Acórdão nº 08P2869 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 23 de Outubro de 2008

Magistrado ResponsávelSIMAS SANTOS
Data da Resolução23 de Outubro de 2008
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)
  1. O Tribunal Colectivo da 1.ª Vara Mista de Guimarães (proc. n.º 1925/01) condenou o arguido AA, pela prática de um crime de abuso sexual qualificado de menores dependentes, na forma continuada, dos art.ºs 173°, n° 1, 172°, n° 1, 177°, n° 3 e 30°, n° 2 do C. Penal, na pena de 6 anos de prisão, bem como no pagamento à demandante da quantia de € 49.900,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora às taxas legais sucessivamente aplicáveis, desde a data da notificação do pedido cível e até integral pagamento.

    Inconformado, recorreu para a Relação de Guimarães, impugnando o julgamento das seguintes questões de facto: (i) de todos os factos provados, à excepção de ser o pai da menor BB, nascida a 10/04/86, de ser viúvo, encontrando-se a viver em união de facto com uma companheira, de quem tem um filho com 2 anos de idade; de se encontrar desempregado e de nada constar do seu certificado de registo criminal; (ii) de saber se ao dar como não provados tais factos o Tribunal a quo violou os princípios da presunção de inocência, da verdade material, da legalidade e o dever de isenção e imparcialidade; (iii) saber se a pena em que foi condenada é excessiva e desajustada; (iv) e, saber se a indemnização fixada é excessiva e desajustada.

    Aquele Tribunal Superior, por acórdão de 6.2.2008, decidiu julgar totalmente improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.

    Ainda inconformado, recorre para este Supremo Tribunal de Justiça, suscitando no texto e nas conclusões da sua motivação as questões de: - omissão de pronúncia; - inadequado julgamento da questão de facto - valoração excessiva da perícia da personalidade - parcialidade do tribunal de 1.ª Instância no julgamento do arguido; - condenação; - medida da pena e quantum da indemnização Respondeu o Ministério Público junto do Tribunal recorrido que concluiu na sua resposta não ter o recorrente rebatido específica e directamente as conclusões da decisão recorrida, ficando-se por uma reedição da motivação apresentada no recurso interposto da decisão da 1ª instância, deixando de impugnar validamente a matéria de facto fixada, nomeadamente não logrando infirmá-la nos termos do art° 410° do C. P. Penal, sendo que a pena se mostra adequada.

    Distribuídos os autos neste Supremo Tribunal de Justiça, teve vista o Ministério Público que se pronunciou pelo improvimento do recurso, acompanhando motivadamente a resposta do Ministério Público junto da Relação de Guimarães, considerando, além do mais, que «não estando em causa meios de prova proibidos (art. 722.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil), mas apenas a valoração que lhes foi conferida (conjuntamente com os demais elementos de prova) o reexame de tal matéria escapa ao conhecimento deste Supremo Tribunal» e que merece dúvidas a adopção da figura de crime continuado, por não resultar da matéria de facto provada qualquer solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa, mas antes um sucessivo, procurado e violento trato sexual com a menor/filha e que mesmo no entendimento da decisão recorrida, a repetição da cópula agrava a responsabilidade do arguido, por via da maior ilicitude (no caso entre 11.9.2000 e 18.5. 2001 o arguido manteve cópula completa com a menor, cerca de duas vezes por semana), para além da circunstância de a menor se encontrar na sua exclusiva dependência (por morte da mãe).

    Foi cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do CPP.

    Respondeu, então, o recorrente, reiterando os fundamentos de facto e de direito por si invocados na sua motivação de recurso, entendendo que pode e deve o Supremo Tribunal de Justiça apreciar se há uma insuficiência de reexame crítico do caso sub judice e da prova produzida em audiência de julgamento, que inquina o douto acórdão do vício da nulidade, nos termos do disposto nos art.ºs 425°, n.° 4, 379°, n.° 1, al. a), e 374°, n.° 2, do CPP, invocando o acórdão proferido no por este Tribunal no proc. n.º 2519/05-5.

    E acrescentou: Mas mais relevante que qualquer questão formal, o recorrente, em jeito de desabafo, do qual desde já se penitencia, pergunta o seguinte: 1. Será que não tem o Recorrente direito a um Julgamento justo e isento? 2. Será que não tem o Recorrente direito a ter tribunal rigoroso, objectivo, isento. Será que não tem direito a este Tribunal não formule de um juízo arbitrário ou intuitivo sobre a verificação, ou não, de um facto ou do próprio crime pelo qual foi condenado? 3. Será que não tem o Recorrente direito a ter um Tribunal e um Julgador que seja capaz de se abstrair do crime de que vem acusado - que é para si hediondo e tem levado a que o Recorrente viva um inferno desde o dia 18 de Maio de 2001, e que seguramente se perpetuará para além da decisão a proferir nos presentes autos, porque a dor, revolta e mágoa de ser vítima de uma acusação vil por parte da sua própria filha, não mais será apagada - julgando os factos, analisando a prova e formado a sua convicção de forma objectiva, isenta e racional? O Recorrente quer acreditar que tem esse direito e que este Supremo Tribunal de Justiça fará o exame crítico que o processo carece, particularmente de todos os depoimentos testemunhais, nomeadamente (e entre outros) da alegada ofendida - sua filha BB - e da psicóloga CF, bem como, do menosprezado diário (veja-se o que lá é escrito, particularmente no alegado dia em que se terá consumado a cópula, veja-se a sua reacção e a efabulação que a menor faz, e o relato que nos dá do passeio que a levou até às Taipas com a "PP", o "Porras" e depois com o "Valter", um miúdo que "...é bastante meigo e brincalhão a beijar.." - tudo depois de ter sido alegadamente abusada sexualmente pelo pai) e da demais prova produzida em sede de audiência de julgamento.

    Não exige o Recorrente concordância, mas sim um verdadeiro exame crítico, que não se deixe previamente contaminar pelo tipo de crime em julgamento. Todos ou a maioria serão pais, mas não permitam que a repugnância que resulta de um crime desta natureza, impeça os Insignes Conselheiros de proceder ao reexame crítico da prova e de todo o processado.

    Se tal acontecer este Tribunal será capaz de concluir que não existe prova suficiente, segura e inequívoca da prática do crime. E se não fosse erros ocorridos neste processo, particularmente no acondicionamento do feto (ou o que restava dele) abortado, e estamos certos que este Tribunal concluiria de forma segura e inequívoca que a vítima era o Recorrente e não alegada ofendida.

    Sobre a pena damos por reproduzido o por nós anteriormente defendido.» Colhidos os vistos, teve lugar a conferência, pelo que cumpre conhecer e decidir.

    2.1.

    E conhecendo.

    É a seguinte a factualidade apurada pelas instâncias: Factos provados: O arguido é pai da menor BB, nascida a 10 de Abril de 1986.

    Em 22 de Novembro de 1999 faleceu a mãe desta, passando a mesma, juntamente com a irmã mais nova, a residir com o arguido, na freguesia de S....., desta comarca.

    Desde essa altura que a menor ficou responsável pelas tarefas domésticas, confeccionando as refeições, nomeadamente o almoço ás quartas e sextas-feiras, fazendo a limpeza da casa e tratando das roupas.

    O comportamento do arguido alterou-se após a morte da mulher, passando a ser agressivo com a menor BB e a controlar os seus movimentos.

    Nesta altura, a menor era frequentemente agredida pelo arguido, justificando este comportamento devido ás faltas à escola e as más companhias, incluindo rapazes, com quem no seu entender a BB andava, colocando-a de castigo se as tarefas domésticas não estivessem do seu agrado.

    No dia 8 de Setembro de 2000, por volta das 22 horas, o arguido, regressado a casa do trabalho e aproveitando-se da ausência da filha mais nova, MR, dirigiu-se ao quarto da BB e disse-lhe ‘Tu andas a sair com rapazes, por isso eu quero ver como está isso".

    Depois, ordenou à menor que despisse o pijama, tendo a mesma retorquido que não era necessário despir-se e que o arguido tinha que confiar nela.

    Insistindo para que a BB tirasse a roupa a fim de a examinar, esta com receio e medo que o arguido, seu pai, lhe batesse, acabou por tirar a roupa, ficando completamente nua em cima da cama.

    Então, o arguido aproximou-se da menor, abriu-lhe as pernas e enquanto ele próprio se despia da cintura para baixo, introduziu-lhe os dedos na vagina, sem dizer o que quer que fosse.

    De seguida, deitando-se em cima da menor, esfregou-lhe o pénis erecto na vagina, tentando, durante dez a quinze minutos, introduzi-lo no seu interior.

    A menor, queixando-se com dores, tentou evitar a penetração esquivando-se com mudanças de posição do seu corpo, acabando o arguido por a abandonar sem conseguir a penetração.

    Passados uns dias, em 11 de Setembro de 2000, na ausência da filha mais nova, MR, o arguido dirigiu-se ao quarto da BB, ordenando-lhe de viva voz e de forma áspera para se despir A menor conseguiu fugir, mas de imediato foi encontrada no quarto do arguido, onde este a obrigou a despir-se.

    Logo após, o arguido ordenou-lhe que se deitasse na cama e colocando-se em cima dela, novamente tentou introduzir o pénis erecto na sua vagina, o que conseguiu, indiferente à queixa de dores da menor, ejaculando no seu interior alguns minutos depois.

    A partir de então e até 18 de Maio de 2001, no interior da residência de ambos, o arguido passou a manter com a menor, cerca de duas vezes por semana, relações de cópula completa, sempre contra a sua vontade e conforme descrito.

    As relações de cópula decorriam normalmente no quarto da menor ou no quarto do arguido, e quando a MR, irmã daquela, estava a ver televisão, decorriam primeiro andar, onde havia um quarto mobilado apenas com um divã e onde era obrigada a deitar-se.

    O arguido nem sempre ejaculava no interior da vagina da menor, pois esta, queixando-se com dores, dificultava a penetração, desviando-se, agarrando-se na cama e arqueando o corpo.

    Durante o tempo que manteve as descritas condutas, o arguido dizia à menor que esta era uma situação que a beneficiava, pois, mais...

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