Acórdão n.º 609/2007, de 07 de Março de 2008

Acórdáo n. 609/2007

Processo n. 563/07

Acordam na 1.ª Secçáo do Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - Susana Isabel Lopes Martins Damas instaurou acçáo declarativa sob a forma ordinária contra Fernando Manuel Seabra Martins Damas, Joaquina Maria Alves Lopes Damas e António Joaquim Lopes, pedindo que:

i) Seja reconhecido e declarado que náo é filha do 1. réu e, em consequência, seja ordenada a eliminaçáo da paternidade constante do seu assento de nascimento, bem como a respectiva avoenga paterna;

ii) Seja reconhecida e declarada a sua paternidade relativamente ao 3. réu, devendo, em consequência, ordenar -se o respectivo averbamento.

Os 1. e 2. réus excepcionaram a caducidade do direito da autora, com fundamento no disposto no artigo 1842., n. 1, alínea c), do Código Civil.

A autora, em réplica, pugnou pela improcedência da excepçáo. Considerando que o processo reunia os elementos de facto suficientes, sem necessidade de mais provas, que permitiam conhecer da excepçáo, o Ex.mo Juiz da Comarca de Abrantes, no despacho saneador, decidiu da mencionada excepçáo, pela seguinte forma:

a) Recusar a aplicaçáo da norma constante do artigo 1842., n. 1, alínea c), 2.ª parte, do Código Civil, por materialmente inconstitucional em decorrência da violaçáo dos princípios contidos nos artigos 26., n. 1, 36., n.os 1 e 4, e 18., n. 2, da Constituiçáo da República Portuguesa; b) Julgar improcedente a excepçáo de caducidade.

2 - O Ex.mo Magistrado do Ministério Público junto da comarca de Abrantes veio interpor recurso obrigatório para este Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 70., n.1, alínea a), da Lei n. 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), o qual foi admitido como apelaçáo, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo, conforme resulta do despacho de fls. 153.

O Ex.mo Procurador -Geral -Adjunto, junto deste Tribunal Constitucional, veio juntar as respectivas alegaçóes concluindo pela seguinte forma:

1.

A norma constante do artigo 1842., n.1, alínea c), do Código Civil, enquanto estabelece o prazo de caducidade de um ano, contado da data em que o filho teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir -se náo ser filho do marido da máe, para a respectiva acçáo de impugnaçáo, viola as disposiçóes conjugadas dos artigos 26., n. 1, 36., n. 1, e 18., n. 2, da Constituiçáo da República Portuguesa.

Na verdade, o estabelecimento de tal prazo de caducidade, colide com o direito fundamental ao reconhecimento do vínculo de filiaçáo biológica por parte do filho, revelando -se desproporcionado, pelo menos nas situaçóes - como a dos autos - em que o conhecimento dos factos que inculcam a náo paternidade ocorreu em momento temporal próximo daquele em que o filho atingiu a maioridade - inviabilizando reflexamente a caducidade da acçáo de impugnaçáo o reconhecimento judicial da paternidade biologicamente verdadeira.

Termos em que deverá confirmar -se o juízo de inconstitucionalidade formulado pela decisáo recorrida.

Náo foram produzidas contra -alegaçóes.

3 - A decisáo recorrida fundou -se, essencialmente, na seguinte argumentaçáo:

Tem vindo a ser discutida, cada vez com maior frequência, a questáo da constitucionalidade dos prazos de caducidade no âmbito das acçóes de estabelecimento da filiaçáo.

O Tribunal Constitucional já se debruçou várias vezes sobre a questáo da constitucionalidade, mas no âmbito dos prazos para propositura de acçóes de investigaçáo de paternidade.

No essencial, a fundamentaçáo dessas decisóes assenta na consideraçáo de que as normas em questáo resultam de uma ponderaçáo de vários direitos ou interesses contrapostos, a qual conduz, náo propriamente a uma restriçáo, mas a um condicionamento aceitável do exercício do direito à identidade pessoal do investigante.

Contudo, mais recentemente, tem -se verificado uma tendência indiciada de inversáo na posiçáo do Tribunal Constitucional.

Assim, no Acórdáo daquele Alto Tribunal n. 456/2003 (processo n. 193/2003, in www.tribunalconstitucional.pt), foi apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 1817., n. 2, aplicável por força do artigo 1873. do Código Civil, num caso em que estava em causa saber se ficava impedida a investigaçáo de paternidade a quem, depois dos 20 anos, for surpreendido pela procedência de uma acçáo de impugnaçáo da sua paternidade. Tendo o presumido pai impugnado com sucesso a presunçáo de paternidade, o filho, apesar de ter ficado com a paternidade em branco, estava impedido de intentar acçáo de investigaçáo da paternidade, já que o n. 2 do artigo 1817. exige que a remoçáo do obstáculo (no caso, o cancelamento do registo inibitório) seja requerida até ao termo do prazo estabelecido no número anterior, de dois anos após a maioridade ou emancipaçáo, o qual já havia expirado há muito. O Tribunal negou provimento ao recurso por ter concluído pela inconstitucionalidade da norma em questáo, por violaçáo do direito à identidade pessoal.

Também no Acórdáo n. 486/2004 (in 2.ª série, n. 35, de 18 de Fevereiro de 2005), o Tribunal Constitucional pronunciou -se pela inconstitucionalidade da norma do artigo 1817., n. 1, do Código Civil, aplicável à paternidade por remissáo do artigo 1873. do mesmo Código, por violaçáo das disposiçóes conjugadas dos artigos 26., n. 1, 36., n. 1, e 18., n. 2, da Constituiçáo da República Portuguesa.

Contudo [...] tendo -se o Tribunal Constitucional debruçado apenas sobre a referida norma do artigo 1817., n. 1, do Código Civil, todos os argumentos ali vertidos sáo susceptíveis de serem aplicados às demais hipóteses em que a caducidade náo depende somente de factos objectivos - do decurso do tempo - mas de circunstâncias cujo domínio está na esfera jurídica ou na esfera fáctica de terceiros ou do próprio investigante, incompatibilidade com registo de paternidade ou maternidade já estabelecidos, existência de escrito ou posse de estado. Mais refere que 'inclusivamente, a questáo pode vir a ser colocada em relaçáo ao prazo de caducidade previsto no artigo 1842., n. 1, alínea c), que atinge a pretensáo de o filho, nascido na constância do casamento da máe, impugnar a paternidade presumida do marido dela [...]'.

Ora, no caso sub judice, encontra -se precisamente em causa a aplicabilidade do disposto no artigo 1842., n.1, alínea c), do Código Civil, pelo que, há todo o interesse em apreciar a fundamentaçáo vertida no referido acórdáo do Tribunal Constitucional.

Um dos primeiros argumentos invocados nesse acórdáo para afastar a aplicabilidade do artigo 1817., n. 1, é o respeito pelo direito à identidade pessoal.

Deve, assim, ter -se por adquirida a consagraçáo, na Constituiçáo, como dimensáo do direito à identidade pessoal, consagrado no artigo 26., n. 1, de um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da maternidade e da paternidade.

Contudo, náo basta optar pela qualificaçáo como norma restritiva ou condicionadora para, aplicando ou náo o regime do artigo 18. da Constituiçáo, logo se concluir sobre a sua conformidade constitucional, tornando -se antes necessário analisar, numa perspectiva substancial, se o tipo de limitaçáo ao direito fundamental em causa, pela gravidade dos seus efeitos e pela sua justificaçáo, é ou náo actualmente aceitável, à luz do princípio da proporcionalidade.

O direito ao desenvolvimento da personalidade, consagrado no artigo 26. da Constituiçáo [...] determina que tanto o pretenso filho como o suposto progenitor podem invocar este preceito constitucional. No entanto, ele 'pesa' mais do lado do filho, para quem o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens.

Tem -se verificado uma progressiva e significativa alteraçáo dos dados do problema, a favor do filho e da imprescritibilidade da acçáo, designadamente com o impulso científico e social para o conhecimento

9790 das origens, os desenvolvimentos da genética, e a generalizaçáo de testes genéticos de muito elevada fiabilidade.

Esta evoluçáo veio alterar decisivamente a questáo, posicionando -a em favor do direito de conhecer a paternidade, determinando o peso dos exames científicos nas acçóes de paternidade.

No entanto, tem -se admitido que outros valores, como os relativos à certeza e à segurança jurídicas, possam intervir na ponderaçáo dos interesses em causa, sobrepondo -se, assim, à revelaçáo da verdade biológica. Da perspectiva do pretenso pai, aliás, invoca -se também, por vezes, o seu 'direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar': tal intimidade poderia ser perturbada, sobretudo se a revelaçáo for muito surpreendente, por circunstâncias ligadas à pessoa do suposto pai ou pelo decurso do tempo, e poderia mesmo afectar o agregado familiar do visado. Assim, tendo em conta estes valores ligados à organizaçáo social a certeza e a segurança, admitiu -se, como constitucionalmente incensurável uma soluçáo legislativa que fixe prazos de caducidade para a propositura deste tipo de acçóes.

Contudo, se, atendendo à fiabilidade dos exames de ADN, o valor da certeza objectiva da identidade pessoal já náo está em causa, resta a sempre invocada segurança para sujeitos ou pessoas concretas, bem como a segurança familiar e conjugal. Assim, se, por um lado, o pretenso progenitor tem interesse em náo ver indefinida ou excessivamente protelada uma situaçáo de incerteza quanto à sua paternidade, por outro, existe o interesse na paz e harmonia da família conjugal constituída pelo pretenso pai.

Na verdade, afigura -se que a pretensáo de satisfazer, através do sacrifício do direito do filho a saber quem é o pai, um puro interesse na tranquilidade, náo é digna de tutela, se se tratar realmente do progenitor. Este tem uma responsabilidade para com o filho que náo deve pretender extinguir pelo decurso do tempo, pela simples invocaçáo de razóes de segurança, confiança ou comodidade. E se, diversamente, náo se tratar do verdadeiro progenitor, pode, como se disse, submeter -se a um teste genético sem nada a temer.

E, de qualquer forma, a...

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