Acórdão nº 164/20 de Tribunal Constitucional (Port, 04 de Março de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução04 de Março de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 164/2020

Processo n.º 983/2019

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. A. (ora Recorrente) foi condenado, no Juízo Local Criminal de Coimbra e no âmbito do processo n.º 1128/16.0PCCBR, por sentença de 03/11/2017, pela prática de crimes de condução sem habilitação legal e recetação, na pena única de 230 dias de multa, à razão diária de €5,00, perfazendo um total de €1.150,00.

1.1. O condenado requereu a substituição da pena de multa por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas coletivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, nos termos do artigo 48.º, n.º 1, do Código Penal.

1.1.1. Por despacho de 25/01/2018, a pena foi substituída, conforme requerido, determinando-se o cumprimento de 229 horas de trabalho em instituição de solidariedade social.

Na sequência de notícias de incumprimento das horas de trabalho, das quais o condenado cumpriu apenas 3, por despacho de 30/04/2018 foi este notificado para contactar a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) para retomar as horas de trabalho em falta em outra instituição, sob pena de revogação da pena de substituição.

A. contactou a DGRSP, após o que esta entidade informou o tribunal de que o condenado “[preferia] proceder ao pagamento [da multa]”, pelo que o tribunal determinou a passagem de guias, com desconto de 3 horas de trabalho entretanto prestadas.

Passadas as guias, não foram pagas.

Por despacho de 23/10/2018, foi, então, revogada a pena de prestação de trabalho e determinado o cumprimento da pena de multa aplicada na sentença, sob pena de conversão da sanção em prisão subsidiária.

1.1.2. Notificado do despacho de 23/10/2018, A. apresentou um requerimento no qual, em síntese, afirmou que “em momento algum afirmou ser sua intenção pagar a multa”, invocou que “não foi observado o formalismo necessário (…) de audição do condenado na presença do técnico responsável, tal qual exige o disposto no artigo 498.º, n.º 3, ex vi artigo 495.º, n.os 2 e 3, do CPP” e arguiu a correspondente nulidade.

1.1.3. A nulidade foi indeferida por despacho de 11/01/2019.

1.2. O condenado interpôs, então, recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, invocando, inter alia, a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 498.º, n.º 3, do CPP na interpretação segundo a qual “a decisão de revogação da pena substitutiva de prestação de trabalho a favor da comunidade e consequente cumprimento da pena principal pode ser decidida pelo tribunal da condenação sem necessidade de observar o formalismo plasmado no artigo 495.º, n.º 2, do CPP, nomeadamente, a audição do condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza tal pena”.

1.2.1. Por acórdão de 10/07/2019, o Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso. Dos respetivos fundamentos consta, designadamente, o seguinte:

“[…]

[A] única questão a decidir no âmbito do presente recurso [traduz-se] em saber se nos casos em que, como no presente, a pena de multa aplicada foi substituída por trabalho, a eventual revogação desta substituição deve ser precedida da audição do condenado, nos termos delineados no CPP.

O recorrente afirma que sim, e comina de nulidade essa omissão e o MP, na sua resposta, pretende que não, pois que afirma que a prestação de trabalho aqui em causa não tem a natureza de uma pena de substituição.

Estão aqui em causa, para além das normas constitucionais referidas pelo recorrente, as normas dos artigos 48.º, n.os 1 e 2, do CP e 498.º, n.º 3, este do CPP.

À primeira Vista seriamos levados a concluir, como o faz o recorrente, que a omissão das formalidades previstas no artigo 495.º, n.º 2, do CPP, aqui aplicável ex vi do seu artigo 498.º, n.º 3, nos casos como o presente constituiria uma ilegalidade.

Dúvidas não existem de que, estando em causa a substituição de pena de prisão por trabalho (artigos 58.º, n.º 1, e 59.º, n.º 2, ambos do CP) a revogação dessa pena de substituição não pode ter lugar sem que previamente se cumpram as formalidades estabelecidas naquele artigo 495.º, n.º 2, do CPP (ex vi do seu artigo 498.º, n.º 3).

Será que nos casos em que, como no presente, a pena de prestação de trabalho resulta da substituição direta da pena de

multa (artigo 48.º, n.º 1, do CP), o regime adjetivo aplicável é o mesmo?

Cremos que a resposta a dar a tal questão não pode deixar de ser negativa.

Com efeito, pondo de lado a questão da natureza da pena de trabalho substituta direta da pena de multa (que contrariamente ao que defende o MP continuamos a entender constituir uma pena de substituição, como aliás resulta da epígrafe do artigo 48.º em análise), uma interpretação sistemática e lógica das normas em referência impõe a conclusão de que esse regime procedimental não tem aplicação ao caso.

Com efeito, nos casos em que o trabalho resulta da substituição direta de pena de multa, a remissão limitada operada pelo artigo 48.º, n.º 2, do CP quis afastar expressamente a aplicabilidade do regime que consta do artigo 59.º, n.º 2, do mesmo CP e, assim, o seu enquadramento processual que consta do artigo 495.º, n.os 2 e 3, do CPP, ex vi do seu artigo 498.º, n.º 3.

O legislador, ao estabelecer de forma expressa, no artigo 48.º, n.º 2, do CP que nestes casos era aplicável o disposto no artigo 59.º, n.º 1, do mesmo diploma, e não referindo a norma do seu n.º 2, da qual resulta o regime da revogação da pena de prestação de trabalho, quis afastar intencionalmente esse regime dos casos em que está em causa a aplicação dessa pena de substituição diretamente a uma pena de multa.

E, assim sendo, também não será aplicável aquele regime processual já referido.

Tal conclusão é fácil de entender se atentarmos em que o regime da pena de prestação de trabalho está pensado para os casos – regra – em que é aplicável pena de prisão (artigo 58.º, n.º 1, do CP); subsidiariamente, é aplicável aos casos em que a pena de multa deva ser cumprida mediante a prestação de trabalho, dentro dos limites apertados da remissão operada pela norma especial (artigo 48.º, n.º 2, do CP).

Se o legislador apenas opera a remissão limitadamente a parte do regime legal dessa pena de substituição, o intérprete deve concluir que aquele, nos limites da sapiência que o caracteriza,

(artigo 9.º, n.º 3, do C. Civil) quis expressamente afastar a aplicabilidade das demais normas específicas desse instituto não previstas na remissão.

Assim sendo, temos de concluir que no caso presente não se impunha a audição presencial do condenado, nos termos do disposto no artigo 495.º, n.º 2, do CPP. Não ocorre qualquer nulidade absoluta ou relativa ou qualquer irregularidade (v. artigos 119.º, 120.º e 123.º, todos do CPP).

O recorrente pretende que o teor do doc. de fls. 139 não se refere a qualquer declaração emitida e assinada por si, sem daí retirar uma concreta conclusão.

A esse propósito temos apenas a dizer que em parte alguma o teor da “informação” em causa (de fls. 139) foi valorada como outra coisa que não isso mesmo; aliás, na sequência, foi o arguido notificado para proceder ao «pagamento da multa», o que não fez.

A exigência constitucional do contraditório (artigo 32.º, n.º 5, da CRP) foi sempre observada ao longo do processo, na forma estabelecida na legislação ordinária. Aliás não se vislumbra em que medida se pode afirmar, como o faz o recorrente de forma inconsequente, que o despacho recorrido (único que agora está em causa) viola as normas dos artigos 13.º, n.º 2, 18.º, 32.º, n.º 1, 110.º, n.º 1, 202.º, n.os 1 e 2, 204.º e 205.º, todos da CRP).

Da mesma forma cremos que a interpretação que fazemos das normas aplicáveis, nos termos em que a expusemos, seja «disforme» à lei constitucional.

[…]” (sublinhados acrescentados).

1.3. O Recorrente interpôs, então, recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – recurso que deu origem aos presentes autos – tendo em vista um juízo de inconstitucionalidade relativamente à norma contida no artigo 498.º, n.º 3, do CPP na interpretação segundo a qual “a decisão de revogação da pena substitutiva de prestação de trabalho a favor da comunidade e consequente cumprimento da pena principal pode ser decidida pelo tribunal da condenação sem necessidade de observar o formalismo plasmado no artigo 495.º, n.º 2, do CPP, nomeadamente, a audição do condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza tal pena”.

1.3.1. O recurso foi admitido no Tribunal da Relação de Coimbra, com efeito suspensivo.

1.4. No Tribunal Constitucional, o relator proferiu a Decisão Sumária n.º 828/2019, no sentido do não conhecimento do objeto do recurso, com os fundamentos seguintes:

“[…]

Relembramos que o Recorrente indica como objeto do recurso a norma contida no artigo 498.º, n.º 3, do CPP na interpretação segundo a qual a decisão de revogação da pena substitutiva de prestação de trabalho a favor da comunidade e consequente cumprimento da pena principal pode ser decidida pelo tribunal da condenação sem necessidade de observar o formalismo plasmado no artigo 495.º, n.º 2, do CPP, nomeadamente, a audição do condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza tal pena (sublinhados acrescentados).

Do enunciado que o Recorrente apresenta decorreria que há um único regime de substituição da pena de prestação de trabalho, independentemente da natureza da pena principal. No entanto, toda a decisão recorrida (cfr. item 1.2.1., supra) foi estruturada sobre a consideração de que o regime da substituição daquela pena é diferente, conforme substitua a pena principal de prisão ou a pena principal de multa, sendo este último o caso dos autos. Esta precisão, fundamental para a decisão...

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