicada na qualificação jurídica dos factos, ou seja, a interpretação da lei pressuposta pela subsunção de um caso no seu âmbito de aplicação. Só que para isso cabia ao recorrente o ónus de enunciar tal norma, e a verdade é que não o fez, antes deslocando o objeto do recurso para o momento, logicamente subsequente, da determinação da premissa menor, respeitante à qualificação jurídica dos factos. Fica assim por saber qual é a norma aplicada na decisão recorrida – qual é o conteúdo da interpretação dos artigos 118.º, n.º 3, 126.º, n.º 3, 188.º, n.º 9, 189.º e 190.º, todos do Código de Processo Penal −, único objeto idóneo de recurso de constitucionalidade. Ora, o recorrente não pode pretender que seja o Tribunal Constitucional a identificar esse conteúdo normativo, porque é seu o ónus de delimitar o objeto do recurso.

Assim, também neste segmento se não pode tomar conhecimento do objeto do recurso, justificando-se a prolação da presente decisão sumária, segundo o previsto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.

6. Vale a pena acrescentar, com relevância para os segmentos do presente recurso fundados na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, que o recurso sempre seria julgado inadmissível por não ter o recorrente suscitado as inconstitucionalidades invocadas no requerimento de interposição em momento prévio à prolação da decisão recorrida – o acórdão de 10 de julho de 2019, do Tribunal da Relação do Porto. Com efeito, só o fez na motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, de resto, nunca chegou a ser admitido.

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