Acórdão n.º 76/88, de 21 de Abril de 1988

Acórdão n.º 76/88 Processo n.º 2/87 Acordam no Tribunal Constitucional (T. Const.): I Introdução 1 - ao abrigo do disposto nos artigos 281.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 51.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, requereu o Provedor de Justiça a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da deliberação n.º 17/CM/85, de 18 de Março, da Câmara Municipal de Lisboa, publicada no Diário Municipal, n.os 14605, de 1 de Abril de 1985, e 14615, de 16 de Abril de 1985.

Alega o Provedor de Justiça: a) Através da deliberação n.º 17/CM/85, de 18 de Março, a Câmara Municipal de Lisboa decidiu o lançamento de uma tarifa de saneamento relativa à prestação de serviços pelo Município no âmbito dos 'sistemas de resíduos sólidos, líquidos e águas residuais', que seria devida por todos os consumidores de água da Empresa Pública das Águas Livres no concelho de Lisboa a partir do dia 1 de Maio de 1985; b) A União de Associações da Indústria Hoteleira e Similares do Centro/Sul de Portugal solicitou a intervenção dele, Provedor de Justiça, no sentido de pedir ao T. Const. a declaração de inconstitucionalidade dessa deliberação n.º 17/CM/85; c) A União peticionante alicerçara então a tese de inconstitucionalidade da deliberação em causa na seguinte argumentação: 1.º A tarifa de saneamento criada é ilegal, porquanto o serviço cuja prestação se destinaria a retribuir não está previsto nos artigos 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 98/84, de 29 de Março, e 51.º do Decreto-Lei n.º 100/84, da mesma data; 2.º Ainda que tal tarifa fosse uma taxa, a sua criação pela Câmara Municipal de Lisboa era ilegal, uma vez que só as assembleias municipais tinham competência para estabelecer taxas; 3.º A nova espécie tributária - tarifa de saneamento - não constitui taxa, mas antes imposto, já que a sujeição ao seu pagamento não depende de qualquer prestação individualizada de um serviço público; 4.º Tratando-se de um imposto, é inconstitucional a tarifa de saneamento criada pela Câmara Municipal de Lisboa, por violação do disposto nos artigos 106.º, n.º 2, e 168.º, n.º 1, alínea i), da CRP; d) Ouvidos por ele, Provedor de Justiça, sobre tal pedido, quer a Câmara Municipal de Lisboa, quer o Ministério do Plano e da Administração do Território se pronunciaram - este último através da Direcção-Geral da Administração Autárquica - pela constitucionalidade da deliberação n.º 17/CM/85, justificando nos seguintes termos esse posicionamento: 1.º O lançamento da tarifa de saneamento respeitou à prestação de serviços aos munícipes nas áreas de tratamento de lixos e de conservação de esgotos; 2.º Tal tarifa, por ser contrapartida de serviços prestados pelo Município, tem apoio no disposto nos artigos 3.º, n.º 1, alínea e), e 9.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 99/84 e, ainda, no disposto no artigo 51.º, n.º 1, alínea p), do Decreto-Lei n.º 100/84.

E prossegue o Provedor de Justiça: e) Determina o artigo 3.º, n.º 1, alínea e), do Decreto-Lei n.º 98/84, de 29 de Março, que, entre outras, constitui receita dos municípios 'o produto da cobrança de taxas ou tarifas resultantes da prestação de serviços pelos municípios'; f) Por seu turno, o artigo 9.º do mesmo diploma enumera as actividades que podem dar lugar ao estabelecimento de tarifas, fazendo-o de forma taxativa e do seguinte modo: Abastecimento de água; Recolha, depósito e tratamento de lixos, bem como ligação, conservação e tratamento de esgotos; Transportes; g) Por sua vez, o Decreto-Lei n.º 100/84, no seu artigo 51.º, n.º 1, alínea p), ao definir a competência das câmaras municipais, limita-se a reproduzir o já referido artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 98/84, consagrando, pois, o direito à fixação de tarifas dentro do âmbito taxativo do mesmo preceito; h) Ainda de interesse para o caso em análise é o artigo 38.º, n.º 2, alínea e), do Decreto-Lei n.º 100/84, que atribui às assembleias municipais competência para criar taxas concelhias; i) É sobejamente conhecida a distinção doutrinal entre imposto, taxa e tarifa; j) Assim, no imposto, e fundamentalmente, não há lugar a qualquer contraprestação por parte da pessoa jurídica de direito público tributante; l) Ao contrário, existirá taxa sempre que com ela se vise retribuir uma actividade específica, isto é, um serviço prestado a certa pessoa por uma entidade colectiva de direito público; m) Por seu turno, a tarifa é inequivocamente o quantum da taxa a pagar pelos potenciais beneficiários do serviço prestado; n) Dúvidas, pois, não existem de que a Câmara Municipal de Lisboa não podia estabelecer a taxa de saneamento em questão, já que a sua criação era da competência da Assembleia Municipal; o) E nem se diga que o executivo da autarquia se limitou a fixar a tarifa de uma taxa previamente estabelecida; p) É que, e como resulta da deliberação em questão, visou-se antes lançar uma tarifa de saneamento relativa à prestação de certo serviço; q) Assim, e tendo em conta o mais que consta da deliberação, facilmente se conclui que a contraprestação do serviço prestado, isto é, a taxa, impropriamente chamada 'tarifa', teve carácter inovador, não tendo sido jamais criada pelo órgão deliberativo da autarquia, a Assembleia Municipal de Lisboa; r) Consequentemente, se a taxa tivesse sido criada pela Assembleia Municipal de Lisboa, dissesse respeito a um serviço efectivamente prestado pela autarquia, e uma vez que ao serviço de saneamento se refere efectivamente a alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 98/84, nada haveria a dizer, em matéria de ilegalidades, quanto à actuação da Câmara Municipal de Lisboa; s) Não foi, porém, esse, como se viu, o caminho prosseguido pela autarquia e, assim, numa primeira análise, a deliberação em questão será ilegal por invasão da esfera da competência da Assembleia Municipal de Lisboa; t) Por outro lado, e apesar de se estar perante uma deliberação autárquica, parece não existirem obstáculos à fiscalização da sua constitucionalidade, pois que ela é constituída indubitavelmente por um conjunto de normas jurídicas; u) Assim, será inquestionável que tais normas, resultantes do exercício da função administrativa, formam um autêntico regulamento e são susceptíveis de controle de constitucionalidade; v) Tal regulamento, impropriamente designado 'deliberação', não é um acto administrativo, mas antes um verdadeiro acto normativo secundário; x) É, por isso, indicutível que com a deliberação em exame, longe de se ter aplicado a lei a um caso concreto, dentro da esfera da competência da Câmara Municipal de Lisboa, se criaram antes comandos ou padrões de comportamento a que estão subjacentes os conceitos da generalidade e da abstracção, caracteres basilares de toda e qualquer norma jurídica; z) Nada impede, pois, que essa deliberação seja objecto de pedido de fiscalização sucessiva de constitucionalidade; a') Ultrapassada esta questão, cabe agora apurar se a matéria da deliberação ofende algum princípio constitucional; b') Já se viu que as autoridades podem criar taxas para se auto-retribuírem de serviços efectivamente prestados; c') E nada haveria aqui a censurar se o serviço denominado 'novo sistema interceptor de esgotos' estivesse a ser útil à população de Lisboa, caso em que se justificaria que os habitantes do concelho da capital tivessem de pagar a contrapartida do serviço de que beneficiavam; d') Como nota Joaquim Castro Aguiar, Regime Jurídico das Taxas Municipais, pp. 94 e seguintes, para que a taxa possa ser cobrada é preciso que o município preste o respectivo serviço; e') Há que haver, portanto, prestação efectiva de um serviço; f') Sem que o serviço seja posto à disposição do contribuinte não pode haver taxa; g') Mais, e por maioria de razão, se está montado o serviço, mas não funciona, a cobrança da taxa que lhe respeita é inviável; h') Ora, como resulta dos estudos e propostas que levaram à criação da taxa de saneamento, a Câmara Municipal de Lisboa outra coisa não visou com ela que não fosse financiar os custos de investimento e exploração do projecto relativo ao 'sistema interceptor de esgotos da cidade de Lisboa'; i') De resto, que a tarifa criada visou financiar o investimento desse projecto resulta claramente do n.º 7 da deliberação n.º 47/CM/84, de 30 de Maio, publicada no Diário Municipal, n.º 14406, de 12 de Junho de 1984, deliberação essa que, em boa verdade, foi a mãe da deliberação n.º 17/CM/85; j') Não está ainda a funcionar o serviço de saneamento denominado 'sistema interceptor de esgotos'; l') Não havendo serviço com rede montada e pronto a prestar um serviço útil à comunidade lisboeta, não é legítimo fixarem-se taxas e, muito menos, estabelecer-se o seu quantitativo (a tarifa); m') Assim, com tal medida, o município lisboeta visou arrecadar fundos, impondo unilateralmente aos cidadãos a prestação de uma certa quantia em dinheiro; n') Tratou-se, deste modo, da criação ex novo de uma espécie tributária, que não pode deixar de ser um imposto; o') Ora, a criação de impostos só pode efectuar-se através de lei da Assembleia da República, como resulta do disposto no artigo 168.º, n.º 1, alínea i), da CRP; p') Por conseguinte, a deliberação n.º 17/CM/85 é manifestamente inconstitucional.

2 - Observado o estatuído no artigo 54.º da Lei n.º 28/82, não apresentou, no entanto, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa qualquer resposta ao pedido do Provedor de Justiça.

3 - Cumpre agora apreciar e decidir se a deliberação n.º 17/CM/85, ou melhor, se as normas jurídicas que a integram são ou não inconstitucionais por infracção ao disposto nos artigos 106.º, n.º 2, e 168.º, n.º 1, alínea i), da CRP (como sustenta o Provedor de Justiça) ou por infracção ainda a outro referente constitucional (como é permitido pelo artigo 51.º, n.º 5, da Lei n.º 28/82).

Isto significa antes de mais - importa sublinhá-lo - que não se irá conhecer da eventual ilegalidade daquela deliberação camarária: por um lado, porque tal não é solicitado pelo Provedor de Justiça, apesar de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT