Acórdão nº 35/12 de Tribunal Constitucional (Port, 25 de Janeiro de 2012

Magistrado ResponsávelCons. Ana Guerra Martins
Data da Resolução25 de Janeiro de 2012
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 35/2012

Processo n.º 832/10

  1. Secção

Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I – Relatório

  1. Nos presentes autos em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público, B., C. e D., foi interposto recurso de acórdão proferido pela 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 04 de novembro de 2010 (fls. 496 a 507), para apreciação da constitucionalidade:

    “[D]as normas contidas na parte final do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 287.º e na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º, ambos do CPP, inconstitucionalidade essa que é material, tendo em conta o disposto nos artigos 20.º, 32.º, n.º 7 e 266.º da Constituição da República Portuguesa”, quando interpretadas “no sentido de não permitir dar a uma declaração como a que foi feita no artigo 8.º do Requerimento de Abertura de Instrução («Por extensos e por se encontrarem taxativamente descritos nos autos à margem referenciados, não se repetirão os factos que originaram a queixa») o sentido de uma remissão material para os factos já descritos nos autos, possibilitando assim o indeferimento da abertura de instrução” (fls. 518 e 519);

    “[D]as normas contidas na parte final do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 287.º e na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º, ambos do CPP, nesta interpretação de que uma remissão só vale se obedecer a uma fórmula sacramental, justificando o indeferimento liminar da abertura de instrução.” (fls. 520)

    Da interpretação segundo a qual, “os artigos 287.º e 283.º do CPP, na sua formulação de “descrição sintética dos factos”, não permite que estes sejam descritos por remissão, e que só vale como remissão uma remissão feita em fórmula sacramental e tabeliónica, e não compreender que qualquer descrição por remissão, usando-se para essa remissão uma forma da língua portuguesa que seja funcionalmente inteligível por um destinatário médio.” (fls.521)

    Da norma extraída do n.º 3 do artigo 287º do CPP, “na interpretação que dela foi feita no Acórdão de que se recorre, no sentido de, em caso de narração incompleta dos factos, ser justificada a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução, por violação do direito de acesso à justiça e aos Tribunais consagrado no artigo 20.º da Constituição, do direito de o ofendido intervir no processo criminal, consagrado no artigo 32.º, n.º 7, e dos princípios da boa-fé, da justiça e da imparcialidade consagrados no artigo 266.º da mesma Constituição” (fls. 522).

  2. Notificado para tal pela Relatora, o recorrente produziu alegações, que ora se sintetizam:

    (…)

    3.º

    A esta luz se percebe que a única interpretação constitucional da norma que impõe a narração, ainda que sintética, dos factos integradores do tipo objetivo de crime é aquela que se baste com a narração, nos casos de difamação por deturpação de um discurso proferido pelo ofendido, dos factos de (i) ter sido concedida, em determinada data e determinado local a entrevista, (ii) de o seu sentido ter sido deturpado por determinados agentes, devidamente identificados, (iii) através da publicação na edição de determinado jornal, em determinada data, e (iv) de com isso ter sido lesada a honra e consideração do entrevistado.

    4.º

    Isto basta para que seja, do ponto de vista fáctico, suficientemente determinado o objeto do processo, para permitir o exercício pleno dos direitos de defesa dos arguidos.

    (…)

    8.º

    O requerimento de abertura de instrução deve conter, para além dos requisitos exigidos pelo número 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deva ser aplicada.

    (…)

    28.º

    Aqui chegados, e perante a exigência de narração resumida dos factos que fundamentam ao arguido a aplicação de um pena, o que deve conter o requerimento de abertura de instrução?

    29.º

    A indicação de que a entrevista foi dada naquele dia e naquele local, por aquela pessoa àquelas outras pessoas, e que o que foi dito, que está junto aos autos, não corresponde ao que foi publicado, e também está junto aos autos, ou, pelo contrário, o requerimento de abertura de instrução deve conter, para além dos dados de tempo, lugar e agentes, a expressa identificação concreta de cada uma das frases que foi publicada e que não corresponde ao que efetivamente foi dito?

    30.º

    Mais uma vez a primeira hipótese surge como a única apta a permitir ao arguido exercer plenamente a sua defesa sem prejudicar o direito à tutela penal dos direitos do assistente; ainda para mais se tivermos em conta que a gravação da entrevista foi junta pelo Recorrente aos Autos, tal como a respetiva transcrição e a publicação da mesma.

    (…)

    33.º

    O entendimento dos tribunais a quo apenas é passível de ser compreendido caso o caráter difamatório da entrevista estivesse não na imputação ao Assistente de frases ou expressões, entre aspas, que este nunca disse, mas na valoração infamante das palavras publicadas.

    34.º

    Aí sim, seria necessário analisar uma por uma as expressões que foram alteradas pelos arguidos, para de seguida ver se essas palavras eram infamantes e se os arguidos, sendo elas infamantes, tinham verificado a sua verdade ou não.

    35.º

    Mas este pressuposto é totalmente errado!

    36.º

    Com efeito, num caso como o presente, de uma entrevista, o caráter difamatório da reprodução das afirmações do Recorrente não está na concreta divergência, mas na divergência.

    37.º

    Essa simples divergência, essa simples alteração entre aquilo que foi dito e aquilo que foi publicado implica uma violação do direito palavra do Recorrente, que tem o direito de se exprimir da forma que achar mais adequada, e tem o direito que essa expressão seja reproduzida exatamente tal e qual foi proferida.

    38.º

    Daí que, no caso dos Autos, a difamação se consubstancie numa violação do direito à palavra constitucionalmente consagrado no artigo 26.º da Lei Fundamental.

    39.º

    E, assim sendo, uma narração sintética dos factos consubstanciadores de um crime de difamação num caso como o dos Autos basta-se com a indicação de tempo e de lugar da entrevista, dos seus agentes, e a indicação de que o que foi publicado não corresponde ao que foi dito.

    40.º

    Este resumo é suficiente para delimitar o objeto do processo: a entrevista, permitindo aos Arguidos exercerem a sua defesa.

    (…)

    49.º

    A alínea b) do número 3 do artigo 283.º e os números 2 e 3 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de exigirem uma descrição completa dos factos, e ao fazerem culminar com a rejeição por inadmissibilidade legal o requerimento de abertura de instrução que não contenha essa descrição completa estão a impor um formalismo exagerado e absurdo que não foi vontade do legislador e que apenas tem como efeito o facto de os assistentes, como é o caso do ora Recorrente, serem impossibilitados de ver sindicada a decisão do Ministério Público de não acusar, ficando assim sem qualquer hipótese de aceder aos Tribunais para garantirem penalmente os seus direitos, nomeadamente fundamentais, como é o caso.

    50.º

    E tal equivale a impedir o ofendido de intervir no processo penal, o que consubstancia, também, uma violação do artigo 32.º, n.º 7, da Constituição da República Portuguesa.

    51.º

    Por outro lado, ao exigir uma descrição detalhada dos factos subsumíveis no tipo de crime, desconsiderando que os autos contêm já documentos – gravações e transcrições – de onde esses detalhes se podem retirar sem qualquer dificuldade, o Tribunal a quo criou obstáculos injustificados à realização da justiça, não procedeu de boa fé, nem foi imparcial porque, na ânsia de atribuir ao arguido as garantias de defesa que a lei exige, acabou por impedir toda e qualquer efetivação do direito que a lei também atribui ao assistente.

    52.º

    Assim, as normas invocadas violam também o artigo 266.º, n.º 2 da Lei Fundamental, que impõe a todos os órgãos do Estado, incluindo Tribunais, que atuem com respeito pelos princípios da justiça, da imparcialidade e da boa fé.

    53.º

    Em conclusão, as normas dos números 2 e 3 do artigo 287.º e da alínea b) do número 3 do artigo 283.º, ambos do Código de Processo, quando interpretadas no sentido de exigirem que o requerimento de abertura de instrução contenha uma descrição expressa e detalhada de todos os factos integradores do tipo objetivo do crime, ainda que esses mesmos factos possam ser conhecidos através de documentos probatórios já juntos aos Autos, são inconstitucionais, por violação dos artigos 20.º, 32.º n.º 7 e 266.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

    54.º

    Por outro lado, o Recorrente, na sua queixa-crime, efetuou uma análise detalhada dessas dissemelhanças, tendo para aí remetido no seu requerimento de abertura de instrução.

    55.º

    O Tribunal da Relação de Lisboa entendeu, no entanto, que como a remissão não havia sido feita em fórmula sacramental não era líquido que a vontade do Assistente, e ora Recorrente, fosse efetivamente remeter para a descrição efetuada na queixa-crime.

    56.º

    Ora, o Recorrente escreveu, no artigo 8.º do seu requerimento de abertura de instrução: “Por extensos e por se encontrarem taxativamente descritos nos autos à margem referenciados, não se repetirão os factos que originaram a queixa.”.

    57.º

    A intenção do Recorrente com a esta declaração foi, evidentemente, incorporar no requerimento de abertura de instrução a descrição detalhada dos factos preenchedores do tipo objetivo do crime de difamação – embora essa descrição, como vimos, não poder ser exigível à luz da lei e da Constituição.

    (…)

    65.º

    Ao não aceitar como suficiente uma remissão material, que é funcionalmente inequívoca para qualquer declaratário médio, e ao exigir, ao invés, que uma remissão só valha quando...

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