Acórdão nº 1736/15.9TYLSB.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 04 de Julho de 2019
Magistrado Responsável | HENRIQUE ARAÚJO |
Data da Resolução | 04 de Julho de 2019 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
PROC. N.º 1736/12.9TYLSB.L1.S1 REVISTA EXCEPCIONAL REL. 85[1] * ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. RELATÓRIO “AA, Lda.”, com sede no ... - ... - ..., Lisboa, que incorporou, por fusão a sociedade “BB, S.A.”, intentou contra CC, residente na Rua ..., Torre … - …, em Lisboa, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de 181.754,90 €, a título de indemnização por danos causados à sociedade BB, SA, enquanto seu administrador e accionista, por violação dos deveres de cuidado e lealdade a que estava adstrito.
O Réu deduziu contestação, tendo oposto, em síntese e para o que ora interessa, o seguinte: - Com a presente acção, a Autora faz tábua rasa do acordado no contrato celebrado em 27.04.2009, através do qual o Réu vendeu a participação de 49% que ainda detinha na BB, cuja cláusula 10ª, n.º 3, traduzida para a língua portuguesa, tem o seguinte sentido: “A ER, enquanto parte neste contrato e na qualidade de cessionária da posição contratual da DD no contrato inicial da compra de acções, e a BB, pelo presente libertam CC de todos os deveres e obrigações entre eles subsistentes nesta data, declarando ambas que nada mais têm a haver de CC, seja a que título for”; Depois de realizado o julgamento, foi proferida a sentença que julgou improcedente a acção, absolvendo o Réu do pedido.
No essencial foi entendido que a cláusula 10ª, n.º 3 do acordo celebrado entre as partes, no dia 27.04.2009, constituía um contrato de remissão abdicativa que, sendo válido, era causa extintiva da obrigação de indemnização que a Autora pretendia ver reconhecida na presente acção.
A Autora recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, mas veria o seu recurso ser julgado improcedente, por decisão unânime.
Ainda inconformada, interpôs recurso de revista excepcional, com fundamento na previsão das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672º do CPC.
A Formação admitiu a revista excepcional, com base no disposto na alínea a) do citado artigo.
As conclusões da revista da Autora são do seguinte teor: (…)[2] 25. (…) está em causa nos presente autos o teor literal da cláusula 10.3 do contrato celebrado entre as partes em 27 de Abril de 2009, aquando da saída do recorrido da BB, onde se lê: “A ER, enquanto parte neste contrato e na qualidade de cessionária da posição contratual da DD no contrato inicial da compra de acções, e a BB, pelo presente libertam CC de todos os deveres e obrigações entre eles subsistentes nesta data, declarando ambas as partes que nada mais têm a haver de CC, seja a que título for”.
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O teor literal da cláusula transcrita não especifica se o mesmo abrange ou não a relação de administração que existiu entre a recorrente e o recorrido.
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O tribunal a quo considerou que: “A declaração em causa abrangeu, expressamente, todos os deveres e obrigações que subsistissem naquela data, qualquer que fosse o título que lhes deu causa”.
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Ora, com base na vaguidade da literalidade da cláusula transcrita, o tribunal a quo conclui sem mais que houve uma remissão abdicativa por parte da recorrente, determinante da liberação do recorrido de toda e qualquer responsabilidade futura, máxime da que é pedida na acção.
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Mais alicerça sua convicção no facto do contrato ter sido celebrado em data posterior ao conhecimento pela recorrente do conteúdo de um e-mail anónimo (alertando para o facto de existirem trabalhadores na BB que estavam a trabalhar na empresa no seu próprio interesse e proveito) aderindo e transcrevendo sem mais a fundamentação do recorrido.
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Não poderia ter havido qualquer remissão abdicativa, atentas as circunstâncias subjacentes à saída do recorrido da BB e às suspeitas de que já era alvo após recepção do mencionado e-mail.
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Contrariamente à interpretação pelo tribunal a quo da mencionada cláusula, não há, relativamente às obrigações cuja violação são a causa de pedir nesta acção, qualquer remissão abdicativa.
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Não destacando a lei quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação, deverão ser havidas como tal todas aquelas que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz teria efectivamente considerado. Entre elas, salienta Vaz Serra, “os termos do negócio, os interesses nele compreendidos, o seu mais razoável tratamento, o objectivo do declarante, as negociações preliminares e os usos” (RLJ, Ano 111º, p. 120).
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Atento o contexto em que foi celebrado o contrato e considerado o seu conteúdo, desde logo em termos de literalidade, o mesmo não tinha em vista renunciar em concreto aos eventuais futuros direitos que a recorrente teria por violação dos deveres de cuidado, zelo e lealdade, que sobre o recorrido impendiam, nos termos do artigo 64º do CSC.
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Ora, no caso vertente, não resulta do contrato subscrito pelas partes que tenha sido vontade da recorrente renunciar sem mais a um qualquer direito de que entenda ser titular, mas liquidar contas com o recorrido no contexto da cessação dos seus vínculos contratuais/comerciais – foi APENAS essa a vontade real do recorrente.
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A recorrente abdicou de direitos emergentes de vínculos laborais, mas não da eventual possibilidade de ser ressarcida por ‘má gestão’ por parte do recorrido na sua qualidade de administrador da BB.
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De uma relação jurídica complexa podem emergir diversas relações conexas, razão pela qual, não se deverá ‘generalizar’ in casu que a remissão é aplicável a todas elas, pondo assim em causa as expectativas dos contraentes, i.e., da recorrente, como erradamente faz o douto acórdão recorrido.
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Em face do referido e à luz da factualidade apurada, o tribunal a quo ao interpretar como remissão abdicativa a cláusula 10.3. frustrou as expectativas jurídicas (legítimas) da recorrente bem como o princípio da tutela da confiança.
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A recorrente não emitiu qualquer declaração de remissão abdicativa relativamente à renúncia do recorrido, enquanto administrador da BB, fê-lo expressamente, e em detalhe, no que toca a outros vínculos existentes (laboral, accionista, compra e venda), 39. Se tivesse havido – como incorrectamente é considerado no douto acórdão recorrido –, as partes tê-lo-iam consignado de forma expressa, como fizeram com as restantes obrigações.
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Logo, não houve remissão abdicativa, nem faz sentido que houvesse, atentas as circunstâncias subjacentes à saída do recorrido da BB e aos resultados prejudiciais da sua conduta no que diz respeito aos rendimentos da empresa, o que tornou a recorrente a parte mais fraca da relação contratual, a qual não podia abdicar sem mais de todos os seus direitos.
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Nos termos do n.º 1 do artigo 72º do CSC, os administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres contratuais.
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Foi, pois, esse contexto particular de negociação, e face à longa antiguidade que ligava o recorrido à recorrente nas ditas funções de administrador e o seu ‘desleixo’ flagrante no desempenho das mesmas que nos permite concluir com segurança que a recorrente, face às circunstâncias em que se encontrava, do ambiente de desconfiança gerado em que se desenrolou o dito processo negocial, não podia nem aceitou prescindir dos eventuais direitos que tinha.
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A dita cláusula não pode prejudicar a recorrente ao ponto de ter de renunciar a vir futuramente interpor acção a reivindicar outros créditos que lhe são devidos por violação de deveres a que o recorrido estava adstrito enquanto administrador.
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A celebração do acordo teve apenas em vista uma perspectiva de pacificação e de finalização dos vínculos existentes – laboral, accionista, compra e venda – e foi quanto a estes que a recorrente emitiu uma real declaração de remissão abdicativa – apenas quanto a estes – já que, estes sim, foram expressamente plasmados.
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Entre os quais não se incluía a relação de administração.
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Por todo o exposto, e respeitando os fiéis limites da vontade real da recorrente e do circunstancialismo concreto, à luz do processo interpretativo que consagra a ‘teoria da impressão do destinatário’, acolhido no n.º 1 do artigo 236º do CC, leva a concluir que, relativamente às obrigações cuja violação é causa de pedir nos autos, não houve remissão por parte da recorrente.
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Não ocorrendo remissão abdicativa por parte da recorrente das obrigações do recorrido para com a BB, enquanto administrador desta, e tendo sido apurada uma grave violação dos deveres de vigilância e lealdade, determinante de prejuízos, o douto acórdão recorrido...
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