Acórdão nº 109/15 de Tribunal Constitucional (Port, 11 de Fevereiro de 2015

Magistrado ResponsávelCons. Fernando Vaz Ventura
Data da Resolução11 de Fevereiro de 2015
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 109/2015

Processo n.º 1014/13

  1. Secção

Relator: Conselheiro Fernando Ventura

Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional

  1. Relatório

    1. Por acórdão n.º 2/2013, 1ª S/SS, o Tribunal de Contas recusou o visto ao contrato para “Aquisição de Gasóleo a Granel para Abastecimento das Viaturas que Compõem a Frota dos Serviços Municipalizados de Transportes Urbanos de Coimbra” celebrado em 9 de outubro de 2012 entre o Município de Coimbra e a A., S.A., com fundamento na ilegalidade da assunção do compromisso financeiro inerente ao referido contrato, por violação do disposto no artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro (doravante “Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso” ou “LCPA”), e nos artigos 7.º, n.º 2, e 8.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 127/2012, de 21 de junho, e, bem assim, nos n.ºs 2.3.4.2. a) e 2.6.1. do Plano Oficial de Contabilidade das Autarquias Locais.

      Inconformado, o Município de Coimbra interpôs recurso para o plenário da 1.ª Secção daquele Tribunal, que, através do acórdão n.º 5/2013, negou provimento a tal impugnação, mantendo a recusa de visto ao contrato, embora restringindo o fundamento à violação do disposto nos artigos 5.º, n.º 1, da LCPA e 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 127/2012, de 21 de junho, em virtude de o compromisso assumido por tal contrato não se conter nos fundos disponíveis dos serviços municipalizados.

    2. Novamente inconformado, o Município de Coimbra recorreu para o Tribunal Constitucional, através de requerimento com o seguinte teor:

      MUNICÍPIO DE COIMBRA, Recorrente nos autos em epígrafe, tendo sido notificado do acórdão proferido pelo Plenário da 1.ª Secção desse Tribunal, e com o mesmo não se conformando, vem, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com efeito suspensivo, porquanto,

      1. Entende que os artigos 2.º da Lei 8/2012, de 21 de fevereiro e 2.º do Decreto-Lei n.º 127/2012, de 21 de junho, são inconstitucionais, quando, como resulta do sobredito acórdão, são interpretados no sentido de abrangerem os serviços municipalizados de transportes urbanos de natureza mercantil, uma vez que tal interpretação importa injustificada restrição da autonomia económico-financeira e organizativa dos municípios, violando a garantia institucional da livre iniciativa económica municipal, consubstanciada nos artigos 80.º, alíneas b) e c), 86.º, n.º 3, e (conjugadamente) nos artigos 235.º, 237.º e 238.º da Constituição da República Portuguesa;

      2. Suscitou essa mesma inconstitucionalidade em sede de recurso da decisão de recusa de visto proferida por esse Tribunal.

    3. Admitido o recurso, o recorrente apresentou alegações neste Tribunal, com o seguinte remate conclusivo:

      I - A LCPA restringe, de forma considerável, a capacidade de decisão financeira pública, o mesmo é dizer, e no que aos municípios concerne, a respetiva autonomia financeira – fundamental vertente da autonomia local consagrada nos art.ºs 6.º, n.º 1 e 235.º e seguintes da Constituição;

      II - A interpretação do Tribunal de Contas que motiva o presente recurso pune o Município de Coimbra por ter escolhido (ou mantido a escolha), de entre os dois formatos possíveis de que se pode revestir a respetiva atividade empresarial – o formato publicístico do Serviço Municipalizado e o privatístico da Empresa Local constituída ao abrigo da lei comercial e sujeita em primeira linha ao direito privado (cfr. art.º 2.º da Lei 50/2012, de 31 de agosto – Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local) –, o formato do Serviço Municipalizado;

      III – Por força de tal interpretação o formato Serviço Municipalizado está condenado para aquelas atividades empresariais que impliquem a cobrança aos utentes dos bens ou serviços prestados a preços economicamente significativos (como é o caso das tarifas praticadas pelos SMTUC, cujas receitas cobrem por isso mais de 50% dos custos da empresa);

      IV – Na verdade, deixando a empresa municipal com tal formato de poder beneficiar da margem mínima de manobra (em matéria de gestão de tesouraria) que a lei garante a esta categoria de entidades (ditas «sociedades mercantis») na gestão corrente da respetiva atividade, então outro remédio não restará aos municípios que não a adoção da forma societária e a sujeição ao direito privado, através do formato Empresa Local;

      V - Todas as atividades desenvolvidas em setores básicos da economia reservados aos poderes públicos, ao abrigo do art.º 86.º, n.º 3 CRP – nomeadamente de produção e prestação de bens e serviços essenciais ou de interesse económico geral – estão reservadas ao poder local, designadamente aos municípios: são, a saber, os casos do abastecimento público de água, do saneamento de águas residuais, da recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos, da exploração dos transportes públicos regulares urbanos e locais de passageiros e da distribuição de energia em baixa tensão.

      VI – Ora, a interpretação do Tribunal de Contas contende com a vertente da autonomia organizativa dos municípios objeto também da garantia constitucional, porquanto se não está excluída aos municípios a opção pelo formato societário e pela aplicação em primeira linha do direito privado no desenvolvimento destas específicas atividades económico-empresariais, o formato que mais se lhes ajusta é o do serviço municipalizado, desde logo pela titularidade dos poderes públicos municipais que neles (serviços municipalizados) se mantêm na íntegra, sem necessidade de qualquer expressa e especifica delegação de atribuições e competências;

      VII - A interpretação feita pelo Tribunal de Contas, no sentido de abranger os SMTUC pela LCPA e pelo Decreto-Lei 127/2012, é inconstitucional, por constituir uma excessiva e a todos os títulos injustificada restrição da autonomia económico-financeira e organizativa dos municípios (de escolha do formato organizativo adequado à iniciativa económica municipal em causa), violando a garantia institucional da livre iniciativa económica municipal consubstanciada, nos art.ºs 80.º, al. b) e c) e 86.º, n.º 3, e (conjugadamente) art.ºs 235.º, 237.º e 238.º CRP.

      Termos em que,

      Deve ser considerado procedente o presente recurso, declarando-se, nessa medida, inconstitucional a interpretação que subjaz ao acórdão recorrido, por violação da garantia institucional da livre iniciativa económica municipal consubstanciada, nos art.ºs 80.º, al. b) e c) e 86.º, n.º 3, e (conjugadamente) art.ºs 235.º, 237.º e 238.º CRP.

    4. O Ministério Público apresentou contra-alegações, que concluiu nestes termos:

      1.ª) A “interpretação normativa” recorrida não viola o princípio da “autonomia financeira” dos municípios, tal como decorre dos artigos. 6.º, 237.º, n.º 1, e 238.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição, na medida em que do conteúdo do mesmo, tal como conformado pela lei, não decorre o poder ou competência municipal para assumir um “compromisso” que “ultrapassa os fundos disponíveis”, no sentido legal de “verbas existentes a muito curto prazo”.

      2.ª) A “interpretação normativa” recorrida não viola o princípio da “autonomia organizativa” dos municípios, consagrado no artigo 80.º, alínea c), da Constituição pois, por uma parte, a criação dos SMTUC é anterior ao momento em que a mesma foi ditada e, por outra parte, não impedirá, por si mesma e para o futuro, a alteração da forma empresarial inicialmente escolhida e as demais opções em aberto, de harmonia com um autónomo juízo municipal de preferência quanto à forma organizativa, e quadro jurídico que lhe está associado, em sede das escolhas consonantes com o princípio da legalidade.

      3.ª) A “interpretação normativa” recorrida, que integrou os SMTUC no âmbito subjetivo da LCPA e que se tem como “adquirida”, não viola a “garantia institucional da livre iniciativa económica municipal”, consagrada no artigo 80.º, alínea f), da Constituição, na medida em que seja constitucionalmente conforme a regra de gestão, com critério de tesouraria, das entidades públicas ali consagrada, ou seja, de que as mesmas não podem assumir compromissos que excedam os “fundos disponíveis”, no sentido legal de “verbas existentes a muito curto prazo”.

      Termos em que, por não ocorrer violação dos princípios da “autonomia financeira”, da “autonomia organizativa e da “garantia institucional da livre iniciativa económica” dos municípios, deve ser negado provimento ao presente recursos, mantendo-se a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade respeita.

      Cumpre apreciar e decidir.

  2. Fundamentação

    1. A questão de inconstitucionalidade colocada pelo recorrente versa a dimensão normativa, extraída interpretativamente do preceituado nos artigos 2.º da LCPA e 2.º do Decreto-Lei n.º 127/2012, de 21 de junho, segundo a qual a regulação contida nos referidos diplomas é aplicável aos serviços municipalizados de transportes urbanos de natureza mercantil.

      Para o recorrente, a sujeição de tais entes públicos ao regime constante dos referidos diplomas importa “injustificada restrição da autonomia económico-financeira e organizativa dos municípios”, na vertente de escolha do “formato organizativo adequado à iniciativa económica municipal em causa”, o que considera infringir a garantia de livre iniciativa económica consubstanciada nos artigos 80.º, al. b) e c), 86.º, n.º 3, e (conjugadamente) 235.º, 237.º e 238.º, todos da Constituição. Estaria criada, de acordo com a explicitação constante das alegações, uma restrição à autonomia local, em virtude da colocação de obstáculo intransponível à escolha do formato organizativo serviço municipalizado.

      Assim formulada, a questão normativa posta a controlo versa a conformidade constitucional do âmbito subjetivo conferido à disciplina da assunção de compromissos financeiros de entes públicos contida nos artigos 2.º da LCPA e do Decreto-Lei n.º 127/2012, de 21 de junho, por forma a abranger os serviços municipalizados de transportes urbanos, como o de...

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