Acórdão nº 596/08 de Tribunal Constitucional (Port, 10 de Dezembro de 2008

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução10 de Dezembro de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 596/2008 Processo n.º 1170/07 2.ª Secção

Relator: Conselheiro Mário Torres

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional.

1. Relatório

A., SA, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra a sentença do Tribunal do Comércio de Lisboa, de 19 de Setembro de 2007, que julgou improcedente o recurso deduzido contra o despacho da Autoridade da Concorrência (AdC), de 28 de Março de 2007, que indeferiu o requerimento de arguição de nulidades apresentado, em 26 de Janeiro de 2007, pela ora recorrente, relativas às buscas e apreensão de documentos que foram efectuadas nas suas instalações, em 16 de Janeiro de 2007, no âmbito do processo de contra-ordenação em que é arguida.

De acordo com o requerimento de interposição de recurso, a recorrente pretendia que o Tribunal Constitucional apreciasse a inconstitucionalidade: (i) “da norma que resulta da interpretação do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Jurídico da Concorrência, aprovado pela Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, no sentido de conferir competência ao Ministério Público para autorizar buscas à sede e domicílio profissional de pessoas colectivas, por violação dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, da CRP e do princípio da reserva de juiz nele consagrado”; (ii) “da norma que resulta da interpretação conjugada do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, e do artigo 179.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), no sentido de conferir competência ao Ministério Público para apreender ou autorizar a apreensão de correspondência, por violação dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1, 2 e 4, da CRP”; e (iii) “da norma que resulta da interpretação do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, e do artigo 42.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, no sentido de que a correspondência aberta (circulares, mensagens de correio electrónico e documentos anexos, arquivados em computador ou impressos) pode ser apreendida e utilizada como meio de prova em processo contra-ordenacional, por violação dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.º 4, ambos da CRP”. Estas três questões de inconstitucionalidade teriam sido suscitadas pela recorrente, respectivamente, nos artigos 79.º e 80.º e na conclusão IX, no artigo 67.º e na conclusão VII e nos artigos 82.º, 85.º, 86.º, 90.º, 92.º e 110.º e conclusões XI, XII e XIII da impugnação judicial endereçada ao Tribunal do Comércio de Lisboa.

No Tribunal Constitucional, o relator proferiu despacho para apresentação de alegações, acrescentando que as partes deveriam pronunciar-se, querendo, sobre a eventualidade de o Tribunal vir a decidir não conhecer do objecto do recurso: (i) na parte respeitante à segunda questão de inconstitucionalidade identificada no requerimento de interposição de recurso, por a decisão recorrida não ter aplicado, como ratio decidendi, o critério normativo arguido de inconstitucional; e (ii) na parte respeitante à terceira questão de inconstitucionalidade identificada no requerimento de interposição de recurso, por, nos locais indicados aí pela recorrente como sendo aqueles em que suscitou tal questão perante o tribunal recorrido, não ter colocado nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa (não reportando a normas de direito ordinário ou a qualquer interpretação dessas normas, devidamente identificada, a violação de normas ou princípios constitucionais), antes imputando directamente à actuação da AdC, em si mesma considerada, a violação de comandos constitucionais.

A recorrente apresentou alegações, em que, reconhecendo que a decisão recorrida não chegara a aplicar o critério normativo que integrava a referida segunda questão de inconstitucionalidade, abandonou esta questão, mas, ao invés, sustentou a adequada suscitação da terceira questão como uma questão de inconstitucionalidade normativa, tal como viria, aliás, a ser entendida claramente pelo tribunal recorrido e por ele efectivamente apreciada. Circunscrevendo as suas alegações às mencionadas primeira e terceira questões de inconstitucionalidade, a recorrente sintetizou o aí aduzido nas seguintes conclusões:

“1. No âmbito da aplicação da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, que aprovou o regime jurídico da concorrência, e em sede de processo contra-ordenacional, a Autoridade da Concorrência realizou em 16 de Janeiro de 2007, ao abrigo de um mandado emitido por uma magistrada de turno do Ministério Público, diligências de busca na sede e instalações da recorrente, tendo apreendido correspondência diversa (designadamente circulares e mensagens de correio electrónico) no decurso das buscas.

2. O entendimento, subjacente à decisão recorrida, segundo o qual as buscas realizadas pela Autoridade da Concorrência na sede de pessoas colectivas, ao abrigo dos poderes de inquérito que lhe são conferidos pelas normas do artigo 17.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, não constituem buscas domiciliárias, pelo que a entidade competente para emitir os mandados correspondentes é o Ministério Público, é materialmente inconstitucional por violação do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 34.º da CRP e do princípio da reserva de juiz aí consagrado.

3. A generalidade da doutrina constitucionalista admite que, por si só (imediatamente) ou em conjugação com outros direitos fundamentais (como, nomeadamente, o direito de iniciativa económica, o direito à propriedade ou o direito à tutela do segredo comercial), a garantia de inviolabilidade do domicílio é extensível às pessoas colectivas, designadamente as pessoas colectivas de direito privado, como é o caso da ora recorrente.

4. Para além de considerar que o âmbito de protecção da garantia de inviolabilidade do domicílio consagrada no artigo 34.º da CRP se estende à sede e instalações das pessoas colectivas, a doutrina converge em sentido idêntico no que respeita à titularidade deste direito subjectivo fundamental, considerando que, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 12.º da CRP, a inviolabilidade do domicílio não é indissociável da personalidade humana ou da pessoa física, sendo, portanto, compatível com a específica natureza das pessoas colectivas.

5. As empresas devem beneficiar de uma esfera específica de reserva e sigilo merecedora de tutela equiparável à que é conferida à «habitação» das pessoas físicas, nomeadamente em atenção ao facto de que é na sede e instalações destas pessoas colectivas que se concentram as suas actividades industriais, comerciais ou de investigação; os seus dados de negócio e documentação contabilística e financeira; os haveres pessoais dos seus funcionários, administradores e trabalhadores; informação sobre clientes e fornecedores; planos de negócios e orçamentos; registos de declarações fiscais; documentação bancária e relativa a créditos e financiamentos, etc.

6. O facto de, nos termos do n.º 2 do artigo 12.º da CRP, as pessoas colectivas gozarem dos direitos fundamentais compatíveis com a sua natureza, por direito próprio, corresponde a uma limitação, consensualmente reconhecida, ao princípio do carácter individual destes direitos.

7. A circunstância de ser incriminada, nos termos do artigo 187.º do Código Penal, a violação de bens jurídicos e valores eminentemente pessoais específicos de pessoas colectivas (como o prestígio, a confiança e a credibilidade) reforça o entendimento segundo o qual a garantia de inviolabilidade do domicílio é compatível com a natureza das pessoas jurídicas.

8. Acresce que, nos termos da jurisprudência mais recente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a protecção do domicílio decorrente do artigo 8.º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais estende-se inequivocamente à «sede e delegações» das empresas (cf. acórdão Colas Est v. França, de 16 de Abril de 2002, que concluiu pelo carácter desproporcionado das disposições de um regime legal de direito francês, aplicáveis a investigações a empresas no âmbito da fiscalização de práticas anti-concorrenciais, segundo as quais não seria necessária autorização judicial prévia para diligências de busca na sede e instalações de pessoas colectivas).

9. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem constitui um elemento hermenêutico de enorme importância na densificação, normativa e jurisprudencial, das normas consagradoras de direitos fundamentais, quer a nível nacional quer a nível comunitário (neste segundo plano, o valor das normas da Convenção Europeia e da aludida jurisprudência enquanto padrões de interpretação do direito comunitário foi, inclusivamente, reforçado com a adesão formal da União Europeia àquela Convenção por via do Tratado de Lisboa, de 13 de Dezembro de 2007 – cf. nova redacção dos n.ºs 2 e 3 do artigo 6.º do Tratado da Comunidade Europeia), pelo que não poderá deixar de ser tida em conta na interpretação do disposto no artigo 34.º da CRP.

10. Aplicando-se a garantia de inviolabilidade do domicílio à sede e instalações das pessoas colectivas, verifica-se que a realização de buscas e apreensões nas instalações da recorrente é, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 34.º da CRP, um acto sujeito a reserva de juiz (o que é confirmado, na legislação ordinária, pelas disposições do artigo 177.º, n.º 1, e 269.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, na redacção vigente à data em que foram autorizadas e tiveram lugar aquelas diligências), pelo que a interpretação do artigo 17.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, no sentido de que a «autoridade judiciária» referida nesta última norma não tenha de ser, necessariamente, um magistrado judicial é materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 4, e 34.º, n.º...

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