Acórdão nº 05P220 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 22 de Março de 2007

Magistrado ResponsávelSOUSA FONTE
Data da Resolução22 de Março de 2007
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça 1.

1.1.

AA, devidamente identificada nos autos, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.05.04, proferido no Pº nº 1408/04-5ª Secção, por estar em oposição com o acórdão do mesmo Tribunal de 23.03.2000, proferido no Pº nº 972/99, também da 5ª Secção e publicado na Colectânea de Jurisprudência STJ (2000), Tomo II, 227.

Alegou, em síntese, que: - enquanto no acórdão recorrido se afirmou «a existência de concurso real entre o crime de tráfico de estupefacientes e o crime de branqueamento, vertidos, respectivamente, nos arts. 21º e 23º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro», - o acórdão fundamento decidiu que os agentes do crime previsto e punido no referido artº 23º não podem ser os próprios traficantes - os agentes do crime previsto no artº 21º, do mesmo diploma.

Deste modo, concluiu, versando ambos os acórdãos sobre a mesma questão de direito e assentando em soluções opostas, deverá ser fixada jurisprudência «no sentido de os agentes do crime do artº 23º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, a que corresponde actualmente o artº 368º-A do Código Penal, não poderem ser os agentes do crime do artº 21º do mesmo diploma; ou seja, pela não existência de concurso real entre os ilícitos penais em questão».

1.2.

Recebido o recurso, a Secção, em conferência, pronunciou-se no sentido da existência de oposição de julgados e determinou o prosseguimento dos autos (acórdão de fls. 102 e segs).

1.3.

Notificados os sujeitos processuais interessados, nos termos do disposto no nº 1 do artº 442º do Código de Processo Penal (CPP), apresentaram alegações o Senhor Procurador-Geral Adjunto e a Recorrente.

O primeiro pronunciou-se no sentido da confirmação do acórdão recorrido e da fixação de jurisprudência no sentido do que aí foi decidido, formulando a seguinte proposta de redacção: «Existe concurso efectivo de crimes quando o autor do crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo art. 21º do DL 15/93, de 22-1, pratica, com os bens ou produtos provenientes dessa conduta, algum dos factos incriminados no art. 23° nº1 do mesmo diploma.

Por sua vez, a Recorrente terminou as suas alegações com as seguintes conclusões: «1.ª Do art.° 23.° do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, ou melhor, da sua previsão normativa decorre que os seus destinatários são terceiras pessoas - ainda que em proveito do próprio traficante - que não os agentes do crime de tráfico de estupefacientes.

  1. Neste sentido, veja-se que a lei portuguesa, nos designados «pós-delitos», expressamente exclui a possibilidade do agente do ilícito-típico precedente poder ser punido em concurso efectivo pelas intervenções posteriores à consumação, quando realizadas pelo próprio.

  2. A revogação do art.° 23.° do aludido Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, o qual corresponde actualmente ao artigo 368.°-A do Cód. Penal, não interfere, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

  3. Como é entendimento pacífico, o intuito de evitar o confisco de bens ilicitamente adquiridos é conatural a todo e qualquer crime de cunho aquisitivo, sendo os factos posteriores impunes quando praticados pelo agente desse crime.

  4. Dão-se por reproduzidos os motivos já referidos, nomeadamente no ponto 5 deste recurso.

  5. A Lei 11/2004, de 27 de Março, que revogou o art.° 23.° do Decreto-Lei n.° 15/93, o qual corresponde ao já mencionado art.° 368.°-A do Código Penal, inseriu-o no Capítulo III - "Dos crimes contra a realizarão da justiça"; clara indicação no sentido de apontar a realização da justiça como sendo o bem jurídico protegido, colocando em crise o entendimento plasmado no Acórdão recorrido e consagrando, assim, a jurisprudência fixada no Acórdão do Supremo de 23 de Março de 2000. Deve pois considerar-se que as condutas de branqueamento de capitais não lesam um outro bem jurídico; não devendo o traficante ser punido em concurso efectivo por tráfico e branqueamento de capitais.

  6. Pelo que, em face do exposto e dos Acórdãos em oposição, deverá ser fixada jurisprudência no sentido de os agentes do crime do art.° 23.° do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, a que corresponde actualmente o art.° 368.º-A do Código Penal, não poderem ser os agentes do crime de tráfico; ou seja, pela não existência de concurso real entre os ilícitos penais em questão.

Termos em que, deve proceder o recurso interposto, fixando-se a jurisprudência em consonância com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Março de 2000, em detrimento do douto Acórdão recorrido, como é de JUSTIÇA».

1.4.

Colhidos os vistos legais, teve lugar a conferência do pleno das Secções Criminais, conforme previsto no artº 443º do CPP.

Tudo visto, cumpre decidir.

  1. Decidindo: 2.1.

A decisão da Secção sobre a verificação da oposição de julgados e sobre o regular processamento do recurso não vincula o pleno das Secções.

Consequentemente, devemos começar pelo reexame destas questões. No acórdão interlocutório escreveu-se, a propósito da primeira, o seguinte: «Estão em causa dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que efectivamente assentam, relativamente à mesma questão de direito, em soluções opostas.

Na verdade, sendo a mesma a questão de direito - a de saber se o agente de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº 21º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, quando pratique os factos descritos no artº 23º do mesmo diploma com os valores proporcionados pela primeira conduta, pode ser punido, em concurso real, pelos dois crimes, ou seja, se, nas referidas circunstâncias, se verifica concurso efectivo entre as duas condutas -, os dois acórdãos optaram por soluções opostas: - o acórdão fundamento entendeu que "os agentes delituosos a que respeita o dito artigo 23º, ..., não podem, ..., ser os próprios traficantes ..."; - o acórdão recorrido, por sua vez, entendeu que, nas aludidas circunstâncias, se verificava "concurso real dos apontados normativos".

[Certo que,] entre a prolação dos dois acórdãos, foi publicada a Lei 11/04, de 27 de Março, cujo artº 55º revogou o artº 23º do DL 15/93 e o artº 53º introduziu um novo preceito no Código Penal - o artº 368-A - com a epígrafe "Branqueamento".

No entanto, a modificação legislativa assim operada em nada influiu na abordagem e resolução daquela questão. Aliás, o acórdão recorrido considerou mesmo o novo artº 368ª-A como «correspondente» ao artº 23º e acrescentou que o concurso real era agora reportado ao artº 21ºdo DL 15/93 e ao artº 368º-A (cfr. fls. 17, notas 8 e 9)».

Pois bem.

2.1.1.

Poderá objectar-se que as condutas apreciadas em cada um dos acórdãos em confronto não são idênticas do ponto de vista dos factos que as concretizaram - enquanto a do acórdão fundamento se traduziu, em síntese, na aplicação directa, pelos autores do tráfico de estupefacientes, dos ganhos proporcionados por tal actividade na aquisição de um automóvel e de imóveis, sempre em seu nome, sem qualquer intermediário ou operação tendente a esconder a origem do dinheiro, a do acórdão recorrido traduziu-se num conjunto de operações, com intervenção formal de diversas pessoas, com vista a dissimular a sua origem ilícita.

A crítica, no entanto, não procede.

A lógica da fundamentação do acórdão de 23 de Março de 2000 leva, com efeito, a concluir que a solução aí adoptada seria sempre a mesma, independentemente dos particulares contornos da actividade posterior dos autores do tráfico de estupefacientes, porquanto a conclusão a que aí se chegou foi a de que «os agentes delituosos a que respeita o dito artigo 23º do Decreto-Lei nº 15/93 não podem ser os próprios traficantes...». E, por isso, é que até considerou desnecessário ajuizar da «aptidão da prova certificada para consentir (ou não consentir) o preenchimento típico daquele ilícito».

2.1.2.

Dir-se-á ainda que não se verifica a exigida oposição, uma vez que, se o acórdão recorrido decidiu que os agentes do crime de tráfico de estupefacientes cometeram, em concurso real com este, o crime de branqueamento, o acórdão fundamento disse que os autores do segundo não podiam ser os próprios traficantes. O primeiro versará sobre um problema de concurso de infracções; o segundo sobre uma questão de autoria.

No entanto, apesar da letra do dispositivo dos dois acórdãos, a sua análise substantiva, designadamente a da motivação do acórdão fundamento, conduz-nos à reafirmação da oposição relevante entre ambos.

A questão da autoria, elemento do tipo objectivo de ilícito (1), precede lógica e naturalmente a da forma especial de aparecimento da infracção em que se traduz o concurso de crimes (2). Enquanto a delimitação daquela constitui tarefa da responsabilidade do legislador, a afirmação ou negação deste é da responsabilidade do juiz a quem, competindo a interpretação da lei, cabe identificar as relações que intercedem entre as disposições legais violadas e dizer se essas relações são tais que impõem o recuo de uma delas perante a preponderância ou a maior amplitude de protecção proporcionada pela outra.

Ora, a decisão proferida pelo acórdão recorrido, ao julgar que aqueles concretos Arguidos cometeram, em concurso real, aqueles dois crimes, tem como pressuposto necessário a admissão de que os autores do crime precedente não estão excluídos do círculo de possíveis autores do crime de branqueamento, contradizendo, deste modo, o dispositivo do acórdão fundamento. Só pode, de facto, ser punido pela prática, em concurso real, de dois crimes quem puder ser autor de ambos. Se o autor do crime precedente não puder ser autor do post-delito, fica irremediavelmente afastada a possibilidade de, em relação a ele, se colocar o problema de um eventual concurso(3).

2.1.3.

Por outro lado, também se poderá argumentar que o acórdão fundamento só se pronunciou sobre a questão da autoria: o agente do crime do artº 23º do DL 15/93 não pode ser o agente do crime do...

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