Acórdão nº 1985/10.4TACBR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 16 de Maio de 2012

Magistrado ResponsávelLU
Data da Resolução16 de Maio de 2012
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra Em decisão instrutória proferida nos autos supra identificados, decidiu o tribunal “proferir despacho de não pronúncia do arguido A... pelos crimes de difamação agravada, previstos e punidos pelos artigos 180º, nº 1 e 183º, nº1, alínea a), ambos do Código Penal, que lhe foram imputados pelo assistente.

” Inconformado com o decidido, o assistente interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição): “1.

Vem o presente recurso interposto da decisão instrutória que optou por não pronunciar o arguido A... pela prática consumada, em autoria material, de dois crimes de difamação, p. e p. no artigo 180º nº 1, com referência ao artigo 183º nº 1 al. a), ambos do Código Penal.

  1. A decisão assim posta em crise peca, salvo o devido respeito, por uma clara falta de valoração prático-axiológica de toda a realidade indiciária relevante.

  2. Com efeito, na certeza de que o elemento central aqui em causa é o uso pelo arguido da expressão «vendedor mal formado civicamente» (e não "vendedor mal formado profissionalmente"), sempre o tribunal recorrido deveria ter levado em consideração quer os aspectos terminológicos, quer semânticos da mesma.

  3. Na verdade, dizer-se que alguém, com determinada profissão, seja ela qual, é uma pessoa civicamente mal formada - justificando-se com certos factos que apenas importam ao foro da vida privada e familiar da mesma (e mesmo esses susceptíveis de interpretações diversas e variáveis) - será sempre afirmar-se o pior desse indivíduo, enquanto cidadão de uma determinada comunidade, organizada sob a forma republicana de um estado de direito democrático.

  4. A suposta vacuidade com que o arguido quis e soube proferir tal expressão - acompanhada de factos que, segundo ele, a suportariam à saciedade de todos quantos dela tomaram conhecimento - nunca poderia ser, como foi, motivação bastante para que se arredasse o reconhecimento da existência de indícios suficientes da prática dos crimes por que aquele vinha acusado.

  5. Para mais, é dado adquirido, na realidade empírica hodierna, que, muitas vezes, a verdadeira ofensa contida em determinada insinuação encontra-se naquilo que não fica dito, em virtude, precisamente, do pouco que se diz.

  6. Certamente que já, por bastas vezes, todos nós - ligando a televisão, ou lendo um jornal - nos demos conta das pérfidas virtudes de somente uma simples palavra, dita no momento certo, disseminada na sombra de tantas outras, oculta na suposta inocência de quem se acha detentor de factos, apenas para si entendidos como bastantes para a sustentabilidade da acusação; tudo sempre no intuito de gerar um alerta sobre a pessoa da sua vítima.

  7. O tribunal recorrido mal andou ao achar-se no direito de densificar e explicar, em termos prático-argumentativos, as razões pelas quais o arguido proferiu tais acusações relativas à pessoa do recorrente.

  8. Em bom rigor, quaisquer razões que o arguido pudesse ter para se referir ao recorrente como cidadão mal formado, sempre deveriam ser discutidas - como serão, assim se espera - na fase de audiência de discussão e julgamento.

  9. Na verdade, só apenas na fase de produção de prova é que o julgador estará em condições, segundo a sua livre convicção, de formular um juízo condenatório ou absolutório, consoante a veracidade e a idoneidade de tais imputações seja ou não comprovada.

  10. Dito de outro modo, não importaria, na fase instrutória, que tudo viesse a ser explicado pelo arguido como relativo a quezílias familiares.

  11. É que, no entretanto, como resulta documentado nos presentes autos, o recorrente viu várias pessoas, inclusivamente superiores seus, questionarem-se acerca das suas qualidades morais, acerca da sua «dignidade objectiva», apreendida pelos seus pares, não inclusos na sua conflituosa família de afinidade.

  12. Ora, perante tal, e em nome do princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos à reserva da intimidade da vida privada e do bom nome, as imputações feitas pelo arguido deveriam passar pelo crivo do Juiz de julgamento - onde, realmente, seria dada possibilidade àquele para explicar a razão pela qual as suas acusações teriam todo o sentido.

  13. Por outro lado, e voltando à suposta vacuidade da expressão proferida - e consequente indignidade indiciária para a prolação de um juízo de pronúncia ¬sempre o recorrente se interroga, neste momento, acerca da eventual decisão do tribunal recorrido se o caso fosse diverso; 15.

    Sendo ele, não um delegado de informação médica, mas, suponha-se, um juiz de direito sobre o qual recaía a mesma acusação de ser «mal formado civicamente».

  14. Acaso nesta hipótese, tal expressão, recepcionada nos mesmíssimos termos em que o foi pela entidade patronal do recorrente, teria ainda de ser concretizada? 17.

    Ou, ao invés, sempre se diria que a sua gravidade era de tal monta que justificaria o incómodo de um qualquer processo de averiguações, por parte das instâncias superiores, tendentes ao apuramento da sua veracidade (e onde até certamente se perscrutaria, por exemplo, como actividade probatória, todo o seu comportamento nos inúmeros processos judiciais a seu cargo)? 18.

    Que fique claro: todos os cidadãos, não importando a sua profissão ou ofício e inclusos numa República de Direito Democrático, têm direito a gozar de uma presunção de probidade e honestidade que apenas pode ser modificada por uma decisão, proferida por um tribunal de julgamento e transitada em julgado, que, de um modo ou de outro, precisamente, ateste o contrário.

  15. O que, no caso, não sucedeu.

  16. Por outro lado, o arguido soube e quis reconhecer que o recorrente foi ouvido pelos responsáveis superiores da sua empresa, nomeadamente, pelo Director dos Assuntos Legais da mesma! 21.

    Ora, deveria o tribunal recorrido ter visto, logo neste primeiro reflexo de tal conduta, um indício de uma prática criminosa, conscientemente perpetrada, que atingiu, claramente os seus intuitos.

  17. Saber se os mesmos seriam ou não legítimos, razoáveis, comprováveis ou verdadeiro, não era tarefa, repita-se, para o tribunal recorrido, mas sim para o tribunal de julgamento.

  18. Por seu turno, dos depoimentos juntos aos autos, igualmente se pode concluir - e em sentido perfeitamente contrário à decisão recorrida - que múltiplas pessoas, mesmo não se lembrando de pormenores, sempre pouco úteis, sempre ficaram com uma certa ideia do recorrente; a ideia de que alguém teria relativamente ao mesmo algo que poria em causa a dignidade da sua pessoa, o seu bom nome e a consideração que todos lhe prestavam.

  19. Diga-se uma vez mais: não são, não podem ser, de pequena monta as meras impressões com que se fica em virtude de acusações feitas sob o diáfano manto da vacuidade.

  20. Nos dias que correm, bem sabemos, elas são o tudo! 26.

    O tudo que nem a reposição da Verdade, pelos meios judiciais adequados, apaga! 27.

    Nestes mesmos termos, e admitindo o arguido que quis publicitar, pelo menos para três pessoas - conhecidas ou não, pouco importa - as acusações que formulara contra o recorrente, dúvidas não restam de que ele cometeu os dois crimes de difamação por que vinha acusado.

  21. E a não ser decidido assim, o precedente aberto pelo tribunal recorrido assume-se como perigoso: não cometerá qualquer crime a pessoa que, veiculando publicamente certas e determinadas acusações acerca da má formação cívica de certo indivíduo, seu familiar, o faça de modo vago, apenas como que ... «incomodando» ...

  22. Tal possibilidade nem deverá sequer passar pela formulação enquanto mera hipótese teórica.

  23. Ao não pronunciar o arguido pelos crimes de que vinha acusado, o tribunal recorrido como que negou, salvo o devido respeito, a protecção dos bens jurídicos em causa; 31.

    Violando assim, entre outras, as normas dos artigos 286º e 307º do Código de Processo Penal, no sentido em que, face à função de comprovação judicial, a nível indiciário, da bondade da acusação deduzida e nos termos de tudo quanto foi aqui dito, deveria o mesmo ter PRONUNCIADO o arguido.

    TERMOS EM QUE: Deve o presente recurso proceder, por provado, e a decisão ora posta em crise ser substituída por outra que PRONUNCIE o arguido pela prática de dois crimes de difamação, p. e p. pelo artigo 180º nº 1, com referência ao artigo 183º nº 1 al. a), ambos do Código Penal.” Respondeu o Ministério Público defendendo a manutenção da decisão recorrida nas seguintes conclusões.

    “1 - No requerimento para abertura da instrução, o ora recorrido alegou factos que demonstraram o contexto em que escreveu a frase em causa nos autos, e pelos quais considera o recorrente mal formado civicamente.

    2 - As diligências instrutórias revelaram-se importantes para a descoberta da verdade.

    3 - Resultaram provadas as desavenças entre recorrente e recorrido, reportadas ao período de internamento hospitalar do pai deste último, e que se agravaram após o falecimento.

    4 - O recorrente em muito tem contribuído para a discórdia no seio da família do recorrido.

    5 - A fls. 42 o recorrido referiu o motivo pelo qual terá escrito a frase em causa nos autos.

    6 - Como resultou provado...

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