Acórdão nº 64/02.2TASPS.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 12 de Dezembro de 2007
Data | 12 Dezembro 2007 |
Órgão | Court of Appeal of Coimbra (Portugal) |
Acordam os Juízes, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra: I. Relatório: 1.
No Tribunal Judicial da Comarca de São Pedro do Sul, foi submetida a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, a arguida: -A..
., casada, auxiliar de cozinha, nascida no dia 17 de Agosto de 1961, filha de B..., natural do Brasil, residente no Lugar de Quintela, em Várzea, S. Pedro do Sul; sob imputação, na pronúncia de fls. 619/620, da prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança, previsto e punível pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), por referência à alínea b) do artigo 202.º, ambos do Código Penal.
*2.
A assistente C..., D.., E..., F..., G..., deduziram pedido de indemnização civil contra a arguidaA..., no qual peticionaram a condenação desta na devolução, à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C.., da importância global, incluindo juros vencidos, de 242.618,06 euros, acrescida de juros vincendos.
*3.
Por sentença de 27 de Fevereiro de 2002, o tribunal decidiu nos seguintes termos: 1. Julgou a acusação procedente e, em conformidade:
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Condenou a arguidaA..., como autora material de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), por referência ao disposto no artigo 202.º, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão; B) Suspendeu a execução da referida pena de prisão pelo período de 2 (dois) anos; C) Julgou os demandantes parte ilegítima, relativamente ao pedido civil pelos mesmos formulado no âmbito destes autos e, em consequência, absolveu a arguida/demandada da respectiva instância.
*4.
Inconformados, a arguida e a assistente C... interpuseram recurso da sentença, formulando nas respectivas motivações as seguintes (transcritas) conclusões: 4.1.
Arguida: «1.ª - A arguida, nas suas declarações, afirmou que tem o dinheiro em seu poder e que o devolverá, no momento próprio, a ter lugar nos autos de inventário 14/98 que se encontram pendentes, logo que lhe seja exigido ou determinado.
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- Não podia o tribunal dar como provado, como consta do ponto 16, in fine, dos factos provados na sentença, que a arguida fez seus mais de 160.000,00 € já que se trata de uma conclusão a retirar de factos que não foram dados como provados, nomeadamente, que foi pedida a devolução ou entrega daquela quantia e ela recusou-se.
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- O tribunal devia dar como provado o facto constante da 1.ª conclusão, donde concluiria que a arguida não teve, nem tem, intenção de se apropriar daquela quantia.
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- Para que se verifiquem todos os elementos constitutivos do crime de abuso de confiança é necessário que a arguida se tenha apropriado de coisa móvel; que a coisa móvel seja alheia ao domínio e posse da arguida; que tenha havido inversão do título de posse sobre a coisa móvel.
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- Dos factos dados como provados resulta que o dinheiro entregue à arguida pertence à herança ilíquida e indivisa por óbito da sua mãe, isto é faz parte de uma universalidade de direitos, de cujo titular também ela faz parte.
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- Logo, tal dinheiro não é uma coisa alheia em relação à pessoa da arguida e os demais herdeiros, tal como ela, apenas são titulares de um direito ao quinhão hereditário da herança e, concomitantemente, um direito sobre a quantia em dinheiro.
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- No crime de abuso de confiança o objecto do crime é a coisa móvel alheia e não direitos de que a arguida também é titular.
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- Para que se pudesse falar em inversão do título de posse sobre o dinheiro, para daí concluir pela intenção da arguida em subtraí-lo aos demais herdeiros, era necessário que a detentora tivesse deduzido oposição contra aqueles em nome dos quais estava a possuí-la, isto é, era necessário que fosse dado como provado que a arguida, quando lhe foi exigido o dinheiro pelos demais herdeiros, se recusou a entregá-lo ao dono.
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- Isto é, era necessário provar que foram intentadas acções possessórias ou de reivindicação contra a arguida, que tinham por objecto aquele dinheiro, e ela invocar que não o devolvia porque o fez seu.
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- Estando provado que existem pendentes autos de prestação de contas em que consta como crédito aquela quantia, não podia o tribunal concluir que a mesma já não existe para ser devolvida, porque a arguida já a gastou em seu proveito, na medida em que o dinheiro, como coisa fungível, não altera a sua qualidade, quantidade e valor, podendo aquela, no momento em que lhe for exigida, entregá-la ao seu dono.
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- A arguida, porque ainda se encontram pendentes os autos de inventário para a partilha do dinheiro, conjuntamente com mais bens, entre os quais imóveis de valor que ronda os 125.000,00 €, altura em que é definido o montante a entregar aos demais herdeiros, ficou impossibilitada de poder reparar ou restituir a quantia nos termos do artigo 206.º do Código Penal, o que só por si é demonstrativo em como não podia ter cometido o crime de abuso de confiança sem que lhe fosse exigido o dinheiro e ela se recusasse a entregá-lo.
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- Para a hipótese de vir a entender-se que estão verificados todos os pressupostos de que depende a condenação da arguida pelo crime de abuso de confiança e, como tal, manter-se a sua condenação, sempre haveria lugar ao perdão de um ano de pena de prisão, nos termos do artigo 1.º, n.º 1, da Lei da Amnistia n.º 29/99, de 12 de Maio.
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- A douta sentença recorrida violou, entre outras, as normas dos artigos 14.º, 205.º e 206.º, do Código Penal».
Solicita, a final, a procedência do recurso, com a revogação da sentença que condenou a arguida pela prática de um crime de abuso de confiança.
4.2. Assistente/demandante civil: «Quanto ao pedido cível:
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Nos termos do disposto no artigo 2.075 do C. Civil, qualquer herdeiro, de per si ou acompanhado com outros, tem legitimidade para peticionar a devolução à herança de dinheiro que fazia parte desse acervo e que foi ilegitimamente apropriado por uma herdeira, que incorreu por isso no crime de abuso de confiança.
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Aliás, essa obrigação deveria resultar quase ou mesmo automaticamente da própria condenação. Como tal, c) Os demandantes, habilitados pelos factos provados e que se arrogam no pedido herdeiros testamentários, são partes legítimas para peticionar a condenação da arguida a devolver à herança ilíquida e indivisa de que eles são herdeiros a quantia e juros de que ilicitamente se apropriou a arguida.
Quanto à matéria de facto: d) Tendo a arguida confessado nas suas declarações que, quando solicitou ao tribunal através do procedimento cautelar a entrega dos fundos, invocando a necessidade de fazer face a encargos da herança, já então tinha em mente utilizar tais fundos em proveito próprio, ou seja, em gastos ou dispêndios seus e de sua família e que ainda tem em seu poder parte desse dinheiro, em montante e local que disse não querer revelar e que nunca afirmou pretender ou devolver, devem tais factos constar da matéria dada como provada porque relevantes para a determinação da medida da pena e da ponderação da suspensão da mesma.
Quanto à medida da pena e sua suspensão: e) Atento o valor da apropriação, o facto de ultrapassar já e mesmo sem juros, em muito a metade que à arguida será devida na partilha (os restantes bens da herança não velem mais de 125.000 euros – ponto 25 dos factos provados), a premeditação da actuação, que é a própria arguida a dizer que ainda tem parte do dinheiro na sua posse, em local que não revela e que se recusa a devolver, o uso absolutamente arbitrário desse dinheiro, a pouca relevância da sua confissão para a descoberta da verdade, perante os inequívocos dados documentais constantes do processo, e finalmente que a sua conduta em não devolver à herança, voluntariamente, o dinheiro que ainda confessa ter na sua posse, revela à saciedade que não tem qualquer intenção de reparar o mal praticado.
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Tendo em atenção toda a factualidade referida na conclusão anterior, não se justifica a suspensão da execução da pena ou, em todo o caso, só se justificará mediante a aplicação da condição suspensiva de devolução em prazo curto de pelo menos metade da quantia de que se apropriou e que confessou ainda deter.
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Pois só assim se cumprirão os fins das penas e do direito e a justiça de alguma forma igualmente se redime de um notório erro praticado e se vê igualmente credibilizada e afirmada na sua plena vigência.
Foram violados, entre outros, os artigos 2075.º do C. Civil, 368.º e 369.º do C.P.P., 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b) e 71.º, 50.º e 51.º, do Código Penal».
Em síntese conclusiva, preconiza a procedência do recurso, em moldes tais que se julguem os demandantes do pedido cível partes legítimas e se condene a arguida no mesmo; se condene a arguida em pena de prisão efectiva não inferior a 3 anos ou, preferencialmente, seja a arguida condenada em pena de prisão não inferior a 3 anos, suspensa na sua execução, mas sujeita à condição de, em prazo não superior a 10 dias a contar do trânsito, aquela devolver à herança, nos termos que constam do pedido cível, pelo menos metade do dinheiro de que a mesma se apropriou.
*5.
Admitidos os recursos e cumprido que foi o disposto no artigo 411.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, o Ministério Público aos mesmos respondeu, na vertente exclusivamente penal no que concerne ao recurso da assistente/demandante civil, pugnando pela improcedência de ambos.
*6.
Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, no douto parecer que emitiu, manifestou-se no sentido de a assistente carecer de legitimidade para recorrer da matéria penal, aduzindo ainda que, caso assim não seja entendido, não devem proceder um e outro dos recursos interpostos.
A assistente e a arguida não exerceram o seu direito de resposta.
Foram colhidos os vistos legais.
Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
* II. Fundamentação: 1. Questão prévia: Antes de mais, há que decidir a questão prévia suscitada pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, traduzida em saber...
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