Acórdão nº 589/14.7T8PVZ.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 27 de Junho de 2019

Magistrado ResponsávelRAIMUNDO QUEIRÓS
Data da Resolução27 de Junho de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. Relatório No dia 30 de Dezembro de 2014, na Instância Central da Póvoa de Varzim, Comarca do Porto, AA, representado por BB e CC propôs acção declarativa comum contra a Companhia de Seguros DD, SA pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe o montante global de € 206.074,21, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, despesas e assistência de terceira pessoa.

Em síntese, para fundamentar as suas pretensões indemnizatórias contra a ré, alega que no dia 23 de Novembro de 2013, pelas 17h45, na Rua ........, ........, concelho de Matosinhos, quando atravessava aquela via numa passadeira, foi colhido pelo veículo de matrícula 00-00-00, conduzido por EE, a velocidade superior a sessenta quilómetros por hora, achando-se a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a intervenção daquele veículo transferida mediante contrato de seguro para a ré e resultando desse embate os danos que pretende ver indemnizados nestes autos.

Citada, a ré contestou admitindo a existência do contrato de seguro invocado pelo autor e impugnou a descrição do acidente feita na petição inicial, imputando a ocorrência do sinistro ao atravessamento inopinado da via pelo autor, em passo de corrida, fora de qualquer passadeira para peões, quando a menos de três metros do local do sinistro se achava uma, sem olhar para o trânsito, circulando o veículo PF a velocidade inferior a quarenta quilómetros por hora, verificando-se o embate na lateral esquerda do veículo, junto à porta do condutor, pugnando assim pela total improcedência da acção. Com data de 04 de Julho de 2018 foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo a ré dos pedidos que contra a mesma foram deduzidos.

Em 06 de Agosto de 2018, inconformado com a sentença, AA interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto.

Este Tribunal, por unanimidade e idêntica fundamentação, julgou o recurso totalmente improcedente e, em consequência, confirmou a decisão recorrida.

Deste acórdão veio o Autor interpor recurso de revista excepcional, por particular relevância jurídica e social, para este Supremo Tribunal, concluindo as suas alegações do seguinte modo: 1. O Acórdão recorrido julgou improcedente o recurso da matéria de facto, mantendo na íntegra o decidido em primeira instância (o que o recorrente não concorda) e, apreciando a aplicação da responsabilidade pelo risco próprio da condução de veículos, aplicou erradamente, as disposições relativas à exclusão da responsabilidade quando seja atribuída culpa exclusiva do lesado (que no caso, à data do acidente, era menor, com apenas 10 anos de idade).

  1. O acidente de viação, latu sensu, pode enquadrar-se quer na responsabilidade civil por factos ilícitos (extracontratual) pela clara violação de um direito de outrem – direito á integridade física e direito a vida -, quer na responsabilidade pelo risco por acidentes causados por veículos.

  2. Os casos semelhantes, que ocorrem nas estradas portuguesas e as decisões díspares, quer seja pela responsabilidade civil pelo risco (que só excepcionalmente é aplicada), quer seja pela extrema rigidez da interpretação da conduta dos lesados menores, conduzem a uma enorme necessidade de se resolver com carácter definitivo a matéria em causa (ou no mínimo conceder algumas linhas orientadoras).

  3. Na doutrina, numa tendência tradicionalista, Antunes Varela e Pires de Lima defendiam que, não poderia, no instituto da responsabilidade pelo risco, existir um concurso de culpas entre lesado e lesante, sendo certo que, a culpa do lesado excluiria automática e definitivamente a culpa do lesante, aplicando à letra o artº. 570º do CC.

  4. Já numa tendência progressista e atual, Brandão Proença, Calvão da Silva e Sinde Monteiro, reiteram o concurso de culpas entre lesante e lesado, concedendo uma perspectiva mais favorável ao lesado, tal como a 3ª Directiva Comunitária de 2002.

  5. A jurisprudência tem-se mantido presa à teoria tradicional, alicerçando-se e justificando a sua atuação até, com um reenvio prejudicial do Tribunal de Justiça da União Europeia, que veio deixar ao critério dos Estados-Membros a limitação ou exclusão da responsabilidade pelo risco do lesante consoante o lesado tenha ou não contribuído para a produção do acidente de viação.

  6. A exclusão da responsabilidade do lesante tem carácter exactamente excepcional, pelo que deveria ser precisamente aplicado nessa medida, e não como regra.

  7. Torna-se essencial dirimir a questão da exclusão da responsabilidade do lesante em detrimento da culpa (quase incontestável) do lesado considerando a crescente sinistralidade rodoviária.

  8. O tema em apreço reveste-se de extrema importância social (de modo a que, os representantes legais dos menores não sejam surpreendidos pelas decisões proferidas, com a culpa do lesado e irresponsabilidade do lesante) e importância jurídica, por ser um tema frequentemente julgado e decidido nos nossos Tribunais, mas estes, salvo melhor opinião, mantêm-se presos a doutrinas conservadoras, sem qualquer conexão com a sociedade atual.

  9. O Tribunal a quo não deveria ter decidido a culpa exclusiva do recorrente quando, pela aplicação dos critérios de um bom pai de família (artº. 487º, nº2 do CC), o condutor do veículo lesante agiu imprudentemente, pois o mesmo admitiu no seu depoimento que viu duas sombras a aproximarem-se da faixa de rodagem.

  10. O julgador não deverá somente afastar a responsabilidade do lesante, como se não fosse, essa mesma a sua posição perante os factos – de quem com dolo ou mera culpa violou o direito de outrem - e tratando-o como vítima.

  11. Deveria entender-se que, o lesante com a direcção efetiva de um veículo, estava obrigado a tomar medidas de precaução e cuidado, independentemente do local onde circulava e de quais as regras estradais ali impostas, por se encontrar na direcção de um objecto que por si só é perigoso.

  12. A contribuição do lesante deverá ser sempre ponderada, segundo as suas características pessoais, e não somente o seu estado de lesado, até porque, a culpa pressupõe a capacidade natural para prever os efeitos e medir o valor dos seus actos e que o agente agiu em desacordo com aquele juízo, pela sua capacidade intelectual e volitiva sabia que deveria agir de certo modo, mas agiu conscientemente de modo contrário.

  13. A actuação infeliz do recorrente, criança, não foi por si, idónea para a ocorrência do acidente e o veículo automóvel foi para tal indiferente, isto é o mesmo que, dizer que, o veículo não tem uma típica aptidão para a criação de riscos e que, em consequência, não contribuiu para o mesmo acidente, legalmente previsto no artº. 503º do CC.

  14. O condutor, cuja atuação pode ser apreciada segundo um bom pai de família, deveria ter tido um especial dever de cuidado, atenção, precaução e prudência, pois conhecia o local, apercebeu-se de duas crianças (duas sombrinhas de duas cabeças) com intenção de atravessar a faixa de rodagem, existia uma passadeira, tinha trânsito e estava num entroncamento e não podia ignorar a imprevisibilidade do comportamento das crianças, até porque se tratava de uma zona de edificações.

  15. O aresto do TJUE permitindo que os Estados-membros limitem ou excluam a indemnização quando haja culpa do lesado na produção do acidente, não revogou a 3ª Directiva Comunitária, analisada pelo TJUE no caso Elaine Farrell, e que é bem clara, quanto à limitação e exclusão da responsabilidade, impedindo que, um direito nacional exclua ou limite de modo desproporcionado a indemnização de um passageiro, pelo simples facto de ter contribuído para o evento lesivo.

  16. Os Tribunais nacionais estão a arrogar-se do cumprimento da decisão do TJUE de 2011 ao excluir as indemnizações aos lesados, sem ponderação nem proporcionalidade, como é exigida pela 3ª Diretiva Comunitária, salvo melhor entendimento.

  17. A interpretação do art.º 505.º do CC pela qual, a mera culpa ou mera contribuição do lesado para a produção do dano, exclua por completo a responsabilidade do condutor pelo risco, prevista no art.º 503º do CC, mesmo que não haja responsabilidade subjectiva, viola a 3ª Diretiva Comunitária de 2002.

  18. O Acórdão recorrido ao decidir como fez, violou o artº. 503º e 570º do CC, as regras impostas pela 3ª Directiva Comunitária de 2002 (que não foi revogada nem alterada pelo aresto do TJUE de 2011, como resulta do nosso modesto entendimento).

    A Ré não contra-alegou.

    II- Apreciação do Recurso Objecto do Recurso.

    Os autos foram submetidos à Formação a que alude o artº 672, nº 3 do CPC, a qual admitiu a revista excepcional.

    Questão Prévia No acórdão da formação de apreciação preliminar, aludido no precedente relatório, referiu-se que “(…) O A. veio interpor recurso de revista excecional invocando tanto o relevo social como o relevo jurídico da questão de direito essencial relacionada com a concorrência entre a culpa do lesado e o risco da circulação automóvel.

    Tal questão convoca normas de direito nacional e da União Europeia; por outro é suscitada num caso que emerge de um acidente de viação, em que interveio o A., que era menor.

    A matéria tem sido abordada em diversos acórdãos dos tribunais e até deste Supremo Tribunal de Justiça. Também já foi submetida ao Tribunal de Justiça da União Europeia que, em diversos...

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