Acórdão n.º 46/2008, de 04 de Março de 2008

Acórdáo n. 46/2008

Processo n. 1055/07

Acordam na 2.ª Secçáo do Tribunal Constitucional.

  1. Relatório

    O representante do Ministério Público junto da 3.ª Vara Cível do Porto interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n. 1 do artigo 70. da lei de Organizaçáo, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n. 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n. 13A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o despacho de 4 de Julho de 2007 do respectivo Juiz, que recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, por violaçáo do artigo 20., n. 1, da Constituiçáo da República Portuguesa (CRP), a aplicaçáo do "Anexo à Lei n. 34/2004, de 29 de Julho, conjugado com os artigos 6. a 10. da Portaria n. 1085A/2004, de 31 de Agosto, alterada pela Portaria n. 288/2005, de 21 de Março, na parte em que determina que seja considerado para efeitos do cálculo do rendimento relevante do requerente do benefício de apoio judiciário o rendimento do seu agregado familiar nos termos aí rigidamente impostos, sem permitir em concreto aferir da real situaçáo económica do requerente em funçáo dos seus rendimentos e encargos", e, consequentemente, julgou procedente o recurso interposto por Célia Conceiçáo Magalháes Silva da decisáo do Centro Distrital de Segurança Social do Porto, de 2 de Maio de 2007, que, perante seu pedido de concessáo de dispensa total do pagamento de taxa de justiça e dos demais encargos do processo e pagamento da remuneraçáo do solicitador de execuçáo designado pelo exequente, com vista a intervir em processo de execuçáo em que era executada, apenas lhe concedeu os benefícios de pagamento faseado da taxa de justiça e demais encargos com o processo e de pagamento faseado da remuneraçáo do solicitador de execuçáo designado.

    É o seguinte o teor da decisáo recorrida, na parte que releva para apreciaçáo do presente recurso:

    Como fundamento deste recurso, alegou a requerente que, face à sua situaçáo económica em concreto, a Segurança Social deveria ter recorrido ao dispositivo legal previsto no n. 2 do artigo 20., afastando os critérios definidos no Anexo à Lei n. 34/2004, por forma a ser-lhe concedido o benefício do apoio judiciário.

    A faculdade a que alude a requerente está prevista para a Segurança Social em sede de fase administrativa do procedimento em análise, momento em que entáo prevê a lei directamente a possibilidade de ser afastada a aplicaçáo dos critérios previstos no Anexo à Lei n. 34/2004, para aferir da situaçáo de insuficiência económica da requerente em concreto, através do recurso a uma Comissáo para o efeito constituída expressamente.

    Tal possibilidade náo está todavia prevista na lei em sede de recurso, por via judicial, sendo que entáo se deve apreciar a insuficiência econó-mica alegada pelo requerente de acordo com os critérios estabelecidos e publicados em Anexo à Lei n. 34/2004 (e Portaria n. 1085A/2004, de 31 de Agosto, que veio concretizar tais critérios, alterada pela Portaria n. 288/2005, de 21 de Março), que o requerente através deste recurso pretende sejam afastados.

    O recurso a estes critérios legais estabelecidos através de fórmulas matemáticas, porém, impossibilita o tribunal de aferir em concreto da situaçáo económica do requerente do benefício do apoio judiciário.

    Nos termos do artigo 20. da CRP, «1 - A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, náo podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos».

    A garantia constitucionalmente consagrada de acesso ao direito a todas as pessoas para defesa da generalidade dos seus direitos e interesses legalmente protegidos constitui um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Direito este a ser concretizado através das leis, sobretudo processuais. Dependendo, pois, da estrutura processual global concretamente instituída a efectividade de muitos direitos, liberdades e garantias (cf. Direito Constitucional, Prof. Gomes Canotilho, 4.ª ediçáo, p. 772).

    Sendo o acesso aos tribunais o meio de defesa por excelência dos direitos referidos no artigo 20. da Constituiçáo, constituem os tribunais a instância última de defesa da liberdade e dignidade dos cidadáos (cf. Prof. JOSÉ Carlos Vieira de Andrade, in Os Direitos Fundamentais na Constituiçáo Portuguesa de 1976, 3.ª ediçáo, pp. 368/369).

    O princípio do acesso ao direito pretende garantir, assim, náo só o reconhecimento da possibilidade da defesa sem lacunas, como também o exercício efectivo deste direito, que se pode traduzir, por exemplo, e no que ora interessa, no direito a litigar com dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, incluindo pagamento da remuneraçáo do solicitador de execuçáo nomeado.

    Sendo certo que todos os actos normativos devem estar em conformidade com a Constituiçáo (cf. artigo 3., n. 3, da CRP), temos como consequência que toda a norma que viole os preceitos constitucionais é inconstitucional.

    Para efeitos de se controlar a constitucionalidade de um acto norma-tivo «é a Constituiçáo no seu todo - tanto, pois, no que toca às suas regras de competência e de procedimento legislativo, como aos seus princípios materiais e aos valores nestes incorporados - que é tomada como padráo do julgamento de constitucionalidade» (cf. Cardoso da Costa, A Justiça Constitucional no quadro das funçóes do Estado, p. 51, citado por Fernando Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 4.ª ediçáo, p. 389).

    Sendo material a inconstitucionalidade quando se infringem os princípios materiais incorporados na Constituiçáo (os vícios materiais sáo vícios das disposiçóes), orgânica quando se desrespeitam normas de competência nela estabelecidas e é formal quando se transgridem regras de forma ou de procedimento por ela definidas (cf. o mesmo autor, p. 390).

    Tecidos estes considerandos e tendo presente a garantia efectiva de acesso aos tribunais a todos consagrada no artigo 20. da CRP, impóese analisar a constitucionalidade material do Anexo à Lei n. 34/2004, conjugado com os artigos 6. a 10. da Portaria n. 1085A/2004, alterada pela Portaria n. 288/2005, de 21 de Março.

    Nos termos do artigo 1. da Lei n. 34/2004, de 29 de Julho, o sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razáo da sua condiçáo social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos. Compreendendo o acesso ao direito a informaçáo jurídica e a protecçáo jurídica, revestindo esta última as modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário (cf. artigos 2., n. 2, e 6., n. 1, da citada Lei).

    Definindo quem tem direito à protecçáo judiciária, dispóe o artigo 7.

    , n. 1, da mesma lei que a esta têm direito «[...] os cidadáos que demonstrem estar em situaçáo de insuficiência económica». Esclarecendo o artigo 8. que se encontra em situaçáo de insuficiência económica aquele que, tendo em conta factores de natureza económica e a respectiva capacidade contributiva, náo tem condiçóes objectivas de suportar pontualmente os custos de um processo.

    Sendo a prova e a apreciaçáo da insuficiência económica feitas de acordo com os critérios estabelecidos em Anexo à presente lei (n. 5 deste artigo 8. e n. 1 do artigo 20.).

    Neste Anexo, por sua vez, é dito que a insuficiência económica é apreciada pelo rendimento relevante para efeitos de protecçáo jurídica do agregado familiar do requerente, nos termos que aí sáo indicados no n. 1. Definindo-se ainda, no n. 3 do ponto 1 do Anexo, que para efeitos desta lei se considera pertencerem ao mesmo agregado familiar as pessoas que vivam em economia comum com o requerente de protecçáo jurídica.

    Visando concretizar os critérios de prova e de apreciaçáo da insuficiência económica, foi publicada a Portaria n. 1085A/2004, de 31 de Agosto, alterada pela Portaria n. 288/2005, de 21 de Março, onde, e para além do mais, foi concretizada a fórmula de cálculo do valor do rendimento relevante para efeitos de protecçáo jurídica a que se refere o critério de avaliaçáo da insuficiência económica do requerente previsto na Lei, nos termos dos artigos 6. a 10. desta Portaria.

    Por base tendo sempre o rendimento líquido completo do agregado familiar. Resultando este da soma do valor da receita líquida do agregado familiar (ou seja, o rendimento depois do imposto sobre o rendimento, das contribuiçóes obrigatórias dos empregados para os regimes da segurança social e das contribuiçóes dos empregadores para a segurança social) com o montante da renda financeira implícita calculada com base nos activos patrimoniais do agregado familiar.

    Da conjugaçáo destes normativos resulta que a concessáo da protecçáo jurídica passou a depender do valor do rendimento relevante para esses efeitos, determinado a partir do rendimento das pessoas que vivam em economia comum com o requerente desta protecçáo jurídica e independentemente de este auferir em concreto um qualquer rendimento, ou ainda de em concreto ele ter de suprir outras despesas que tal fórmula náo prevê sejam consideradas. É o caso dos autos, em que, fruto da aplicaçáo de tais fórmulas matemáticas, para além de uma penhora sobre o vencimento do cônjuge da requerente, viu-se a requerente obrigada, juntamente com seu marido, a pagar em três processos o montante de 90 € em cada processo (45 € para cada cônjuge), num total de 270 € mensais.

    Para além de que, mesmo em relaçáo às despesas que a fórmula prevê sejam consideradas, como é o caso da deduçáo de encargos com a habitaçáo do agregado familiar, resulta esta deduçáo também da aplicaçáo de um coeficiente determinado em funçáo de diversos escalóes de rendimento, implicando na prática a náo consideraçáo directa do valor em concreto que é despendido pelo agregado familiar.

    Se levarmos em consideraçáo o valor do rendimento mensal líquido deste agregado - no...

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