Acórdão nº 07B3555 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 18 de Outubro de 2007

Data18 Outubro 2007
Órgãohttp://vlex.com/desc1/1997_01,Supreme Court of Justice (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I AA e BB intentaram, no dia 8 de Outubro de 2002, contra F.das V. - Publicações, Ldª, CC, DD e EE, pedindo a sua condenação a pagar a cada um € 25 000 e juros desde a citação, com fundamento em danos não patrimoniais ditos resultantes da ofensa ao seu bom nome e honra por via de artigo jornalístico elaborado pelo terceiro, com fotografias tiradas pelo quarto, inseridas em revista da primeira, dirigida pelo segundo, onde se indicara o seu falecido pai, sem ter sido constituído arguido, como um dos principais suspeitos de uma sucessão de homicídios.

Os réus, em contestação, afirmaram não terem tido a intenção de ofender o bom nome e a consideração do pai dos autores nem o destes e que só visaram dar a conhecer as circunstâncias e os factos precisos que apontavam o primeiro como suspeito da prática dos referidos homicídios, concluindo no sentido de a acção ser julgada improcedente ou reduzida a indemnização aos seus justos limites, e os autores, na réplica, negaram os fundamentos da defesa apresentada pelos réus.

Na fase da condensação, no dia 22 de Agosto de 2006, foi proferida sentença, por via da qual os réus foram absolvidos do pedido, sob o fundamento de a notícia se não referir ao autores, e de, a existir ofensa, esta seria ao bom nome do seu progenitor, da qual emergiria um crédito da herança que o seu representante ou o conjunto dos herdeiros deviam fazer valer.

Interpuseram os autores recurso de apelação, e a Relação, por acórdão proferido no dia 8 de Maio de 2007, negou-lhe provimento, reiterando a motivação constante da sentença, acrescentando que os autores só tinham legitimidade para demandar os réus na posição de herdeiros do seu progenitor com vista a preservar a sua honra e bom nome.

Interpuseram os apelantes recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação: - o direito à honra é uma das mais importantes concretizações da tutela da personalidade, consagrado nos artigos e 26º da Constituição, 70º, nº 1, do Código Civil e 6º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; - nos termos do artigos 68º e 71º, nº 1, do Código Civil, a personalidade cessa com a morte e não é alargada a pessoas já falecidas; - não há tutela da inexistente personalidade dos mortos, mas defende-se o direito dos vivos a que os seus mortos sejam respeitados, aos quais o artigo 71º, nº 2, do Código Civil atribui um direito subjectivo, e legitimidade, ainda que não sejam herdeiros, para requerem as providências nele referidas; - são interesses e direitos de pessoas vivas que se protegem, porque elas podem ser, ainda que indirecta ou mediatamente, atingidas pelas ofensas feitas à integridade moral do falecido; - o proémio do nº 2 do artigo 70º do Código Civil justifica a indemnização pelos danos patrimoniais e morais causados aos sucessores do defunto; - não se trata de um crédito hereditário, mas de um direito subjectivo próprio dos familiares do falecido, cujo dano se verificou na sua esfera particular, por virtude de o visado com a noticia já não ter personalidade jurídica.

Responderam os recorridos em síntese de conclusão de alegação: - o artigo 71º do Código Civil visa a protecção do nome, honra e memória de alguém falecido; - os recorrentes não são visados com a notícia e formularam o pedido em nome próprio e não com vista à defesa da memória do pai; - a existir ofensa, ela emerge do facto de os recorrentes serem filhos e herdeiros do ofendido, pelo que só lhes assiste o direito de demandar enquanto pretendem tutelar a sua memória.

II É a seguinte a factualidade declarada assente no acórdão recorrido: 1. FF, professor, bioquímico, faleceu no dia 1 de Novembro de 2000 e os autores são seus filhos.

  1. A revista M.

    , mas tarde designada M.

    , era propriedade da ré F. das V. - Publicações, Ldª, e o seu director era CC.

  2. Na referida revista, na edição de Abril de 2001, foi publicado o artigo que consta a folhas 12 a 19 do processo, com fotografias feitas pelo réu EE, escrito pelo réu DD, onde se expressa: "GG e HH, esses, têm quase a certeza de estar com o pássaro na mão, como lembra agora alguém que prefere não revelar o nome nem as suas ligações à Judiciária. Desconfiam de FF, bioquímico, professor do Instituto Superior de Agronomia (ISA) e escritor que publica, em 1984 (nove anos antes do primeiro crime, portanto, um romance policial com um título sugestivo: "O Estripador de Lisboa". A história? A vida de um homem que mata prostitutas e cujos desempenhos se assemelham ao do estripador de carne e osso. Leia-se uma passagem : "A última vez que alguém a viu [ II] foi à saída do autocarro, cerca da meia noite e vinte minutos, quando se apeou junto ao parque de estacionamento de camionetas de Odivelas, no regresso a casa. Vieram a descobrí-la na manhã seguinte, atirada para uma barraca abandonada depois das última cheias, nas traseiras de um prédio clandestino. Mas aquio que de lá retiraram só em parte correspondia à II, tal como fora na vida. Faltava-lhe um seio e tinha o ventre tão retalhado que os intestinos se espalhavam pelas pernas abaixo". JJ, a primeira esventrada, aparece morta dentro de uma barraca em Odivelas.

    O relato do livro merece um esclarecimento do autor no jornal "E..." de 5 de Junho de 1993, quase dez anos depois de o ter escrito: "Mera coincidência." FF considera que o verdadeiro estripador tem um "comportamento prevertido", motivado por problemas com mulheres, e deixa entender que num crime psicológico há tantos imponderáveis que essa imitação se afigura, à partida, inviável. É certo que não seria a primeira vez que um criminoso seguia um romance para praticar os seus crimes. Como também não seria inédito, num filme, o escritor relatar um crime e depois deixar no ar a ideia de o ter praticado. "Instinto Fatal", interpretado por Sharon Stone, é exemplo disso. Mas FF descreve locais e ambientes nocturnos com o rigor de quem os frequenta, As prostitutas confirmam. É cliente assíduo de uma "boite" na Avenida Duque de Loulé, em Lisboa. Os agentes, aliás, registam em declarações prestadas pelas mesmas que se trata de uma "personagem com comportamento esquisito".

    "... Será ele o estripador? Ninguém tem resposta. Apenas se sabe que em determinada altura, é um dos principais suspeitos. "É pena que nunca tenha sido trabalhado da melhor maneira do ponto de vista policial", confessa um elemento familizarizado com o processo e que pede o anonimato ..." III A questão essencial decidenda é a de saber se os recorrentes têm ou não direito, no confronto dos recorridos, a compensação por danos não patrimoniais sofridos em virtude da referida publicação jornalística.

    Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação dos recorrentes e dos recorridos, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática.

    - liberdade de expressão e de informação na lei portuguesa de origem interna e externa; - tutela legal geral dos direitos de personalidade; - particularidade da ofensa à memória das pessoas falecidas; - ofenderam ou não os recorridos ilicita e culposamente a memória do ascendente dos recorrentes? - constituíram-se ou não os recorridos na obrigação de indemnizar os recorrentes? - sintese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

    Vejamos de per se cada uma das referidas subquestões.

  3. Comecemos com uma breve referência ao regime da liberdade de expressão e de informação jornalística decorrente da lei portuguesa de origem interna e externa.

    A Constituição da República Portuguesa prescreve, por um lado, que os direitos fundamentais nela consignados não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional e, por outro, que as preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 16º).

    A propósito da liberdade de expressão e de informação, está consignado na Declaração Universal dos Direitos do Homem que todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão e que isso implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e de procurar receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão (artigo 19º).

    Além disso, prescreve a Declaração Universal dos Direitos do Homem, no que concerne à intimidade, à honra e à reputação, que ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família ou na sua correspondência nem ataques à sua honra e reputação, e que contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito à protecção da lei (artigo 12º).

    Atendendo à ênfase que a Declaração Universal dos Direitos do Homem dá ao direito à honra e reputação, expressando que ninguém sofrerá ataques em relação a ela, no confronto com a menor ênfase dada ao direito de expressão e de informação, a ideia que resulta é a de que o último é limitado pelo primeiro.

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