Acórdão nº 115/08 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Fevereiro de 2008

Magistrado ResponsávelCons. Carlos Fernandes Cadilha
Data da Resolução20 de Fevereiro de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 115/2008

Processo n.º 469/07

  1. Secção

Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha

Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional

  1. Relatório

    1. No processo de instrução criminal n.º 30/03, que segue termos no Tribunal judicial da comarca de Vieira de Minho, A. e B. foram pronunciados pelo crime de infracção das regras de construção previsto e punido pelo artigo 277º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.

      Em fundamentação do despacho de pronúncia, o juiz de instrução diz, além do mais, o seguinte:

      Nos termos do artigo 277º do Código Penal quem no âmbito da sua actividade profissional infringir regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcção ou execução de construção, demolição ou instalação ou na sua modificação, e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, por negligência, é punido com pena de prisão até cinco anos”

      Acrescentando o artigo 285º do Código Penal, que do facto resultar a morte ou ofensa á integridade física grave de outra pessoa, o agente é punido com pena que ao caso caberia, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo”

      Ora sobejamente resultam indícios fortes de que os arguidos, ao procederem ao descalçamento da base do escombro, que ficou sem apoio seguro; ao ignorarem altura da coluna de água sobre o escombro, contra o método aprovado, não informando do facto a equipa de segurança, nem a equipa que tinha aprovado o projecto; não voltando a bombear a água que ia acumulando na CES, omitiram regras técnicas básicas criando deste modo perigo para a vida e integridade física de terceiros.

      Pelo crime de vêm acusados aludido no artigo 277º do Código Penal, resultam, dos elementos de prova recolhidos na fase de inquérito e que não foram postos em causa pela instrução, indícios seguros e suficientes para se poderem imputar aos arguidos, objectiva e subjectivamente, os elementos típicos de tal crime.

      Assim, e nos ternos do artigo 307º, n° 1. do Código Processo Penal, porque se verificam os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena, pronuncio os arguidos, pelos fundamentos de facto e de direito constantes da douta acusação deduzida pelo Digno Magistrado do Ministério Público, reproduzida nos termos do artigo 207 n° 1 do Código processo Penal, — A., casado, engenheiro, nascido aos 25.10.61, natural da freguesia de Stº. António dos Olivais, concelho de Coimbra, filho de C. e de D., residente na Rua …, n°.., Figueira da Foz e com domicílio profissional no … , …, Lugar de …, Ruivães,

      Inconformados com o assim decidido, os arguidos vieram interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento no disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional, definindo como objecto do recurso a inconstitucionalidade da norma do artigo 277. ° do Código Penal.

      Notificados para completarem o requerimento de interposição de recurso com a indicação, designadamente, da peça processual onde fora suscitada a questão da inconstitucionalidade, os recorrentes vieram declarar que haviam invocado a inconstitucionalidade da norma do citado artigo 277. ° do Código Penal nos artigos 484º a 488º do requerimento de abertura de instrução.

      Estando em causa uma decisão negativa de inconstitucionalidade, o juiz de instrução considerou que o recurso para o Tribunal Constitucional apenas poderia ser admitido após a exaustão dos meios recursórios normais, pelo que o rejeitou por extemporaneidade. Porém, na sequência de reclamação contra o despacho de não admissão do recurso, apresentada nos termos dos artigos 76º e 77º da Lei do Tribunal Constitucional e que correu por apenso, foi este ulteriormente admitido com efeito suspensivo e subida imediata nos próprios autos.

      Nada tendo obstado ao prosseguimento do recurso, no Tribunal Constitucional, os arguidos apresentaram as suas alegações em que concluem do seguinte modo:

    2. Os ora Recorrentes foram pronunciados pela prática, em co-autoria material, de um crime de infracção de regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços, agravado pelo resultado, previsto e punível nos termos das disposições conjugadas constantes dos arts. 277°, nº 1, alíneas a) e b), e n.° 2, 285° e 144°, alínea b), do Código Penal.

    3. O tipo incriminador em causa pressupõe a infracção a regras legais, regulamentares ou técnicas.

    4. Do despacho de pronúncia — bem assim como da acusação, que mesmo reproduz — não consta do enquadramento jurídico-criminal dos factos que constituem o objecto do processo específica referência quaisquer regras legais ou regulamentares.

    5. Pelo que aos Recorrentes apenas se poderá atribuir a infracção de regras técnicas, único entendimento possível, dada a manifesta - impossibilidade de subsunção de condutas à norma do art.° 277°, n.° 1, alíneas a) e b), do CP sem o concomitante apelo à infracção de regras de qualquer uma das categorias a que acima se aludiu.

    6. Da leitura atenta da acusação/pronúncia, resulta que aos ora Recorrentes se atribui a inobservância da metodologia aprovada para a execução dos trabalhos, o que só poderá ser entendido como uma alusão à infracção de regras técnicas por parte dos ora Recorrentes.

    7. As normas constantes do art.° 277°, n.° 1, alíneas a) e b), in fine, do CP foram, assim, interpretadas e aplicadas com o sentido interpretativo segundo o qual a remissão naquelas normas operada para o domínio das regras técnicas é susceptível de abranger métodos ou procedimentos ad hoc, concebidos e destinados à execução de trabalhos concretos e singulares.

    8. As mencionadas normas são normas penais em branco, porquanto remetem, na sua previsão, para fonte não normativa, in casu, para regras técnicas.

    9. Estas regras são, então, chamadas a integrar a previsão da norma penal, ao abrigo de uma remissão dinâmica operada por esta norma para tais regras.

    10. Esta remissão tem sido posta em causa pela Doutrina, nomeadamente por Bernd SHÜNEMANN, que nela vê uma inadmissível violação dos princípios do Estado de Direito, traduzida numa verdadeira atribuição de competência legislativa a círculos ou meios não estaduais e, ainda, irreconciliável com o princípio fundamental dA publicação das leis.

    11. Por outro lado, a mencionado remissão é incompatível com o princípio nullum crimen, nulla poena sine lege stricta, consagrado no art.° 29º., nºs. 1 e 3, da CRP.

      11.0 Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se sobre a conformidade das normas penais em branco com a Constituição.

    12. Fê-lo nos Acórdãos nº 427/95, de 6 de Julho, e n.° 534/98, de 7 de Agosto, os quais apreciaram, porém, normas legais que remetiam para normas regulamentares, o que não sucede no caso em apreço nestes autos.

    13. No Acórdão n.° 427/95, de 6 de Julho, este Venerando Tribunal Constitucional elegeu como ratio decidendi o critério da concretização técnica, informativa e não inovadora, segundo o qual a norma em branco conteria todo o conteúdo da incriminação — o desvalor da acção proibida, o desvalor do resultado lesivo e a identificação do bem jurídico protegido — não deixando “(...) a descoberto qualquer elemento essencial para a compreensão da conduta proibida ou para o controlo democrático da incriminação”.

    14. Já o Acórdão n.° 534/98, de 7 de Agosto, assenta no que pode denominar-se o critério do valor probatório da remissão: a norma complementar — infra-legal — é entendida como encerrando um (mero) juízo técnico análogo ao da prova pericial.

    15. A jurisprudência constante destes dois Doutos Acórdãos não pode colher no caso ora sob recurso.

    16. Com efeito, o desvalor da acção típica no caso sub judice só logrará alcançar-se através da integração da norma penal (em branco) pela regra técnica infringida — é o que decorre do teor literal quer da alínea a) quer da alínea b), in fine, do n.° 1 do preceito legal em referência.

      17-Esta consideração, à luz do critério de solução acolhido no Acórdão nº. 427/95, de 6 de Julho, só pode conduzir à conclusão de que, no caso vertente, a regra técnica complementar da norma penal se reveste de natureza inovadora, interferindo materialmente na delimitação da conduta punível.

    17. Isso implica, consequentemente, que as normas constantes do art.° 277º, nº 1, alíneas a) e b), in fine do CP, no segmento em que remetem a sua integração para as regras técnicas, violam o princípio da legalidade e princípio da reserva de lei formal, consagrados, respectivamente, nos arts. 29°, n.° 1, e 165°, n.° 1, alínea c), ambos da CRP.

    18. Também o critério do valor probatório da remissão, subjacente ao juízo de constitucionalidade do Acórdão n.° 534/98, de 7 de Agosto, é inaplicável neste caso.

    19. Em primeiro lugar, inexiste preceito legal equivalente ao do art.° 71.°, n.° 3, do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, expressamente invocado naquela decisão.

    20. Em segundo lugar, não se vê como, à luz da estrutura típica das previsões constantes do art.º 277.°, n.° 1, alíneas a) e b), in fine, do CP, possa entender-se o reenvio a que ali se procede para as regras técnicas como tendo um alcance de mera regra de valoração de prova, com o sentido de uma prova pericial antecipada.

    21. Efectivamente, o reenvio tem necessariamente que operar em momento lógica e ontologicamente prévio ao da valoração da prova, momento esse que é o do recorte da factualidade típica. O que redunda no que atrás se deixou afirmado: a regra técnica complementar da norma penal em branco — a regra técnica infringida interfere materialmente na delimitação do ilícito típico, matéria reservada ao império da lei formal.

    22. Dever-se-á ainda sujeitar as normas constantes do art.° 277°, n.° 1, alíneas a) e b), in fine, do CP a um segundo grau de apreciação de constitucionalidade.

    23. Os trabalhos a cuja execução se procedia quando ocorreu o acidente que deu origem aos autos-crime (remoção, do interior da chaminé de equilíbrio superior da barragem de Venda Nova, de escombro com cerca de 79 m de altura) eram de natureza singular...

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