Acórdão nº 245/09.8GCVRL.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 04 de Janeiro de 2012

Data04 Janeiro 2012
ÓrgãoCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Recurso Penal nº 245/09.8GCVRL.P1 Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: 1.Relatório No 1º juízo do Tribunal Judicial de Vila Real, em processo comum com intervenção do tribunal singular, foi submetido a julgamento o arguido B…, devidamente identificado nos autos, tendo no final sido proferida sentença, na qual se decidiu condená-lo, pela prática de seis crimes de devassa da vida privada, ps. e ps. pelo art.º 192º nº 1 al. b) do C. Penal, em outras tantas penas parcelares de 100 dias de multa e, em cúmulo jurídico, na pena única de 400 dias de multa à taxa diária de 7€.

Inconformado com a sentença, dela interpôs recurso a arguido, pugnando pela alteração da matéria de facto provada e a sua consequente absolvição ou, assim se não entendendo, pelo reenvio do processo para novo julgamento, para o que apresentou as seguintes conclusões: 1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos por se entender que se impõe a modificação da decisão do tribunal “quo” sobre a matéria de facto e de direito a qual se impugna.

  1. Impugna a decisão recorrida por duas razões distintas: a) Matéria de facto erradamente julgada; b) A errada subsunção jurídica dos factos.

    PONTOS DE FACTO QUE O RECORRENTE CONSIDERA INCORRECTAMENTE JULGADO (art. 412°., n° 3, al. a), do CPP): 3. Da prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, resulta que o Arguido não praticou os seis crimes de devassa da vida privada, p. e p. pelo artigo 192.°, n.° l, do C.P., pelos quais foi condenado.

  2. A factualidade dada como provada não encontra suporte na prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento, não decorrendo, da mesma, a prática de qualquer acto, pelo ora recorrente, subsumível no tipo legal de crime pelo qual foi condenado.

  3. Compulsada a prova produzida, entende o recorrente que a mesma impunha a sua absolvição, pois que não existe prova suficiente que permitisse ao Tribunal a quo dar como provado que o ora recorrente teve a intenção de devassar exigida pelo artigo 192.°, n.° l, do C.P., nem praticou os factos tal como vêm descritos nos pontos 2), 4), 6), 7) e 8) da sentença, pelos quais foi condenado.

  4. Da análise integral dos depoimentos prestados pelas testemunhas em Audiência de Discussão e Julgamento (e nos quais assentou a convicção do Tribunal) não se vislumbra de que parte dos mesmos o Tribunal a quo se socorreu para dar como provado que o ora recorrente agiu com intenção de devassar a vida privada das crianças, uma vez que nenhum deles conseguiu demonstrar essa intenção.

  5. O arguido foi vítima de uma efabulação elaborada pelas denunciantes, que pretenderam fazer do arguido uma pessoa que ele não é, criando uma personagem à medida da história que construíram, na qual o arguido surge como um “caçador furtivo” que tirava fotografias às crianças “para supostamente as colocar na Internet”.

  6. As testemunhas revelaram animosidade em relação à pessoa do arguido.

  7. A acusação deduzida pelo Ministério Público não foi elaborada de forma objectiva e imparcial, antes denota uma tendência para fazer juízos de valor sobre o comportamento do arguido, dotando-o de uma forte carga negativa.

  8. O Ministério Público deduziu acusação estribando-se em boatos completamente desfasados da realidade e em convicções pessoais de testemunhas inebriadas por um fundamentalismo justiceiro com o qual a verdadeira Justiça não pode compactuar.

  9. As testemunhas não podem arrogar-se da faculdade de presumir o que se passou na mente do arguido e as fotografias juntas aos autos não são elucidativas de qualquer intenção de devassar.

  10. Intenção é o acto de escolher mentalmente um plano de acção a seguir, sendo, portanto, um pensamento reservado apenas ao sujeito, um elemento subjectivo.

  11. Sendo um elemento subjectivo e reservado, e não sendo possível aferi-la de forma directa, a intenção do indivíduo tem necessariamente de ser deduzida da exteriorização de actos, gestos ou palavras que indiciem uma vontade de agir em determinado sentido.

  12. A convicção do Tribunal a quo, relativamente à matéria fáctica dada como provada - nomeadamente, a intenção de devassar -, em tudo assentou nos depoimentos e nas fotografias juntas com os autos.

  13. As fotografias, da forma que se encontram registadas - desfocadas e captadas ao longe -, objectivamente consideradas, analisadas de uma forma livre de preconceitos, não revelam qualquer intenção de devassar quem quer que seja, nem se vislumbra como se pode defender que as mesmas mostram uma intenção de captar imagens de crianças de uma forma “furtiva”.

  14. Para além do mais, resulta dos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento que a intenção do arguido nunca foi esconder-se.

  15. A prova que resultou da Audiência é muito reduzida, e mesmo inexistente no que diz respeito ao que aqui nos interessa - intenção de devassar a vida privada das crianças.

  16. Da análise dos depoimentos prestados em Audiência, é inequívoca e incontestável a conclusão que não existe prova que permitia sustentar a condenação do recorrente.

  17. O Tribunal a quo formou a sua convicção no facto de as fotografias terem sido tiradas a crianças.

  18. Sendo certo que nada se sabe acerca das circunstâncias ou motivações que estão por detrás da captação dessas imagens.

  19. Esse facto, por si só, não é suficiente para condenar o arguido ora recorrente como autor material de seis crimes de devassa da vida privada.

  20. Do facto do recorrente ter tirado fotografias a crianças, não se pode presumir, como erradamente fez o Tribunal a quo, que ele tinha intenção de devassar a sua vida privada.

  21. O Tribunal a quo não só não dá o benefício da dúvida, aplicando o princípio in dubio pro reo, como ainda parte de uma presunção para condenar o recorrente.

  22. O arguido deve beneficiar do princípio in dubio pro reo, interpretado no sentido de que a persistência de uma dúvida razoável após a produção de prova tem de conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido.

  23. O Tribunal a quo sobrevalorizou o facto de as fotografias terem captado a imagem de crianças.

  24. O Tribunal a quo deu como assente a factualidade ora impugnada mediante um rebuscado raciocínio de índole persecutória, inequivocamente sustentado numa presunção de culpa, inaceitável face à Constituição da República Portuguesa, cujo art. 32.° n.° 2 há muito baniu do Processo Penal.

  25. Entende o recorrente que a decisão de que ora se recorre padece, pois, de flagrante erro notório na apreciação da prova, pelo que estamos na presença de um vício da decisão recorrida nos termos do art. 410.°, n.° 2 al. c) do Código de Processo Penal.

    DO RECURSO DA MATÉRIA DE DIREITO - A ERRADA SUBSUNCÂO JURÍDICA DOS FACTOS (art. 412°., n° 2, do CPP):

    1. Do enquadramento jurídico penal: 28. O recorrente foi condenado como autor material e em concurso real, de seis crimes de devassa da vida privada, p. e p. pelo artigo 192.°, n.° l, al. b), do Código Penal, porquanto o Tribunal a quo considera encontrarem-se preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do mencionado tipo legal de crime.

  26. Para que o ora recorrente fosse condenado pela prática dos seis crimes de devassa da vida privada, necessário era provar que ele teve ilegítima intenção de devassar a vida privada das pessoas, tendo, com tal intuito, captado as fotografias das crianças.

  27. Contudo, a inexistência de prova da prática do crime em análise pelo aqui recorrente impunha a sua absolvição, pois que, o recorrente foi condenado sem que do decorrer da Audiência de Discussão e Julgamento se tivesse feito prova de qualquer acto susceptível de preencher o referido tipo legal de crime.

  28. Violou, assim, o Tribunal a quo, o disposto no artigo 192.° do C. Penal.

    1. Da livre apreciação da prova: 32. A valoração da prova cabe exclusivamente ao julgador, que goza da prerrogativa da livre apreciação da prova consagrada no art. 127.° do Código de Processo Penal, contudo tal não se pode confundir com apreciação arbitrária da prova, e muito menos com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova.

  29. No caso sub judice, os factos dados como provados na sentença não têm correspondência com os depoimentos prestados perante o Tribunal a quo (e que não poderiam deixar de ser considerados determinantes para a formação da sua convicção), resultando exclusivamente de um juízo iminentemente presuntivo e impregnado de subjectivismo.

  30. Ora, face à lei processual penal, é absolutamente inadmissível aceitar a fundamentação repetida pelo Tribunal a quo no que respeita às regras da experiência comum, com o intuito de conceder alguma, embora muito débil, fundamentação à sua decisão, pois com base nessas alegadas regras da experiência sustenta um juízo de prognose desfavorável ao arguido. A livre apreciação da prova não pode atingir tal magnitude, que ultrapassa indubitavelmente os limites do razoável, do permitido, do legal.

  31. O único facto inabalável é que: as testemunhas não conseguiram demonstrar a intenção de devassar do arguido.

  32. Como tal, e porque a Lei não permite que se presuma uma conduta prejudicial ao arguido, outra solução não resta que não seja dar como não provada a participação do ora recorrente nos factos de que se recorre e pelos quais foi acusado, julgado e, a final, condenado.

  33. Impõe-se, assim, que o Tribunal ad quem afira da arbitrariedade da decisão claramente violadora dos critérios legais impostos ao julgador na valoração da prova, que não se pode bastar com “regras da experiência comum”.

  34. Ao inexistir correspondência lógica entre os factos dados como provados e a prova produzida, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 127.° do Código de Processo Penal.

    1. Do princípio in dúbio pro reo: 39. Sempre que o julgador tenha dúvidas quanto à responsabilidade criminal do agente, deverá decidir no sentido mais favorável àquele, aplicando o princípio in dúbio pró reo, que deve ser aplicado sem qualquer...

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