Acórdão nº 413/06.4TATND.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 23 de Setembro de 2009

Magistrado ResponsávelJORGE DIAS
Data da Resolução23 de Setembro de 2009
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.

No processo supra identificado, foi proferido despacho, no qual se decidiu considerar descriminalizada a conduta dos arguidos e, em consequência, declarar extinto o procedimento criminal e, extinta a instância cível por inutilidade superveniente.

Inconformado, o Magistrado do Mº Pº apresenta recurso para esta Relação.

Na sua motivação, apresenta as seguintes conclusões, que delimitam o objecto do recurso.

1- Os argumentos aduzidos pelo Mm.º Juiz "a quo" não poderão, em circunstância alguma, fazer concluir por uma descriminalização das condutas por referência ao art. 2°, n.º 2 do Código Penal.

2- Os ilícitos contra a segurança social começaram a ter menor benevolência no tratamento sancionatório com a Lei n.º 60-A/2005, de 30/12, razão pela qual pelo que não surpreende que a Lei n." 64-A/2008 acentue tal menor benevolência.

3- Os bens jurídicos protegidos pelos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança em relação à Segurança Social não são coincidentes, como decorre da maior protecção constitucional concedida ao direito à segurança social e do facto de, nas contribuições para a segurança social, existir uma maior proximidade, senão coincidência, entre contribuinte e beneficiário.

4- Os princípios da unidade do sistema e da presunção de que o legislador consagrou as melhores soluções não consentem a interpretação de que a Lei n.º 64-A/2008 operou uma alteração legislativa em que, por força da não previsão legal de responsabilidade contra-ordenacional, se desproteja o bem jurídico tutelado pelo crime de abuso de confiança contra a segurança social, quando em causa estejam prestações tributárias de valor igualou inferior a €7.500,00.

5- A interpretação segundo a qual a remissão do n.º 1 do artigo 107°, n.º 1 do R.G.l.T. se faz, quanto aos valores, apenas para o n.º 5 e já não para o n.º 1 do artigo 105° do R.G.I.T., é a mais consentânea com o disposto no artigo 9°, n.º 2 do Código Civil uma vez que, no primeiro caso, tal remissão apenas tem sentido, porque em causa estão, precisamente, valores contributivos que o legislador reputou de merecerem uma maior punição, ao passo que, no segundo caso, é perfeitamente admissível que a remissão se faça exclusivamente para a pena, dado que em causa está a remissão para um tipo matricial (artigo 105°, n.º1) ao qual o legislador introduziu uma especialização que não quis estender, como podia, ao tipo matricial do artigo 107°, n.º 1, como bem se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 4/03/2009, proferido no âmbito do processo n.º 257/03.5TAVIS.

6- Em face do exposto deve ser revogado o despacho recorrido, determinando-se a continuação do procedimento criminal contra os arguidos, ordenando-se, em consequência, que o Tribunal a quo marque nova data para a realização da audiência de julgamento.

Não foi apresentada resposta.

Nesta Relação, o Ex.mº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Foi cumprido o art. 417 do CPP.

Não foi apresentada resposta.

Colheram-se os vistos e foi realizada a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

***É do seguinte teor o despacho recorrido: Como se sabe, no dia 1 de Janeiro de 2009, entrou em vigor a Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, Lei do Orçamento de Estado para 2009, que, novamente e um pouco a despropósito (não se deixando de notar que não se afigura que deva ser essa a sede mais adequada para o efeito, impedindo até uma melhor ponderação das soluções encontradas, que deviam ser mais maturadas, em particular na sua aplicação aos processos pendentes, como bem se viu com toda a controvérsia doutrinal e jurisprudencial levantada pela anterior Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, Lei do Orçamento de Estado para 2007), veio introduzir alterações no R.G.I.T. (Regime Geral das Infracções Tributárias), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.

Assim, o Art. 113º desta Lei alterou o disposto no Art. 105º, n.º 1 do R.G.I.T. que passou a ter a seguinte redacção: “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”, sendo que, anteriormente, este normativo dispunha, tout court, que “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”.

Ora, como resulta da comparação das duas redacções – a actual e a anteriormente vigente – do Art. 105º, n.º 1 do R.G.I.T., verifica-se ter sido alterado o tipo-de-ilícito objectivo do crime de abuso de confiança fiscal, uma vez que passou a ser punida apenas a não entrega à administração tributária, total ou parcial, de prestação tributária de valor superior a € 7.500, enquanto que anteriormente a verificação deste tipo legal não exigia que a prestação tributária não entregue tivesse um valor mínimo.

Ora, o Art. 107º do R.G.I.T. tem a seguinte redacção: “1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º 2 - É aplicável o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7 do artigo 105.º”.

Cumpre, pois, retirar, in casu, as (eventuais) consequências da alteração em causa na fattispecie imputada aos arguidos nestes autos, dado que as condutas dos mesmos, tais como descritas no libelo acusatório e se entender aplicável in casu na sua plenitude o disposto no Art. 105º, n.º 1 do R.G.I.T., deixaram de ser abrangidas, ao estar em causa um crime continuado (v. também o Art. 79º do Código Penal) e sendo certo que nenhuma das contribuições à Segurança Social é, em relação a qualquer um dos períodos em questão (cfr. Art. 105º, n.º 7 do R.G.I.T.), superior a € 7.500, pelo tipo legal previsto no Art. 105º, n.º 1 do R.G.I.T., fazendo, em primeiro lugar, um (breve) excurso sobre o tipo legal em questão e a sua incriminação.

*O Art. 63º, n.º 1 da Constituição prescreve que “Todos têm direito à segurança social”, incumbindo ao Estado “organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, com a participação das associações sindicais, de outras organizações representativas dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários” (n.º 2).

Por sua vez, no n.º 3 deste mesmo artigo especifica-se as finalidades da segurança social, prescrevendo que ”O sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho”.

A Segurança Social propriamente dita surgiu, como se sabe, já no século passado, uma vez que, até então, as situações de falta de rendimentos não tinham qualquer tipo de intervenção estatal, cabendo aos próprios indivíduos, melhor ou pior, procurar sobreviver com os meios de subsistência de que dispusessem. Com a passagem paulatina do Estado Liberal para o Estado de Direito Social foram surgindo sistemas mais ou menos desenvolvidos de protecção social dos mais desfavorecidos, como aquele existente entre nós.

De facto, decorre destas disposições constitucionais, que concretizam parcialmente o princípio da democracia económica, social e cultural, uma “imposição constitucional conducente à adopção de medidas existenciais para os indivíduos e grupos que, em virtude de condicionalismos particulares ou de condições sociais, encontram dificuldades no desenvolvimento da personalidade em termos económicos, sociais e culturais” (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2.ª Edição, Coimbra, 1998, p. 323).

Por sua vez, e dada a escassez dos meios estatais (cada vez mais patente no caso da própria Segurança Social), põe-se, desde logo, a questão do financiamento do sistema de protecção social. E, entre as fontes de financiamentos prioritárias, contam-se, desde logo, as contribuições dos próprios trabalhadores ou órgãos sociais das empresas, descontadas das suas retribuições e entregues ao Estado para as repartir por pessoas necessitadas de apoio social.

Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição, Coimbra, 1993, concluem, pois, que “a segurança social não depende apenas do financiamento público, mas sim também (ou sobretudo) das contribuições dos respectivos beneficiários” (nosso destacado).

Cumpre, pois, ao Estado assegurar, prima facie, que as contribuições para a Segurança Social sejam efectivamente descontadas e entregues, sob pena de não ser possível proceder ao pagamento das prestações sociais. Todo o sistema de segurança social assenta, assim, na cobrança efectiva das contribuições, repartidas “de forma igual pelos cidadãos”, no que constitui uma das vertentes do princípio da igualdade perante os encargos públicos (Gomes Canotilho, ob. cit., p. 393).

O sistema de Segurança Social assenta, pois, num pressuposto básico, que todos os trabalhadores e empregadores cumpram com as suas obrigações (só assim podendo existir igualdade entre todos), que não sendo impostos, assumem natureza parafiscal, devendo, para o efeito, ser sujeitos à fiscalização das entidades competentes e à aplicação de sanções. Neste âmbito, claro é que não basta a intervenção do direito de mera ordenação social, uma vez que a simples aplicação de uma coima pode não constituir um desincentivo suficiente para os agentes.

Tornou-se, pois, necessária, a criação de tipos legais associados aos incumprimentos mais graves das obrigações para com a segurança social, permitindo a aplicação das sanções reservadas para o direito penal...

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