Acórdão nº 08P1145 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 29 de Maio de 2008

Magistrado ResponsávelSOUTO DE MOURA
Data da Resolução29 de Maio de 2008
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

AA foi julgada a 30/1/2008 em processo comum e Tribunal Colectivo, no Tribunal Judicial de Vila Franca do Campo (Pº 20/99.6 TBVFC), pela prática de um crime continuado de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º, nº 1, e 218º, nº 2, al. a), com referência ao artigo 202º, al. b), do Código Penal, e condenada na pena de 4 anos e 2 meses de prisão. Como autora material de um crime continuado de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, com referência ao artigo 255º, al. a), do Código Penal, foi condenada na pena de 2 anos de prisão. Em cúmulo, foi condenada na pena única de 5 anos e 2 meses de prisão. Beneficiou de 1 ano de prisão, nos termos do disposto no artigo 1º da Lei 29/99, de 12 de Maio, pelo que a pena aplicada ficou reduzida para 4 anos e 2 meses de prisão.

I - O RECURSO Discordando desta decisão, o MºPº veio interpor recurso da mesma para este Supremo Tribunal de Justiça, com o único objectivo de ver alterada a medida da pena aplicada. Concluiu a sua motivação do seguinte modo: "1- O tribunal "a quo" condenou a arguida pelo cometimento de um crime continuado de burla agravada na pena de prisão por quatro anos e dois meses de prisão; 2- Fundamentou-se o tribunal em circunstâncias que, alega o acórdão, já foram consideradas na tipificação legal do crime; 3- Do elenco dessas circunstâncias elencadas no acórdão, apenas uma delas se refere à agravação do crime de burla; 4- Todas as outras circunstâncias deveriam conduzir a um agravamento da medida da pena; 5- Estas outras circunstâncias serão (que o acórdão alega ter tido em consideração) a forma de actuação; a reiteração da conduta e sua extensão por largo período; os valores muito elevados em causa; a actuação concertada que colocou em perigo o equilíbrio financeiro de muitas pessoas.

6- A pena de prisão a aplicar pelo crime de burla qualificada, no caso concreto agora em apreço, não deveria situar-se abaixo de metade da moldura legalmente prevista, isto é, inferior a cinco anos; 7 - E, nesta sequência, de entre um "quantum" previsto na lei de dois a oito a oito anos de prisão, a pena a aplicar no caso concreto deveria ser, no mínimo, de seis anos de prisão; 8- E, em cúmulo jurídico, a pena unitária deveria ser de sete anos de prisão; 9- É neste quadro de argumentação que se considera que o acórdão recorrido viola o disposto nos artigos 30°; 71 0; 217 e 218°, todos do Código Penal; 10- O tribunal deveria ter aplicado à arguida uma pena de prisão de seis anos de prisão pelo cometimento de um crime de burla agravada e, em consequência do necessário cúmulo jurídico a operar no caso agora em apreço, uma pena unitária de sete anos de prisão".

Não houve resposta da arguida.

Já neste Supremo Tribunal, o Mº Pº pronunciou-se pelo provimento do recurso interposto.

Colhidos os vistos, foram os autos levados à conferência (al. c) do nº 3 do artº 419º do C.P.P.).

II - OS FACTOS No acórdão recorrido foram dados por provados os seguintes factos: "1º O arguido BB foi funcionário da Caixa Geral de Depósitos adiante designada por C. G. D. , desde 2 de Janeiro de 1980 e até Junho de 1997, altura em que foi suspenso de funções, no âmbito de processo disciplinar que lhe foi instaurado e que culminou no seu despedimento por deliberação de 27-11-97.

  1. A referida instituição de crédito criou, no início dos anos 80, uma linha de crédito agrícola a curto prazo destinada à aquisição de novilhas para recria, tendo como limites máximos cumulado e por operação as quantias de, respectivamente, 5.000.000$00 e 2.500.000$00, com um período máximo de um ano para reembolso e pagamento dos juros devidos.

  2. Para aceder a tal tipo de empréstimo, os candidatos tinham de preencher determinados requisitos formais, sem os quais a sua obtenção não era possível.

    Assim, era-lhes exigido: a) o preenchimento de vários impressos/tipo fornecidos pela C. G. D., dos quais deveriam constar as identificações dos candidatos a mutuários e dos respectivos fiadores; b) a apresentação do bilhete de identidade, bem como dos cartões de contribuinte e de empresário em nome individual; c) a apresentação de documentos comprovativos dos rendimentos do proponente mutuário e dos fiadores indicados; d) o preenchimento de um documento com a relação dos bens móveis e imóveis do proponente mutuário e do fiador; e e) a aposição de assinaturas em todos os documentos por parte das próprias pessoas neles identificadas, as quais teriam de ser depois devidamente reconhecidas, sendo-o as dos mutuários no Notário, em confronto com o respectivo bilhete de identidade, ou no interior da própria C. G. D., em confronto com as existentes nas fichas de assinaturas ou de "modelo 9", correspondentes às contas de depósitos à ordem dos candidatos a tais empréstimos, e as dos fiadores presencialmente no Notário.

  3. Relativamente a tais empréstimos, e no que respeitava à agência da C. G. D. de Vila Franca do Campo, cumpria ao arguido BB, na qualidade de gerente da mesma, aprovar ou não a sua concessão, desde que individualmente não superiores àquele montante de 2.500.000$00, para o que teria de obter igualmente a anuência, com a aposição da respectiva assinatura, do respectivo subchefe administrativo da mesma agência, CC, ou então, conforme aconteceu durante algum tempo, antes de este último ter tomado posse no referido lugar, o próprio chefe de circunscrição ou director regional da C. G. D., DD.

  4. Após concessão de tal tipo de empréstimo, competia ao gerente da agência, o arguido BB, certificar-se da correcta aplicação do dinheiro para o fim para que fora pedido e do posterior controlo relativo ao correspondente reembolso à C. G. D.

  5. O DD era gerente bancário e a AA responsável por um Instituto de Línguas 7º A AA propôs-se beneficiar da mencionada linha de crédito para o que angariava propostas para contratos de empréstimo para a aquisição de novilhos para recria.

  6. O que fazia mediante a angariação de propostas com as assinaturas dos terceiros candidatos a mutuários e respectivos fiadores devidamente reconhecidas pelas formas acima mencionadas, levando de seguida tais propostas para aprovação ao arguido DD.

  7. Logo que o DD ficava na posse da documentação necessária para instruir o processo de atribuição dos aludidos empréstimos, começava por preencher os impressos respectivos, que, geralmente se encontravam assinados em branco, abrindo desde logo "a zeros", contas de depósito à ordem em nome das pessoas que figuravam como mutuários e reconhecia as assinaturas das mesmas nos contratos pela forma já descrita, ficando a constar, mediante a aposição de um carimbo, " a assinatura confere com a da ficha mod. 9 arquivada neste cofre" .

  8. Seguidamente, o arguido DD autorizava, nos termos já referidos, a concessão de tais empréstimos aos supostos proponentes, em cujas contas à ordem eram creditadas as importâncias mutuadas.

  9. Nalguns casos, procedia ele próprio ao levantamento total ou parcial das importâncias depositadas e entregava-as a FF, HH ou II, que, de seguida, providenciavam pela sua entrega, directa ou através de transferências bancárias, à arguida AA.

  10. Uma vez na posse das mencionadas quantias, a AA tratava de lhes dar destino, gastando-as em proveito pessoal.

  11. O DD, à medida que se iam vencendo os prazos de cumprimento dos contratos já celebrados, transmitia à AA a necessidade de, relativamente a cada um deles, procederem a novas angariações, com vista à rotação de créditos.

  12. A AA, para além de intervenções directas na angariação de mutuários e fiadores, dirigia a actividade dos indivíduos que operavam no terreno na angariação de contratos, os HH e II.

  13. Os arguidos FF e II, para além de procederem à angariação directa de pessoas para aparecerem como mutuários e fiadores nos aludidos contratos, contratavam igualmente outros indivíduos a quem incumbiam de fazer a abordagem de outras pessoas e de as encaminharem para eles com vista ao mesmo objectivo.

  14. A tarefa principal dos colaboradores/angariadores, consistia em arranjar mutuários/fiadores, sem que estes houvessem a noção de contrair ou assegurar o pagamento de qualquer empréstimo, levando-os a assinar impressos por preencher e a ceder os respectivos documentos pessoais ou simplesmente fotocópias dos mesmos, necessários à obtenção por parte da AA dos empréstimos em causa, entregando, nalguns casos, quantias que variavam entre os 5.000$00 e os 10.000$00, como contrapartida das assinaturas e fornecimento da necessária documentação.

  15. Os referidos angariadores tinham na sua posse todos os impressos da C. G. D. necessários à candidatura aos empréstimos da linha de crédito para aquisição e recria de novilhas, os quais para o efeito lhes eram fornecidos pela AA e, por vezes, pelo próprio arguido DD.

  16. Apesar de tais impressos se encontrarem por preencher, os mesmos haviam sido previamente assinalados com uma cruz, pelo DD, nos locais onde deviam ser assinados.

  17. Do conjunto desses impressos, fazia parte o chamado "modelo 5" da C. G. D., que permitia levantar em numerário os montantes dos empréstimos que eram depositados nas contas bancárias abertas em nome das pessoas que constavam neles como mutuárias, e o qual habitualmente o DD utilizava para proceder ele próprio aos levantamentos correspondentes ou para permitir que outros o fizessem.

  18. E também uma folha de formato "A4", assinada em branco, para posterior preenchimento sob a forma de declaração profissional dos respectivos signatários como agricultores.

  19. Noutras vezes as pessoas "cediam" as respectivas assinaturas e/ou facultavam documentos pessoais convencidos de que estavam a contribuir para o Instituto de Línguas de Vila Franca do Campo, pertencente à AA.

  20. Regra geral, os domicílios dos mutuários e/ou fiadores que ficavam a constar dos impressos em causa diziam respeito a alguns dos arguidos e a pessoas conhecidas dos mesmos.

  21. Quanto às pessoas que figuravam como mutuários ou fiadores na documentação destinada aos pedidos de empréstimos em causa, por vezes, as mesmas desconheciam que estavam a...

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