Acórdão nº 488/16.8T9LSB.L1-3 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 15 de Março de 2017

Magistrado ResponsávelJO
Data da Resolução15 de Março de 2017
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa.

Relatório: 1.–O denunciante J.S.P., inconformado com o despacho proferido pelo magistrado do Ministério Público findo o inquérito, requereu a admissão da intervenção nos autos na qualidade de assistente e a abertura de instrução concluindo que deverá ser proferida pronúncia de L.M.F. e de H.G.M. pelo cometimento de dois crimes de denúncia caluniosa, um crime de abuso de poder e um crime de falsificação de documento, previstos e punidos, respectivamente, nos artigos 365º nº 1, 382º e 256º nºs 1 e 4, todos do Código Penal.

Após a distribuição, o Exm.º juiz da Instância Central de Instrução Criminal da Comarca de Lisboa proferiu o seguinte despacho, em 31/10/2016 (transcrição): “A fls. 114e sgs. veio o assistente requerer a abertura de instrução, face ao despacho de arquivamento lavrado pelo M°Pº.

No caso de a instrução ser requerida pelo assistente, o seu requerimento deverá, a par dos requisitos exigidos pelo n°2 do art° 287, incluir os necessários a uma acusação, os quais serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante à elaboração da decisão instrutória (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado - 1996, 7a Ed., pgs. 455).— Do longo requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, na sequência do despacho de arquivamento do M°P°, resulta por um lado, a manifestação da discordância com o despacho de arquivamento (de fls. 114-118) e por outro a alegação de factos que delimitam a atuação do Juiz de instrução nesta fase jurisdicional. São três os ilícitos que o assistente considera terem ocorrido: Denúncia caluniosa, Abuso de poder e Falsificação de documento. Analisemos de per si cada um deles.

DO CRIME DE DENÚNCIA CALUNIOSA.

Em síntese, relativamente a este ilícito, os factos são os seguintes: L.M.F. apresentou, no dia 31 de Março de 2015, junto da Procuradoria-Geral da República uma participação criminal contra o assistente imputando-lhe factos susceptíveis de configurar os crimes de ofensa a organismo com publicidade e de violação do segredo de Estado, porquanto terá lido um documento classificado como “reservado” e publicado diversos artigos de opinião em jornais onde divulgou o conteúdo do mesmo e imputou factos à Marinha susceptíveis de abalar o seu prestígio e bom nome. Esta queixa deu lugar ao inquérito n.°2……/……..TDLSB, que correu termos na Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, o qual foi arquivado por se ter concluído pela inexistência do crime de violação do segredo de Estado, uma vez que o documento não podia ter recebido a classificação de “reservado” e, por conseguinte seria um documento não classificado.

Ora, segundo o assistente descreve no art° 42° do RAI, esta participação criminal é caluniosa e por isso, consubstancia na sua óptica um crime de denúncia caluniosa, porquanto os factos alegados na mesma são falsos, uma vez que o documento a que teve acesso era um apontamento elaborado pelo Chefe Maior da Armada sem classificação e tinha data anterior àquele que foi classificado de “reservado”.

Prescreve o artigo 365.°, n.°1, do CP que “Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de um crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”.

Esta incriminação inserida no capítulo dos crimes contra a realização da justiça, tem por objectivo primário, conforme refere o M°P° no seu despacho de arquivamento “(...) prevenir a actividade inútil e infundada das instâncias formais em acções inúteis de perseguição de inocentes, no sentido da eficiência da justiça, da racionalização dos seus escassos meios e ainda, e sobretudo, de salvaguarda da autoridade e do prestígio da justiça, que não pode ser convertida em instrumento de perseguição, o que se mostra indispensável à salvaguarda da confiança dos cidadãos.

Daí que concorra no tipo legal a procura de defesa tanto de interesses individuais (do agente perseguido), como de valores supra-individuais (da realização da justiça), ainda que estes apenas de forma reflexa ou complementar.(...)” São elementos típicos de tal crime: a)-O acto de denunciar ou lançar suspeita por qualquer meio a pessoa visada, determinada ou determinável; b)-A imputação de factos falsos, idóneos a provocarem o procedimento criminal, disciplinar ou contra-ordenacional perante autoridade com o poder do procedimento; c)-Dolo específico, por consciência da falsidade da imputação e intenção de que contra a pessoa visada se instaure procedimento.

No caso dos presentes autos, e apenas no que se refere a este ilícito, temos que o arguido L.M.F. apresentou P.G.R. uma participação criminal contra o assistente por Difamação da Marinha e Violação de Segredo de Estado.

Ora, refere o assistente que o arguido não tinha factos que o habilitassem a fundamentar a acusação de difamação da Marinha, pelo que a sua atuação é caluniosa, sendo que todos os documentos apresentados foram também assinados pelo co-arguido H.G.M. que em nenhum momento se demarcou da posição do arguido .

Relativamente ao crime de violação de segredo de Estado - queixa apresentada contra o assistente - refere este no seu RAI que o texto que publicou no Diário de Noticias, em 18/6/2014, que referia “(...) Tendo atribuições e competências, a administração pública tem de interpretar a lei para a aplicar. E se, como diz um documento interno da Armada, há um “nevoeiro legislativo sobre o papel da Marinha”, é dever dos servidores do Estado, vinculados ao Princípio da Legalidade e à norma da boa-fé, pedir instruções superiores, no limite, ao Governo”. Ora, segundo o assistente leu a expressão “nevoeiro legislativo sobre o papel da Marinha”, num apontamento datado de 10-10-2012, sem qualquer classificação de segurança nem de segredo de Estado. É esta expressão que está na base da queixa apresentada pelo arguido por “violação de segredo de Estado”. — No RAI ora em análise, o assistente refere o seguinte: “(...) Fica assim provado que havia pelo menos mais um documento onde o requerente podia ter obtido, e de facto obteve, a expressão “nevoeiro legislativo sobre o papel da Marinha” Conforme referiu o M°P° no despacho de arquivamento, a este propósito, em posição com a qual concordamos na íntegra: “(...) Resulta suficientemente indiciado nos autos que L.M.F. denunciou, junto da P.G.R., factos susceptíveis de integrar a prática dos crimes supra mencionados e que estes teriam sido perpetrados pelo ora queixoso.

Face a tal factualidade, não temos dúvidas em afirmar que, com a sua conduta, L.M.F. lançou publicamente e perante autoridade, a suspeita, que recaiu sobre o aqui queixoso, de ter o mesmo praticado factos integradores de ilícitos criminais.

Porém, compulsados os elementos juntos aos autos, mormente a cópia do relatório elaborado pela Polícia Judiciária Militar e o despacho de arquivamento proferido no inquérito instaurado contra o queixoso, considera-se que os factos ali participados corresponderão à realidade, pois J.S.P. publicou efectivamente artigos de opinião onde visava a Marinha e fazia referência ao teor de um documento a que tivera acesso. Contudo, este documento foi indevidamente classificado como “reservado”, pois quem lhe atribuiu tal classificação não tinha competências para o fazer e o seu conteúdo não justificaria que fosse de acesso reservado, já que se tratava de um estudo pedido ao segundo participado. Por se ter chegado a este entendimento, concluiu-se no referido inquérito pela inexistência de crimes estritamente militares. O despacho final proferido naquele inquérito não teve por objecto o eventual crime de ofensa a organismo.

Do que decorre, os factos participados por L.M.F. terão ocorrido (com efeito, o queixoso publicou artigos de opinião onde fez referência, pelo menos, a uma expressão contida num documento que foi - embora indevidamente - classificado e teceu considerações acerca da Marinha), contudo não foram qualificados como crime, uma vez que o documento em causa não tinha carácter militar e não houve tomada de posição expressa quanto ao crime de ofensa a organismo no despacho final proferido naquele inquérito.

Assim sendo, considera-se que apesar de se ter concluído pela inexistência de crime a factualidade participada nestes autos não integra o crime de denúncia caluniosa, já que, reitera-se, os factos não são inverídicos, apenas não foram considerados susceptíveis de configurar um ilícito criminal no que toca ao alegado crime de violação do segredo de Estado.

Apenas se refere que “uma justiça eficaz reclama a participação activa de todos, devendo por isso estimular-se os cidadãos a dar notícia dos crimes de que tenham conhecimento. E a fazê-lo sem o risco de “estarem permanentemente com um pé na prisão” (ob. Cit. p.519 e 520) sob pena de também assim não ser realizada a justiça. Com efeito, a incriminação constante do artigo 365.° do Código Penal não visa afastar os cidadãos do exercício do seu direito de queixa, fazendo-os recear que, em caso de arquivamento, serão objecto de responsabilidade criminal. Visa-se tutelar situações em que o agente consciente da falsidade da imputação, denuncia factos inverídicos, com a intenção de se instaurar procedimento criminal contra determinada pessoa. No caso em apreço, considera-se que L.M.F. denunciou factos que no seu ponto de vista consubstanciariam a prática de crimes e fê-lo com o escopo de ser instaurado processo crime para os apurar. Contudo, tal como se referiu, os factos denunciados terão ocorrido, pelo que não se verifica o elemento objectivo referente à falsidade da imputação.

Do exposto, temos que concluir que os factos participados não integram o crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.°, n.°1, do Código Penal, e por conseguinte, determino o arquivamento dos autos...

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