Acórdão nº 185/19.2ZFLSB-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 20 de Novembro de 2019

Magistrado ResponsávelRAUL BORGES
Data da Resolução20 de Novembro de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

AA, cidadã de nacionalidade …, arguida no inquérito n.º 185/19.2ZFLSB, que corre termos na … Secção do DIAP, com intervenção jurisdicional no Juízo de Instrução Criminal, Juiz …, Comarca de Lisboa, nascida em …-07-1988, presa preventivamente, desde 28 de Outubro de 2019, à ordem de tal processo, vem, em 12 de Novembro de 2019, em petição subscrita por Exmo. Advogado, invocando o disposto no artigo 31.º da Constituição Portuguesa e nos termos do preceituado no artigo 222.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, intentar providência de HABEAS CORPUS, nos termos e com os fundamentos seguintes (em transcrição integral): “1. - ENQUADRAMENTO 1° Seja permitido à peticionante referir desde logo que o seu processo encontra-se sujeito ao regime de segredo de justiça por se tratar, alegadamente, da prática indiciária de crimes graves e integradores do conceito de criminalidade altamente organizada.

Contudo, 2° Se a Defesa, no decurso da fase de investigação, tem que permanecer absolutamente silente, já não assim o Ministério Público ou o SEF que se têm pronunciado profusamente sobre a suposta matéria em apreço.

Assim, 3° Não obstante a arguida estar indiciada pela prática de crimes de auxílio à imigração ilegal e de associação para a prática de auxílio à imigração ilegal; 4º O Jornal “BB” informava publicamente que “Funcionária … fica em prisão preventiva por suspeita de tráfico de pessoas”, 5º Mais se referindo, na parte aqui relevante que “(...) detida pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) por suspeita de tráfico de seres humanos e auxílio à imigração ilegal ficou esta segunda-feira em prisão preventiva, disse à … fonte do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras”.

6° Mais refere o BB, na notícia em causa que “(...) O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras sublinha que, de “acordo com a análise de risco habitualmente efetuada pela Unidade de Identificação e Peritagem Documental do SEF”, e considerando o modo de atuação, esta situação foi encaminhada para a equipa de combate ao tráfico de seres humanos, que está no Aeroporto de Lisboa.” Do mesmo modo, 7º Já o Jornal online de “CC”, citando fontes do Ministério Público, elaborou a extensa notícia denominada “Este era o esquema da funcionária da … detida por auxílio à imigração” na qual, em síntese, se refere o seguinte (citação): 8° “(...) Os detalhes do esquema da arguida são agora divulgados pelo … de Lisboa em nota publicada na página da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa.

Segundo os indícios recolhidos, “a arguida planeou e colocou em prática um esquema que consistia em, com regularidade, facilitar a entrada e permanência de cidadãos estrangeiros, que não reúnem as devidas condições, no espaço europeu, fazendo-os transitar por diversos locais, incluindo Portugal”.

Para levar a cabo a operação, a arguida, de nacionalidade estrangeira, comprava passagens aéreas para um destino que não exigisse qualquer visto de entrada, com escala em Lisboa. Deste modo, os estrangeiros chegavam ao nosso país, apresentavam-se junto das autoridades sem documentos, pedindo proteção jurídica internacional, designadamente asilo (…)” 9° Também o Diário “DD” noticia o sucedido, com elementos verdadeiramente estranhos, até aí inacessíveis à Defesa e citando fontes oficiais, o que fez do seguinte modo: 10º Sob o título “SEF investiga 20 viagens a Lisboa feitas por funcionária da …”, o DD noticia: 11º “Funcionária de loja da … em … já tinha vindo 20 vezes a … antes de ser presa pelo SEF O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) investiga as 20 viagens a Lisboa feitas nos últimos dois anos pela mulher, de 31 anos e nacionalidade …, funcionária de uma loja … em … e que aguarda julgamento presa após ter sido apanhada a traficar duas mulheres e duas crianças.

Cada uma das deslocações feita pela suspeita, com visto de turista, durou no máximo dois dias. Com o apoio da sua congénere ..., o SEF procura perceber os motivos destas deslocações, acreditando que em pelo menos algumas ocasiões a mulher trouxe consigo vários imigrantes, para entrarem ilegalmente no espaço Schengen.

Entretanto, as mulheres de 27 e 31 anos, duas das quatro vítimas de tráfico humano salvas pelos inspetores do SEF, foram esta terça-feira interrogadas no … de ... (…)”.

12° Sem pretender ser maçador, cumpre referir que também a … revelou, segundo fontes da investigação, que “(...) em causa, estão os crimes de auxílio à imigração ilegal e de tráfico de seres humanos (...)” (cfr. do segundo 12 ao segundo 16).

13º E ainda que “(...) Quando confrontadas pelos inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, referiram que a documentação estava na posse da funcionária da … e acusaram-na de pertencer a uma rede de tráfico de seres humanos (…)”.

14º Já as supostas vítimas seriam duas pessoas de meia idade e duas crianças...

15º Por fim, também a televisão …, …, falou sobre o caso, citando fontes oficiais, para declarar, na sua emissão do noticiário “…” de 28 de Outubro do corrente (cfr. do minuto 11:35 até ao minuto 12:55) designadamente, que a arguida “estava em trânsito para …, … . E suspeita de tráfico de seres humanos e de auxílio à imigração ilegal (…)”.

16° Enfim, parece que todos podem falar, dizer o que lhes aprouver, exceto a Defesa e a aqui peticionante.

  1. - DOS FACTOS 16° (SIC) Em concreto, a peticionante é indiciariamente suspeita da prática de crimes de auxílio à imigração ilegal; e de associação para auxílio à imigração ilegal, ambos previstos em legislação avulsa de estrangeiros; mas jamais lhe foi imputado o crime de tráfico de seres humanos, previsto e punido pelo Código Penal Português.

    17º Efetivamente, a arguida e peticionante — que é funcionária da … em …, embora se achasse no gozo de curto período de férias – foi encontrada na posse de quatro passaportes que não lhe pertenciam.

    18° Perguntada sobre se queria depor, respondeu a todas as questões suscitadas, tendo nomeadamente referido que, a solicitação de um outro funcionário de uma empresa de segurança, tinha a mesma pegado nos ditos passaportes, para que os passageiros não os rasgassem ou inutilizassem, impedindo assim a sua posterior identificação e fazendo incorrer a … em pesadas multas, penalidades e na obrigação de pagar todas as despesas inerentes à instalação dos ditos 4 passageiros em Portugal.

    19º Embora a Defesa acredite na versão da peticionante porquanto quem conheça a lei de estrangeiros e os mecanismos de pedidos de asilo, como é o caso, bem sabe que são as companhias aéreas as mais prejudicadas e que os estrangeiros vêm normalmente sem qualquer documento de identificação pessoal (cfr. artigos 38° n° 3, 41°, números 1, 2 e 4; artigo 202° n° 4. artigo 203°, 204°, 207° e artigo 209° n° 3, todos da Lei de estrangeiros em vigor).

    20º A verdade é que não se sabe se, por detrás desta explicação verdadeira existiria — ou não — qualquer intuito da arguida (fosse para ganhar dinheiro ou por compaixão por pessoas africanas como ela própria) de auxiliar a imigração ilegal de pessoas sem direito a entrar no território nacional.

    21° Facto é que, pese embora a Defesa acredite na versão da arguida, na pior das hipóteses, cometeu a mesma nesta sede indiciária, “apenas” o ilícito de auxílio à imigração ilegal, o qual, não justifica a aplicação da medida de coação de prisão preventiva por implicar pena abstrata máxima inferior a cinco anos de prisão.

    22° Por conseguinte, a arguida, ora peticionante, encontra-se presa preventivamente de forma ilegal, ou seja, por factos que não comportam tal medida de coação.

    23° É verdade que o Ministério Público imputou também à aqui peticionante a prática de um crime de associação para auxílio à imigração ilegal. O qual, em abstrato, é punível com pena de prisão de um a seis anos e que, por isso, e em tese, admite a medida de prisão preventiva.

    24° De facto, nos escassos e insuficientes elementos dados a conhecer à peticionante, dizia-se que a mesma teria fundado ou dirigido uma associação destinada ao auxílio à imigração ilegal.

    25° Contudo, não foi a peticionante confrontada com quaisquer factos de onde seja legítimo depreender que a mesma tivesse fundado ou dirigisse a dita associação criminosa, o que foi alegado pela Defesa em momento próprio (requer-se a análise sumária do Douto Despacho que determinou a prisão preventiva, bem como da Douta promoção do Ministério Público e da pronúncia da Defesa).

    26° Daí que, já com a arguida fora da sala de audiências — à qual apenas voltou para lhe ser comunicada a medida de coação aplicada — tenha a Defesa alegado que a mesma não poderia ser objeto de uma medida de prisão preventiva, por inexistirem quaisquer elementos que a ligassem à fundação ou direção de associação tendente ao auxílio à imigração ilegal.

    27° Neste ponto, sempre com a arguida fora da sala, foi referido pelo Ministério Público — não sabe a Defesa se os elementos disponíveis sobre o processo foram alterados ou não em conformidade — alegou lapso, nomeadamente no número do artigo imputado a AA, para sustentar que a mesma seria punível, já não por fundar ou dirigir, mas por integrar associação de auxílio à imigração ilegal.

    28° Pois bem, do mesmo modo que a aqui peticionante não foi jamais confrontada com factos ou elementos de onde se pudesse extrair que a mesma tivesse criado ou dirigido a dita associação criminosa; 29° Também não foi a arguida confrontada, sequer, com factos de onde se extraísse a sua mera pertença a tal associação... sendo que a pertença é menos grave do que a criação ou direção de uma tal estrutura criminosa.

  2. - DO DIREITO 30º A lei não confunde as situações de “habeas corpus” com aqueloutras de mero recurso de decisão de aplicação de medida de coação 31° Assim, pode a medida de “habeas corpus” ser solicitada em situações de tal maneira graves e insuportáveis que se traduzam, designadamente, na aplicação de uma medida de coação de prisão preventiva a situações que a não comportam ou justificam.

    32° Tal ocorre nos presentes Autos em que, ainda que seja...

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