Acórdão nº 1014/11.0PHMTS-B.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 20 de Junho de 2018

Magistrado ResponsávelRAUL BORGES
Data da Resolução20 de Junho de 2018
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

No âmbito do processo comum com intervenção de tribunal singular n.º 1014/11. 0PHMTS, do então 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de ..., foi submetido a julgamento o arguido AA, identificado nos autos.

Realizado o julgamento, na ausência do arguido, por sentença datada de 28 de Maio de 2012, constante de fls. 91 a 100 do processo principal (fls. 30 a 39 deste processo), foi o arguido condenado, pela autoria material de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de 5,50 euros e a pagar ao ofendido demandante BB a quantia de 500 euros, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, desde a data da sentença, à taxa de 4%, até integral e efectivo pagamento.

Decorridos mais de quatro anos sobre a data da sentença, o arguido, em 16 de Junho de 2016, invocando nulidade da sentença por violação do artigo 134.º do CPP, interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto (fls. 40 a 52 deste), que por acórdão de 11 de Janeiro de 2017 (consta do acórdão 11 de Janeiro de 2016, mas trata-se obviamente de erro de escrita), constante de fls. 372 a 381 do processo principal e fls. 54 a 63 deste, negou provimento ao recurso. (Do dispositivo, consta por lapso arguido CC em vez de AA - fls. 63 deste).

De novo inconformado, o arguido em 6-03-2017, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 64 a 68), que pelo acórdão de 11 de Maio de 2017, constante de fls. 71 a 75, com um voto de vencida (fls. 76), julgou não verificada a oposição de julgados, rejeitando o recurso.

***** O arguido interpôs o presente recurso extraordinário de revisão em 27 de Julho de 2017, dirigido à Meritíssima Juiz 3 do Juízo Local Criminal do Tribunal Judicial de ... - Comarca do Porto, dizendo recorrer nos termos do artigo 449.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, da decisão do Venerando Tribunal da Relação do Porto, apresentando a motivação de fls. 2 a 8, e em original, de fls. 11 a 17.

B - O artigo 449º n.º 1 e) do Código de Processo Penal.

O conceito de provas proibidas.

O recorrente fundamenta o seu recurso na alínea e) do referido normativo, ou seja quando se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126º.

(…) C - A recusa de depoimento. Consequência jurídica da omissão da advertência. A nulidade prevista no n.º 2 do artigo 134º do Código de Processo Penal.

Dispõe o artigo 134º n.º 2 do Código de Processo Penal: “A entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de nulidade, as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste de recusarem o depoimento.”.

Ora, a questão central está na qualidade que assume a nulidade, consequência da omissão da advertência prevista no referido artigo do Código de Processo Penal. Ou seja, aqui trata-se de saber se a nulidade é sanável, ou, pelo contrário, se esta nulidade configura uma verdadeira proibição de prova.

Estabelece o n.º 1 do artigo 134º do Código de Processo Penal o seguinte: “Podem recusar-se a depor como testemunhas: a) Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 2º grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido; b) Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação.

”.

Aqui o legislador elencou um conjunto de pessoas às quais é dada a possibilidade de se recusarem a depor na qualidade de testemunhas, considerando os especiais laços familiares, conjugais ou afectivos que as ligam ao arguido.

Esta faculdade que é atribuída a este conjunto de pessoas é necessária e fundamental dentro do próprio processo penal. Consideradas as ligações sentimentais em causa, as mesmas poderiam constituir um forte abalo, ficando as relações em causa. O que, decerto, levaria as testemunhas a procurar prestar falso depoimento, numa tentativa compreensível de proteger o arguido.

No entanto, para que esta faculdade de recusa de depoimento seja efectiva, carece de advertência, por parte da entidade competente para receber o depoimento.

Ou seja, o que do n.º 2 do artigo 134º do Código de Processo Penal resulta é uma obrigatoriedade, imposta pela lei à entidade à qual cabe receber o depoimento, de advertir a testemunha, desde que esta se enquadre no elenco previsto no n.º 2 do mesmo preceito legal, da possibilidade de se recusar a depor. A omissão dessa advertência, de carácter formal, tem por consequência a nulidade do depoimento prestado, independentemente do conteúdo deste.

Ora, a questão que agora se põe é a da natureza da nulidade, isto é, se estamos perante uma nulidade sanável, ou perante uma verdadeira proibição de prova.

Relativamente a esta questão, a doutrina diverge.

Por um lado, temos uma corrente doutrinária, na qual se destacam Manuel Simas Santos e Leal Henriques, que defende a tese de que a nulidade referida no n.º 2 do artigo 134º do Código de Processo Penal, não estando integrada no elenco das nulidades previstas no artigo 119º do mesmo diploma legal, teria de ser arguida pela testemunha até que terminasse a tomada declarações, nos termos do artigo 120º, também do Código de Processo Penal. A não arguição da nulidade levaria, então, à sanação da mesma.

A contrario, temos a tese defendida, de forma mais destacada, por Paulo Pinto de Albuquerque e por Costa Andrade, e que já foi acolhida pelos Tribunais, que vai no sentido de considerar que a omissão da advertência, prevista no artigo 134º n.º 2 do Código de Processo Penal, uma verdadeira proibição de prova, resultante da intromissão na vida privada.

II - A SUBSUNÇÃO DOS FACTOS AO DIREITO A questão trazida a este Supremo Tribunal de Justiça insere-se na natureza da nulidade, consequência da omissão da advertência prevista no n.º 2 do artigo 134º do Código de Processo Penal.

No âmbito dos presentes autos, vemos que a entidade competente para tomar o depoimento, em julgamento, não advertiu o aqui Recorrente da faculdade que a lei lhe proporciona de se recusar a depor.

Mas, ab initio, cabe fazer um esclarecimento. Apesar de, no processo, o Recorrente ser assistente, não deixa este de estar abrangido pelo vertido no artigo 134º do Código de Processo Penal. Este preceito legal apenas fala em testemunhas; no entanto, parece ser hoje entendimento assente, a nível jurisprudencial, que o regime do referido artigo 134º também se aplica aos assistentes. Isso mesmo reconheceu o Venerando Tribunal da Relação do Porto no douto acórdão recorrido.

Ora, como foi referido, a advertência legalmente exigida foi omissa pela entidade competente para receber o depoimento do Recorrente. Perante esta questão, entendeu o Tribunal a quo, posição esta que foi confirmada pelo Tribunal ad quem, que a nulidade resultante da omissão ficou sanada pela não arguição da mesma por parte do assistente, aqui Recorrente.

No entanto, este entendimento, salvo o devido respeito que nos merece, não se afigura como o mais correcto.

Na nossa óptica, o entendimento mais conforme com o espírito da lei é o defendido por Pinto de Albuquerque e por Costa Andrade, entendimento este que foi supra exposto.

Por um lado, é de assinalar que este entendimento já foi acolhido na jurisprudência, conforme resulta da leitura do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25 de Junho de 2014, referente ao recurso penal n.º 313/10.3TACNT-A.C1.

Este acórdão refere, e, a nosso ver, muito bem, que apesar de haver uma referência expressa a uma nulidade, no n.º 2 do artigo 134º do Código de Processo Penal, não podemos sem mais conduzir tal situação ao regime das nulidades, previsto nos artigos 119º e 122º do referido diploma legal.

Considerando que o artigo 134º do Código de Processo Penal se enquadra nas normas relativas à produção de prova, há que considerar a aplicação do regime das proibições, regime este que é autónomo relativamente ao regime geral das nulidades. Disso mesmo nos dá conta o artigo 118º n.º 3 do mesmo Código, em que está bem expressa a pretensão do legislador de autonomizar as proibições de prova em relação às nulidades.

É necessário considerar a sensibilidade da circunstância retratada no artigo 134º do Código de Processo Penal, na hora de decidir sobre a consequência da falta da advertência exigida. Ou seja, estamos aqui perante uma situação em que uma pessoa que integra a esfera relacional íntima do arguido é chamada a depor. Ora, há que atentar nos efeitos devastadores que do depoimento do assistente teria nas relações de confiança e intimidade que o ligam ao arguido, provocando séria instabilidade no seio familiar.

Foi precisamente para evitar esta turbulência nas relações de família que o legislador veio prever a possibilidade de o declarante se recusar a depor, procurando evitar constrangimentos ou até mesmo falsos testemunhos. Mas para que esta pretensão legislativa tenha efeitos no plano prático, é necessário que a entidade competente para receber o depoimento faça a advertência prevista no n.º 2 do artigo 134º do Código de Processo Penal. Assim, a conclusão que daqui se retira é que esse dever de advertência é, claramente, um imperativo, o único caminho possível para consagrar na vida prática o propósito do legislador.

Ora, considerar que a omissão de advertência configura uma nulidade sanável, é uma ideia que conduz a um claro “esvaziamento” do propósito desse dever, contrariando o espírito da lei e colidindo com a intenção do legislador de salvaguardar as relações de cariz familiar e, igualmente, a certeza e a segurança jurídicas, no sentido em que a possibilidade dada ao assistente de não depor garantiria que do depoimento não sairia afectado um dos fins últimos do processo penal, a descoberta da verdade.

Portanto, considerando que a advertência é...

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