Decisões Sumárias nº 174/08 de Tribunal Constitucional (Port, 31 de Março de 2008

Magistrado ResponsávelCons. Maria Lúcia Amaral
Data da Resolução31 de Março de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

DECISÃO SUMÁRIA N.º 174/2008

Processo nº 1154/2007 3ª Secção

Relatora.: Conselheira Maria Lúcia Amaral

Decisão Sumária

Recorrente: Ministério Público

Recorrido: A.

I

Relatório

  1. A representante do Ministério Público junto das Varas de Competência Mista Cível e Criminal de Sintra recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), do despacho proferido pelo Juiz da 1.ª Vara Mista de Sintra em 20 de Setembro de 2007, porquanto

    Naquele despacho entendeu-se que a declaração de contumácia não suspendia o decurso do prazo de prescrição, declarando-se o procedimento criminal extinto com tal fundamento, recusando-se a aplicação da norma extraída das disposições conjugadas dos artigos 119.º, n.º 1, al. a) do Código Penal e do artigo 336.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, ambas na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspendia com a declaração de contumácia, na linha do Assento n.° 10/2000, de 19 de Outubro de 2000, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no DR – 1.ª Série – de 10 de Novembro de 2000, com o fundamento de que essa interpretação daquelas normas violava o disposto no artigo 29.º, n.º 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa.

    Admitido o recurso, cumpre apreciar e decidir.

    II

    Fundamentos

  2. A norma que é objecto do presente recurso foi, recentemente, apreciada em sede de fiscalização abstracta pelo Tribunal Constitucional, o que justifica a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional).

    Com efeito, no Acórdão n.º 183/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, este Tribunal, reunido em Plenário, declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição, da norma extraída das disposições conjugadas do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia.

    É a seguinte a fundamentação desta decisão:

  3. A delimitação do objecto do processo

    A questão que se coloca é a de saber se terá ou não havido uma violação do princípio da legalidade criminal a que alude a Constituição da República Portuguesa nos números 1 e 3 do artigo 29.º, violação essa geradora de inconstitucionalidade da norma extraída das disposições conjugadas do artigo 119º, nº 1, alínea a), do Código Penal e do artigo 336º, nº 1, do Código de Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia.

    Como se sabe, o instituto da suspensão de prescrição do procedimento criminal – pela primeira vez previsto na reforma de 1972 do Código Penal de 1886 – veio a ser introduzido no artigo 119º, nº 1, do Código Penal de 1982. O teor do referido preceito era o seguinte:

  4. A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:

    a) O procedimento criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de uma autorização legal ou de uma sentença prévia a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial para juízo não penal;

    b) O procedimento criminal esteja pendente, a partir da notificação do despacho de pronúncia ou equivalente, salvo no caso de processo de ausentes;

    c) O delinquente cumpra no estrangeiro uma pena ou uma medida de segurança privativa da liberdade.

    Em 1987 veio a ser aprovado o Código de Processo Penal que, por sua vez, criou uma figura processual nova, a “declaração de contumácia”, dispondo no artigo 336.º, n.º 1, o seguinte:

    A declaração de contumácia é da competência do presidente e implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, sem prejuízo da realização de actos urgentes nos termos do artigo 320.º.

    A aprovação deste preceito gerou a interpretação de que a declaração de contumácia prevista no artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal seria uma causa de suspensão da prescrição para os efeitos do artigo 119.º, n.º1, do Código Penal.

    Surgiu, também, a interpretação contrária no sentido de que tal interpretação não seria possível e que a declaração de contumácia não poderia integrar a previsão do artigo 119.º, n.º 1.

    A divergência jurisprudencial acabou por dar origem ao Assento n.º 10/2000 (publicado no Diário da República, 1ª Série-A, de 10 de Novembro de 2000) que fixou a seguinte jurisprudência:

    No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal.

    A questão que em sede de fiscalização da constitucionalidade se coloca é a de saber se será ou não conforme ao princípio da legalidade criminal, consagrado no artigo 29.º, nos 1 e 3 da Constituição, admitir que, à luz do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constitua causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal.

    Poderá, porém, questionar-se se tal problema relativo ao âmbito do princípio da legalidade criminal se insere no domínio da actividade do Tribunal Constitucional.

    Esta questão não tem sido objecto de jurisprudência uniforme e tem suscitado dois tipos de resposta de que são paradigmáticos os Acórdãos 110/07 e 524/07, os dois contrários um ao outro e ambos com votos de vencido.

    Assim, no Acórdão n.º 110/07 a segunda secção do Tribunal Constitucional decidiu:

    Julgar inconstitucional, por violação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República, a norma extraída das disposições conjugadas do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia.

    Pelo contrário, no Acórdão n.º 524/07, a primeira secção do Tribunal Constitucional entendeu que não podia tomar conhecimento do recurso, isto é, que não podia apreciar a questão de constitucionalidade que se suscitara nas instâncias:

    Nestes termos, acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, em não tomar conhecimento do objecto do recurso.

    Havendo pelo menos duas decisões sumárias favoráveis a uma das duas posições (vejam-se, nomeadamente, as decisões sumárias nºs 379/07 e 576/07), estão reunidas as condições para que a questão se possa decidir em sede de fiscalização abstracta, nos termos do artigo 281.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e do artigo 82º da Lei do Tribunal Constitucional.

    Vejamos pois os termos em que o problema se coloca.

    Sabe-se que a Constituição não acolheu um sistema de recurso de amparo ou de queixa constitucional mas sim um sistema de fiscalização normativa da constitucionalidade, que impede que o Tribunal conheça de actos (não normativos) dos poderes públicos que sejam directamente lesivos de direitos fundamentais, constitucionalmente tutelados. Nessa medida, não pode também o Tribunal conhecer da eventual inconstitucionalidade de decisões judiciais em si mesmas tomadas.

    Mantém-se exemplar, a este propósito, a explicação do Acórdão n.º 674/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de 2000) que foi recentemente transcrito no já citado Acórdão n.º 524/07 e que aqui se repete:

    […] mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma operação equivalente, designadamente a uma interpretação ‘baseada em raciocínios analógicos’, o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade.[…]

    […] Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais – designadamente os tribunais supremos de cada uma das respectivas ordens –, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu ‘sentido natural’ (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica.

    Ora, um tal entendimento – alargando de tal forma o âmbito de competência do Tribunal Constitucional – deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da...

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