Acórdão nº 2234/08-1 de Tribunal da Relação de Évora, 09 de Dezembro de 2008

Magistrado ResponsávelCARLOS BERGUETE COELHO
Data da Resolução09 de Dezembro de 2008
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora* 1. RELATÓRIO Nos autos de inquérito com o nº..., correndo termos nos Serviços do Ministério Público da Comarca de ..., o Digno Procurador-Adjunto, por despacho de 09.07.2008, designadamente consignou: Os factos comunicados pela GNR são indiciariamente subsumíveis ao tipo legal do crime de violência doméstica, pp art.152° n.º 1 al. b) e n.º 2 do Código Penal.

Atenta a determinação efectuada na directiva de 9 de Janeiro de 2008, definida por S. Exª o Conselheiro Procurador Geral da República (circular 1/2008 - DE), onde se refere que "sempre que esteja em causa investigação relativa aos crimes previstos no art.1°, al. j) a m) do CPP (...) o Ministério Público determinará, no início do inquérito, a sujeição deste a segredo de justiça...", nos termos do disposto no art.86° n.º 3 do CPP.

Dado que o crime em investigação nestes autos é punível com pena de prisão até cinco anos, tratando-se, pois, atenta a natureza do bem jurídico pela incriminação de "criminalidade violenta" a que alude o art.1° al. j) do CPP, determino a aplicação aos autos de segredo de justiça.

Impõe o art.86° n.º 3 CPP que esta decisão do Ministério Público seja validada pelo Juiz de Instrução Criminal no prazo de 72 horas.

Assim sendo, ordeno a remessa dos autos à Mma. JIC, promovendo-se que a Mma. JIC se abstenha de proferir decisão no sentido de validação ou da não validação da decisão de submeter o inquérito a segredo de justiça, recusando a aplicação da norma do n.º 3 do art.86º do CPP, por inconstitucionalidade material deste normativo com os fundamentos que se passam a expor (...) Por sua vez, a Exma. Juiz de Instrução, em 18.07.2008, proferiu despacho, do qual, mormente, resulta: Por despacho datado de 09 de Julho de 2008, o Digno Magistrado do Ministério Público determinou a sujeição do presente inquérito a segredo de justiça, por aplicação da directiva de 9 de Janeiro de 2008 emitida pela Procuradoria - Geral da República (Circular 1/2008 - DE).

Na sequência dessa decisão, e tendo por referência o artigo 86.°, n.º 3, do Código de Processo Penal na parte em que exige a validação judicial, requer a abstenção de decisão de validação ou não validação, recusando a aplicação do artigo 86.°, n.º 3, do Código de Processo Penal, por inconstitucionalidade material deste preceito legal, nos moldes que resume em sede de conclusão do seguinte modo: I - O acto de validação da decisão do Ministério Público de sujeitar o inquérito a segredo de justiça pelo Juiz de Instrução Criminal traduz uma confusão de funções constitucionais do Ministério Público e do Juiz de Instrução Criminal do inquérito; II - Tal acto de validação coloca o Ministério Público na acção penal prévia numa relação de subordinação e dependência processual do Juiz de Instrução Criminal; III - Em consequência, o normativo do artigo 86.°, n.º 3, do Código de Processo Penal, atinge a estrutura acusatória do processo penal e o estatuto constitucional da Magistratura do Ministério Público, pondo em causa o princípio do monopólio da acção penal pelo Ministério Público e a sua autonomia; IV - Desta forma atinge a imparcialidade e a função jurisdicional e consequentemente garantias judiciárias fundamentais do Estado de direito democrático; V - A intervenção do Juiz de Instrução Criminal no acto de sujeição do inquérito a segredo de justiça não se encontra legitimada por qualquer direito fundamental; VI - Assim, a norma do artigo 86.°, n.° 3, do Código de Processo Penal viola o disposto nos artigos 2.°, 32.°, n.º 5, e 219.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, pelo que deve ser desaplicada por inconstitucionalidade material.

Os tribunais, sendo independentes e apenas estando sujeitos à lei, não podem, nos feitos submetidos a julgamento, aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (cfr. artigos 203.° e 204.° da Constituição da República Portuguesa).

(...) O normativo que se pretende ver desaplicado, por ser contendor com parâmetros fundamentais, vem previsto no artigo 86.°, n.º 3, do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, e preceitua do seguinte modo: «Sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas».

Constitui um elemento integrador do novo paradigma introduzido com a reforma do processo penal operada pela referida lei no que ao regime do segredo de justiça concerne.

Assim, a regra da publicidade do processo penal, sob pena de nulidade (cfr. artigo 86.°, n.º 1, do Código de Processo Penal) passou a aplicar-se à fase de inquérito, com duas excepções: quando o juiz de instrução, mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido e ouvido o Ministério Público, determinar, por despacho irrecorrível, a sujeição do processo, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos ou participantes processuais (cfr. artigo 86.°, n.º 2, do Código de Processo Penal) ou quando o juiz de instrução validar a decisão do Ministério Público que determinar a aplicação do segredo de justiça ao processo, durante a fase de inquérito, sempre que entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem (cfr. artigo 86.°, n.º 3, do Código de Processo Penal).

Muito embora a intervenção do juiz de instrução não tenha um sentido unívoco numa e noutra excepção, já que na primeira relevam os interesses dos sujeitos ou participantes processuais (como a defesa do seu bom nome e da reserva da vida privada) e na segunda, aquando da validação da decisão do Ministério Público, relevam os interesses da investigação ou os interesses dos sujeitos processuais (preponderando ainda o exercício do direito de defesa do arguido na decisão de levantamento do segredo de justiça a que alude o artigo 86.°, n.º 5, do Código de Processo Penal), parece que o seu fundamento, inerente à função de "juiz das liberdades", surte associado aos valores que mais recentemente têm vindo a justificar o segredo de justiça.

Se este tradicionalmente visava a garantia da eficácia da investigação criminal, a imparcialidade do processo e do julgamento e a preservação da vida privada do arguido (que se presume inocente até trânsito em julgado da condenação), com o debate que se gerou na comunidade jurídica, é justificado de modo mais intenso com a defesa da reserva da vida privada, do bom nome e da reputação dos ofendidos, arguidos ou outros intervenientes no processo crime e, bem assim, com a necessidade de garantir o respeito do princípio da presunção de inocência do arguido (artigo 32.°, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa).

(...) Por um lado, «A regra da publicidade constitui assim uma forma de assegurar a plena e ampla autenticidade e independência dos intervenientes processuais arguidos, ofendidos, assistentes - que, cobertos por ela, podem acompanhar, vigiando, a forma como o tribunal se comporta na administração da justiça; e este, por seu turno, ganha força para poder «impor» as decisões que toma» (M. Simas Santos e M. Leal - Henriques, Código de Processo Penal Anotado, I volume, 2.a edição, 2003, Rei dos Livros, página 452). Este princípio, como visto, sofreu um alargamento para as fases preliminares do processo, em parte como reflexo da mediatização da sociedade e de a mesma ter determinado que o acompanhamento dos casos em apreciação na Justiça não se satisfaça já apenas com o espaço da audiência de julgamento e, em parte, como decorrência das novas leituras em termos da conformação das garantias de defesa potenciadas pelo processo e do papel que a publicidade e o acesso ao conteúdo do mesmo podem desempenhar na estruturação dessas garantias e tendo surgido como um dos corolários do Estado de Direito no que se refere à administração da Justiça, com repercussão directa na conformação das garantias de defesa do arguido, trata-se de um princípio que encontra a sua justificação última na necessidade de fiscalização e controlo da actividade dos tribunais pelos cidadãos, e no reforço da legitimidade e do acatamento das decisões destes (veja-se o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 28 de Fevereiro de 2008, a propósito da aplicação do regime processual penal do segredo de justiça ao processo contra-ordenacional, n.º convencional PGRP00002941, in www.pgr.pt).

(...) Por outro lado, ao segredo de justiça vem a ser atribuída uma dupla função de tutela: por um lado, de valores tributários de direitos individuais fundamentais do...

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