Acórdão nº 86/20.1T90FR-A.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 07 de Abril de 2021

Magistrado ResponsávelISABEL VALONGO
Data da Resolução07 de Abril de 2021
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra: 1 — RELATÓRIO 1. 1. - A Magistrada do Ministério Público veio interpor recurso da decisão proferida pelo Juiz de Instrução no processo de inquérito n.º nº 86/20.1T9OFR do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu - Juízo de Competência Genérica de Oliveira de Frades, que indeferiu a tomada de declarações para memória futura dos ofendidos M. e T..

1.2. - Inconformado com essa decisão, veio o Ministério Público interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação, com as seguintes Conclusões (que se transcrevem): “1. O Ministério Público, a 22 de Outubro de 2020, promoveu, ao abrigo do disposto no artigo 33.°, n.º 1, da Lei 112/2009, de 16.9, e do artigo 271.°, n.º 1, do Código de Processo Penal, a realização de diligência de tomada de Declarações para Memória Futura aos ofendidos M. e a T., visando que as mesmas pudessem ter valor probatório em julgamento, porquanto nos presentes autos se denuncia a prática, por L. e R., de factos suscetíveis de integrar o crime de violência doméstica, previsto e punido pelos artigos 13.°, 14.°, n. ° 1, 26.° e 152.°, n. ° 1, alínea d) e n.º 2, alínea a), todos do Código Penal.

  1. Decorre dos autos que os arguidos são, respectivamente, filhos e irmãos das vítimas M. e a T., tendo a primeira revelado que ela, bem como o seu filho T., eram vítimas de maus-tratos psíquicos por parte dos outros dois filhos, aqui arguidos, pois aqueles eram verbalmente agressivos, os insultavam e lhes exigiam dinheiro para a bebida e para o tabaco, levando a que o agregado passasse várias dificuldades.

  2. Por despacho proferido a 28.10.2020, de fls. 232 e 233, o Tribunal a quo indeferiu a promovida tomada de declarações para memória futura mas, ressalvando o devido e merecido respeito, fê-lo de forma com a qual não nos conformamos.

  3. Ora, de acordo com os artigos 33.º, n.º 1, da Lei 112/2009, de 16.9, e 24.°, n.º 1, da Lei do Estatuto da Vítima, o juiz pode proceder à inquirição das vítimas (e daquelas especialmente vulneráveis) no decurso do inquérito, a fim de que o seu depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

  4. M. e T. são vítimas especialmente vulneráveis, ao abrigo do artigo 67°-A, n.º 1, alínea b), e n.º 3, por referência ao disposto no artigo 1, alínea j), ambos do Código de Processo Penal, e do artigo 2°, alínea b), da Lei 112/2009, de 16.9.

  5. Admitindo o artigo 33.º, da Lei n.º 112/2009, de 16.9, que a vítima de violência doméstica possa prestar declarações para memória futura e não se sendo tal diligência obrigatória, importa considerar que, no caso dos autos, a proximidade física entre as vítimas e, pelo menos, um dos arguidos, as suas relações de parentesco e as condições de saúde das vítimas mostra necessária a requerida diligência, pelo que entendemos existirem razões que justificam, no caso em apreço, que se proceda à mesma.

  6. Consideramos que o legislador, ao estabelecer o regime especial previsto no referido artigo 33.º, mostrou-se sensível ao facto de a violência doméstica ser uma forma de criminalidade particularmente susceptível de causar graves e duradouras consequências para as suas vítimas, sendo a tomada de declarações para memória futura enquadrada como sendo uma das medidas de protecção destas vítimas no âmbito do processo penal.

  7. Acresce que, tratando-se de vítimas especialmente vulneráveis, mostra-se reforçada, salvo melhor entendimento, a possibilidade de prestação de declarações para memória futura.

  8. O doutro despacho recorrido indeferiu a realização da referida diligência estribando a sua fundamentação, em síntese, na circunstância de inexistir fundamento bastante para a pretendida diligência uma vez que, referindo-se à vitimização secundária, considerou ser inevitável o contacto das vítimas com o sistema judicial.

  9. Ora, sendo evidente que as mesmas sempre teriam de ter contacto com o sistema judicial, o que se pretende com a diligência requerida é, precisamente, que aquelas tenham o menor número de contactos possível, sendo esse o fundamento primacial para o requerido. A finalidade das declarações para memória futura é a de evitar a repetição de audição da vítima, protegê-la do perigo de revitimização e acautelar a genuinidade do seu depoimento em tempo útil, evitando, assim, que o mesmo possa olvidar-se dos factos, na sua plenitude, pese embora a natureza urgente dos autos.

  10. Refere ainda o despacho recorrido que “… a pertinência desta medida – da faculdade em apreço e promovida pelo MP – deve ser apreciada em concreto, sendo que, na ponderação dos interesses em confronto, deve ser dada particular atenção à natureza e gravidade do crime e às circunstâncias em que foi cometido e às características da vítima…”.

  11. No caso concreto, e não obstante a inexistência de agressões físicas e a circunstância de não estarmos perante a “clássica” violência entre “casal”, a verdade é que a fragilidade das vítimas (em função, essencialmente, dos seus problemas de saúde), as relações de parentesco existentes e o facto de as mesmas residirem com, pelo menos, um dos arguidos, aconselham a que se proceda à tomada de declarações para memória futura, conforme promovido, afigurando-se-nos de forte gravidade a criminalidade contra pais e irmãos, colocando em crise a “instituição” família.

  12. O indeferimento do pedido formulado pelo Ministério Público impede que as vítimas exerçam o seu direito a prestar antecipadamente declarações e de evitar a sua revitimização e, tratando-se de factos, em si mesmos, traumáticos, importa necessariamente minimizar o trauma associado.

  13. Não obstante resultar do despacho recorrido que a tomada de declarações para memória futura se trata de um mecanismo excepcional de produção de prova, não tem sido este o entendimento sufragado pelos nossos Tribunais quando se trate de tomada de declarações para memória futura a vítima especialmente vulnerável, entendimento que também acolhemos.

  14. Por fim, acresce que, nos termos do disposto nos artigos 53.°, n.º 2, alínea b), e 263°, n° 1, ambos do Código de Processo Penal, cabe ao Ministério Público a direção da acção penal, pelo que cabe a este decidir da tempestividade e oportunidade das diligências probatórias a realizar em sede de inquérito e bem assim decidir e promover da obtenção e conservação das provas indiciarias. E, em situações com os contornos descritos, a prestação de...

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