Acórdão nº 884/07.1TTSTB.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 01 de Março de 2010

Magistrado ResponsávelPINTO HESPANHOL
Data da Resolução01 de Março de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REVISTA Decisão: CONCEDIDA A REVISTA Sumário : 1. O depoimento de parte, quando não resulte em confissão, constitui um simples elemento probatório a apreciar de acordo com o prudente critério do julgador, nos termos do artigo 655.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

  1. Tendo o trabalhador declarado que, recebida determinada quantia, nada mais tinha a haver ou receber do empregador, «seja a que título for, mormente a título de créditos emergentes do dito contrato de trabalho, sua violação ou cessação», tal declaração negocial configura uma inequívoca declaração negocial abdicativa, através da qual o mesmo renunciou a todos os créditos — conhecidos ou não — emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação.

  2. O artigo 863.º do Código Civil não exige que o consentimento do devedor — a aceitação da proposta de remissão — seja manifestado por forma expressa, pelo que a aceitação pode ser tácita e válida como tal, nos termos dos artigos 217.º, 219.º e 234.º do Código Civil.

    Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça: I 1.

    Em 16 de Outubro de 2007, no Tribunal do Trabalho de Setúbal, AA instaurou acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho contra BB – TRANSPORTES, L.da, pedindo que, declarada a existência de justa causa para a resolução do contrato de trabalho que efectivou, a ré fosse condenada a pagar-lhe (i) uma indemnização, nos termos do artigo 443.º do Código do Trabalho, (ii) uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, em montante não inferior a € 1.000, (iii) a quantia de € 17.392,58, relativa a prestações pecuniárias vencidas e não pagas, correspondendo € 16.703,63 ao pagamento do trabalho suplementar prestado nos dias de descanso semanal, obrigatórios e complementares e em dias feriados e € 688,95 ao pagamento de férias, subsídio de férias e de Natal referentes ao ano de 2007, (iv) o subsídio de refeição em quantia a liquidar em execução de sentença, (v) tudo acrescido de juros à taxa legal até integral pagamento, desde a data da citação.

    A ré contestou, alegando a excepção peremptória de remissão abdicativa, fundada em declaração constante no documento de fls. 483, e, por impugnação, que o autor não tem direito às quantias peticionadas, pois assinou uma declaração, à data da celebração do contrato de trabalho, em que aceitou que o que recebia a título de ajudas de custo «abrange o pagamento de todo e qualquer trabalho suplementar prestado em dias de descanso semanal e complementar e em dias de feriado», tendo já recebido as quantias devidas; em reconvenção, pediu a condenação do autor no pagamento da indemnização correspondente ao período de aviso prévio em falta.

    O autor respondeu, sustentando que a declaração que assinou constitui um mero recibo de quitação, pois nunca quis renunciar ao exercício dos seus direitos, e impugnando o pedido reconvencional, tendo concluído pela sua improcedência.

    Realizada audiência preliminar, em que foram prestados depoimentos de parte pelo autor e pelos representantes legais da ré, «a fim de serem esclarecidas as circunstâncias em que o documento de fls. 483 foi preparado e assinado», proferiu-se despacho saneador com o valor de sentença, que, julgando procedente a excepção peremptória de remissão abdicativa invocada, absolveu a ré do pedido e condenou o autor, como litigante de má fé, em multa e em indemnização a favor da ré.

  3. Inconformado, o autor apelou para o Tribunal da Relação de Évora, tendo impugnado, ao abrigo do disposto no artigo 690.º-A do Código de Processo Civil, a decisão do tribunal da primeira instância sobre a matéria de facto vertida nos pontos 4, 6 e 8 e aduzido que se devia dar como provado (a) «que o Autor […], ao assinar o documento de fls. 483, não teve consciência do que estava a assinar», (b) «que o Autor, no momento em que assinou o documento em apreço, não teve qualquer consciência de estar a abdicar de outros direitos laborais», (c) «que o apelante apenas assinou o documento ora em causa, porquanto foi ameaçado de não receber o cheque do pagamento da retribuição, subsídio de férias e de Natal, caso não assinasse o que lhe foi apresentado para assinar», (d) «que o apelante vivia com dificuldades económicas, necessitando do vencimento para fazer face às suas despesas», invocando, no respeitante aos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida, o depoimento de parte do autor e os documentos de fls. 483 e 493.

    O Tribunal da Relação julgou parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto, alterando a redacção dos respectivos pontos n.os 4 e 5 e aditando o ponto n.º 10, e julgou improcedente a excepção peremptória de remissão abdicativa invocada, determinando o prosseguimento da acção, «para apuramento da matéria de facto pertinente ao julgamento da causa», sendo contra esta decisão que a ré agora se insurge, mediante recurso de revista, em que alinha as conclusões seguintes: «1. O douto tribunal a quo decidiu revogar a douta sentença de 1.ª instância, que havia julgado procedente a invocada excepção peremptória extintiva por declaração remissória abdicativa, bem como a decisão que havia condenado o recorrido como litigante de má fé.

  4. Fê-lo ampliando a matéria de facto julgada provada em 1.ª instância e atendendo em especial, para tal, ao depoimento de parte do próprio autor, prestado na audiência preliminar aditando o seguinte facto: “ao assinar o documento de fls. 483, o representante da R.,CC, disse ao A. que você já sabe o que é isto, é das férias, subsídio de Natal e as viagens que fizeste e o ordenado a que tens direito”.

  5. Do qual o tribunal recorrido retirou a conclusão, afirmada apenas pelo próprio autor em depoimento prestado nos autos, de que não teria consciência do teor e alcance da referida declaração, que leu e por duas vezes subscreveu, a qual se acha junta aos autos a fls. 483.

  6. Ora, de acordo com as regras estabelecidas para o depoimento de parte, vertidas no artigo 554.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e no disposto no artigo 352.º do Código Civil, só é admissível o depoimento de parte desde que recaia sobre factos susceptíveis de confissão.

  7. E só são susceptíveis de confissão, por natureza, os factos cuja prova possa ser desfavorável ao depoente. É neste sentido que dispõe, expressis verbis, o artigo 352.º do Código Civil.

  8. Admitir o depoimento de parte sobre pretensos factos que favorecem o próprio depoente e, bem assim, vir a aditar a matéria de facto, considerando tal depoimento, não tem qualquer sentido ou suporte legal.

  9. Tal actuação, imputável ao aresto recorrido, constitui evidente violação do disposto no artigo 352.º do Código Civil.

  10. Acresce, ainda, que o facto aditado pelo douto tribunal recorrido constituiria, a ser verdadeiro, um facto extintivo do direito alegado pela ora recorrente — qual seja [a] excepção peremptória extintiva de remissão abdicativa.

  11. Os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pela ora recorrente careceriam de ser provados por “aquele contra quem a invocação é feita”. Ou seja, o autor ora recorrido.

  12. Assim, o douto aresto em crise viola igualmente o disposto no n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil.

  13. A douta decisão recorrida alicerçou a respectiva decisão de que o autor, ora recorrido, não tinha consciência do que estava a assinar quando procedeu à assinatura do documento de fls. 483, em prova inadmissível, pois que sobre factos a este favoráveis, obtidos em depoimento de parte.

  14. Neste sentido, a eventual incúria do recorrido resultaria por demais gravosa para a recorrente, penalizando-a, na prática, com a inversão do ónus da prova sem suporte no normativo do artigo 344.º do Código Civil, e com a descaracterização e não produção de efeitos da declaração remissória abdicativa, efeitos esses para a qual legítima e validamente foi emitida.

  15. Leia-se o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo n.º 355/05.0TTLRA.C1, de 11-01-2007 (disponível em www.dgsi.pt) que ora se transcreve: “contudo, na resposta à contestação, a autora veio alegar que só assinou a declaração porque foi pressionada pelo réu que lhe disse que, se o não fizesse, não recebia qualquer quantia e porque o réu a convenceu de que mais nenhum direito lhe assistia, tendo sido assim induzida em erro. (...) Verificamos que não foi feita qualquer prova relativamente aos factos alegados que poderiam consubstanciar os vícios de vontade na declaração abdicativa (coacção moral e erro sobre o objecto). O ónus da prova desses factos caberia à autora (342, n.º 2, do Código Civil). Temos assim que, com a declaração, a autora abdicou de exigir mais fosse o que fosse ao réu, relativamente a créditos emergentes do contrato de trabalho que com ele manteve”, em tudo similar à situação dos autos.

  16. O douto acórdão não aplicou correctamente as normas relativas aos vícios da vontade, dispostas nos artigos 247.º e seguintes do Código Civil.

  17. O douto acórdão recorrido não aplicou correctamente o disposto no artigo 456.º do Código do Processo Civil, relativo à litigância de má fé.

  18. O douto acórdão recorrido incorreu em flagrante violação de lei substantiva, e ainda que assim não se entendesse, sempre terá ocorrido erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa.

  19. Uma vez cessada a relação laboral, já não logra entrever-se justificação para que o trabalhador não disponha livremente dos seus créditos laborais, podendo a eles renunciar, o que aconteceu, aquando da assinatura do documento de fls. 483.

  20. Neste domínio, o Código Civil acolheu a chamada teoria da impressão do destinatário, dispondo no n.º 1 do artigo 236.º que a declaração negocial deve ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado em posição do tal declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não p[u]der razoavelmente contar com ele.

  21. A douta decisão de 1.ª instância, em cuja sede os depoimentos...

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