Acórdão nº 632/09 de Tribunal Constitucional (Port, 03 de Dezembro de 2009

Magistrado ResponsávelCons. Maria João Antunes
Data da Resolução03 de Dezembro de 2009
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 632/2009

Processo nº 103/08

  1. Secção

Relatora: Conselheira Maria João Antunes

Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional

  1. Relatório

    1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente a Ordem dos Médicos e são recorridos o Ministério Público e a Autoridade da Concorrência, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele tribunal de 22 de Novembro de 2007.

    2. Por decisão de 26 de Maio de 2006, a Autoridade da Concorrência aplicou à Ordem dos Médicos uma coima no valor de € 250.000,00 e ordenou a publicação do sumário da decisão no Diário da República e a da parte decisória num jornal nacional de expansão nacional.

      A Ordem dos Médicos impugnou judicialmente esta decisão, suscitando a questão prévia da incompetência material do Tribunal de Comércio.

      Em 6 de Setembro de 2006, o Tribunal de Comércio decidiu declarar-se materialmente competente para apreciar o recurso interposto. Em 18 de Janeiro de 2007, o recurso foi julgado parcialmente procedente. Consequentemente, a Ordem dos Médicos foi condenada na coima de € 230.000,00 e na publicação de súmula da decisão, incluída a parte decisória, no Diário da República e da parte decisória em jornal nacional de expansão nacional.

      A Ordem dos Médicos recorreu da decisão proferida quanto à questão prévia da competência material do Tribunal de Comércio (fl. 167 e ss.) e da sentença deste tribunal de 18 de Janeiro de 2007 (fl. 322 e ss.) para o Tribunal da Relação de Lisboa. Para o que importa apreciar e decidir, extrai-se da motivação deste recurso o seguinte:

      Da Incompetência legal da autoridade da concorrência para punir a recorrente

      20. A recorrente considera que a AdC não tem competência legal para sancionar a Ordem dos Médicos.

      Na verdade, importa ter presente que a lei autoriza a subsunção das ordens profissionais, enquanto entidades (auto)reguladoras, ao conceito de “entidades reguladoras sectoriais” para efeitos de caracterização da sua relação com a AdC como de colaboração – vide artigo 15.º da Lei n.º 18/2003 e Vital Moreira in “Auto-Regulação profissional e Administração Pública”, Almedina, 1997.

      22. E, nesta medida, não se vislumbra que a AdC tenha competência para instaurar processos sancionatórios contra as demais entidades reguladoras sectoriais, como seja, a CMVM ou a ANACOM.

      23. A Ordem dos Médicos é uma pessoa colectiva pública.

      24. Se é certo que as contra-ordenações previstas na Lei da Concorrência se aplicam, de facto, a pessoas colectivas, nada no referido diploma aponta para que as pessoas colectivas públicas tenham sido abrangidas pelo legislador; bem pelo contrário, um conjunto de elementos literais, históricos, sistemáticos, estruturais e teleológicos indiciam a solução contrária.

      25. Tratando-se de uma questão extremamente delicada, que comporta opções de fundo de política criminal, pelo que seria de esperar uma menção expressa por parte do legislador; não existindo essa indicação, o intérprete deverá rejeitar a aplicação de sanções desta natureza a pessoas colectivas públicas por violações do direito nacional da concorrência, não só em razão dos argumentos referidos, mas também porque estamos aqui perante matéria de direito sancionatório público.

      26. Acresce que uma interpretação da Lei da Concorrência que submeta as ordens profissionais ao direito nacional da concorrência é inconstitucional, porquanto, não tendo o legislador democrático sido explícito nessa inclusão, deverá prevalecer, prima facie, a garantia constitucional da autonomia das associações públicas – artigo 267.º da CRP.

      27. Por último, a aplicação de vários preceitos da Lei da concorrência, às ordens profissionais apresenta-se corno legalmente impossível, pois a mesma identifica, como destinatários da sanção, as “empresas associadas que hajam participado no comportamento proibido”, e como critério para calcular a medida da coima, “10% do volume agregado anual das empresas associadas”.

      28. Em matéria de direito sancionatório público, não só não se vislumbra de que forma se procederá à identificação das “empresas participantes”, como não se configura quem será o titular dos “negócios” referidos na norma em questão, nem qual a forma legal e minimamente rigorosa de o calcular.

      29. Em face das condicionantes identificadas, a conclusão não poderá ser outra senão a de que, no direito português da concorrência vigente, a Autoridade da Concorrência carece de competência para aplicar coimas às ordens profissionais, pelo que sentença recorrida é ilegal.

      30. Além de ilegal, é também inconstitucional por violação do artigo 267.º, n.º 4 da CRP, aliás neste sentido veja-se o parecer do Prof. Jorge Miranda, que se junta.

      31. De notar que, na esteira do afirmado pelo dito Prof. Jorge Miranda, a Ordem dos Médicos integra a Administração Autónoma do Estado, pelo que apenas está submetida à tutela do Governo, nos termos do artigo 199.º, alínea d) da CRP.

      32. Tutela que não pode ser delegada noutro órgão e que não integra poderes sancionatórios.

      33. Ignorando todas estas questões, a Mm.a Juiz a quo refere diversos argumentos para não declarar a ilegalidade invocada pela arguida, aqui recorrente.

      34. Todavia e salvo o devido respeito, todos pouco consistentes e sem valia.

      35. O primeiro argumento invocado na decisão recorrida é o carácter transversal da Autoridade da Concorrência (AdC), do qual resulta que a AdC tem poderes sobre todos os sectores da actividade económica.

      36. Constata-se, contudo, que essa transversalidade quer significar que a Autoridade tem ‘jurisdição” alargada a todos os sectores da actividade económica, por contraposição às entidades reguladoras sectoriais, que como é evidente se limitam a actuar num determinado sector da economia (ANACOM nas telecomunicações, CMVM no mercado bolsista, etc., etc., – vide a lista exemplificativa constante do n.º 4 do artigo 6.º do DL n.º 10/2003, de 18.01)

      37. Ora, salvo o devido respeito, este raciocínio não permite retirar qualquer conclusão no sentido de incluir a Ordem dos Médicos sob a ‘jurisdição” da AdC.

      38.O que resulta da Lei neste ponto é que a AdC tem jurisdição (também) sobre o sector da saúde. E nada mais.

      39. É caso para utilizar o argumento da Mm.a Juiz a quo: onde a Lei não distingue não deve o intérprete distinguir.

      40. De todo o modo, no entender da recorrente, essa “jurisdição” não afecta a própria “jurisdição” da Ordem dos Médicos sobre parte dos intervenientes nesse mesmo sector da saúde, que são os médicos.

      41. É que um dos fins da Ordem é a defesa do direito dos cidadãos a uma medicina qualificada, por via da defesa da ética, da deontologia e da qualificação profissional – vide alínea a) do artigo 6.º do Estatuto da Ordem dos Médicos – DL 282/77, de 5 de Julho.

      42. A criação e existência da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) não retira essa característica (auto) reguladora à Ordem dos Médicos – vide Rui Nunes in “Regulação da Saúde”, p116, Vida Económica, 2005.

      43. O segundo argumento apresentado na sentença recorrida assenta no fim alegadamente prosseguido pela Ordem de defesa dos interesses dos médicos.

      44. Ora, esta ideia está errada e só pode resultar de uma leitura incorrecta dos Estatutos da Ordem dos Médicos.

      45. O que o Estatuto refere claramente é que a Ordem fomenta e defende os interesses da profissão médica e não dos seus membros, o que é algo bem distinto e com toda uma outra ressonância valorativa.

      46. É preciso ter bem presente que a Ordem é um organismo público e não um organismo corporativo ou um sindicato.

      47.Por outro lado, sendo uma pessoa colectiva de direito público, a Ordem está sujeita aos princípios gerais da actuação da administração, entre os quais ressaltam os de isenção e imparcialidade, ou seja, precisamente os mesmos que delimitam a actuação das entidades reguladoras sectoriais.

      48. Por fim, não é verdade nem está demonstrado nos autos que a Ordem dos Médicos exerça uma actividade económica, nem se vislumbra qual ela possa ser.

      49. Conclui-se assim que a decisão da Mm.a Juiz a quo neste ponto violou a Lei, designadamente o artigo 267.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

      (…)

      Da ausência de auditor/instrutor independente

      64. A recorrente alegou, na impugnação da decisão da Autoridade da Concorrência, que o Presidente desta Autoridade afirmou, na apresentação feita no Seminário “Direito da Concorrência”, organizado pela CIP e PLMJ, em Lisboa no dia 18/11/2004 (e disponível em www.autoridadedaconcorrencia.pt), o seguinte: “Sabemos que para assegurar um equilíbrio nas decisões finais da Autoridade e o seu escrutínio cuidado dentro da instituição é necessário assegurar a separação entre a Instrução e a Decisão. Esta é uma das minhas principais preocupações e que terá uma solução no Regulamento Interno que tem estado em constante reflexão e que será publicado em 2005. Existem diferentes soluções possíveis, uma vez que não existe separação institucional daquelas duas funções e que aliás foi intenção claro do legislador português integrar (...)”.

      65. Importava, pois, apreciar este facto e declará-lo provado ou não provado.

      66. Sobretudo quando deste mesmo facto dependeria a rigorosa apreciação da questão prévia denominada “ausência de auditor/instrutor independente.

      67. Para apreciação da referida questão prévia, um outro facto haveria que incluir na enumeração exigida pelo legislador.

      68. Referimo-nos à existência da figura do Auditor e respectivas competências e razões para a sua criação, no âmbito dos processos de concorrência processados perante a Comissão Europeia.

      69. É um facto que deveria constar do elenco de factos provados e nem sequer consta dos factos não provados.

      70. Assim, entendeu a Mm.a Juiz a quo que a inconstitucionalidade avançada pela arguida não merece acolhimento porquanto o legislador quis claramente confluir...

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