Acórdão nº 383/00 de Tribunal Constitucional (Port, 19 de Julho de 2000

Magistrado ResponsávelCons. Messias Bento
Data da Resolução19 de Julho de 2000
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 383/00

Processo nº 357/00

  1. Secção

Messias Bento

(Maria dos Prazeres Pizarro Beleza)

Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:

  1. Relatório:

    1. M... foi condenado, por acórdão da 6ª Vara do Tribunal Criminal de Lisboa, de 4 de Agosto de 1999, na pena única de 7 anos de prisão, resultante do cúmulo jurídico das penas correspondentes a 10 crimes de falsificação [artigo 256º, nº 1, alínea a), e n.º 3, do Código Penal], 8 crimes de burla qualificada (artigos 217º, nº 1, e 218º, nº 1) e 1 crime de burla simples (artigo 217º, nº 1).

      Tendo o arguido interposto recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 13 de Abril de 2000, veio julgá-lo parcialmente procedente. Assim, este Tribunal declarou extinto o procedimento criminal relativo a 3 dos crimes de burla, e absolveu o arguido de 1 crime de burla qualificada e de 1 crime de falsificação de documento, tendo confirmado o acórdão recorrido na parte relativa "às demais penas parcelares em que este arguido foi condenado" (9 crimes de falsificação de documento e 5 crimes de burla qualificada). Em resultado do novo cúmulo jurídico realizado, veio o recorrente a ser condenado na pena única de 6 anos de prisão.

    2. Recorreu, então, o arguido para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, visando "a apreciação da constitucionalidade da primeira parte da norma do artigo 256º, nº 3, do Código Penal em conjugação com o nº 1 do mesmo artigo e a definição de documento dada pela alínea a) do artigo 255º e artigo 1º, nº 3, do mesmo diploma, por violação dos artigos 29º, nºs 1, 3 e 4, e alínea c) do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa".

      O RECORRENTE concluiu como segue as alegações que apresentou neste Tribunal:

  2. O acórdão recorrido condenou o ora recorrente nos termos do artigo 256º, n.º 1, a), e n.º 3 do Código Penal, interpretando que a alteração e a substituição das chapas de matrícula dos veículos automóveis está prevista e é punida pelo nº 3 do artigo e diploma referido, em virtude de aqueles elementos dizerem respeito a documento autêntico ou com igual força.

  3. O Tribunal 'a quo' decidiu a presente questão na esteira do Assento de 5-11-98 – DR 1ª Série de 22-12-98, segundo o qual, 'na vigência do Cód. Penal de 1982, a alteração dolosa da chapa de matrícula consubstancia um crime de falsificação de documento p. e p. pelo seu art. 228º nºs 1 al. a e 2'.

  4. Na verdade o acórdão recorrido aplicou a norma do artigo 256º, n.º 3, do Código Penal na medida e com os mesmos fundamentos em que a aplicou e interpretou o citado Assento nº 3/98, mormente este ter sido aplicado na vigência do Código Penal de 1982.

  5. No entanto somos do entendimento que só pode considerar-se como documento autêntico ou com 'igual força' o que a lei define como tal, o que não é manifestamente o caso da chapa de matrícula, caso contrário estar-se-ia a fazer uma interpretação que vai além do sentido possível das palavras, e de conceitos legalmente pré definidos (cfr. artigo 9º, n.º 2, do Código Civil) sendo incompatível, entre outros, com o fundamento de segurança jurídica dos cidadãos.

  6. Donde a norma do artigo 256º, n.º 3, do Código Penal e a interpretação acolhida pelo douto acórdão recorrido, é inconstitucional por violação dos nºs 1, 3 e 4 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa e artigo 165º, n.º 1, c), da mesma Lei Fundamental.

  7. A interpretação dada à norma do artigo 256º, n.º 3, pelo Assento citado e perfilhada no acórdão recorrido, verificamos que o mesmo não recorreu à lei para definir 'documento autêntico ou com igual força'; então temos uma inconstitucionalidade numa dupla vertente; uma normativa, pois exige-se do legislador um especial cuidado na construção dos tipos penais e outra interpretativa, a operada pelo julgador.

  8. Inconstitucionalidade numa vertente normativa, pois os tipos de crimes pelas consequências que a sua prática acarreta, devem estar definidos na lei, com um suficiente grau de determinação dos seus pressupostos, em atenção aos princípios da legalidade democrática e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais inerentes a um Estado de Direito Democrático;

  9. Numa vertente interpretativa, a equiparação de chapa de matrícula à expressão 'documento com igual força' à de documento autêntico exarada no nº 3 do artigo 256º operada pelo acórdão recorrido apoiando-se no Assento nº 3/98 supra referido, é materialmente inconstitucional em face dos artigos 29º, nº 1, 3 e 4, da Constituição e artigo 1º, n.º 3, do Código Penal,

  10. Pois, independentemente do processo interpretativo utilizado pelo julgador, o certo é que, na ausência de 'pressupostos' que estejam 'expressamente' cominados na Lei, 'no momento da correspondente conduta', este 'criou/regulamentou' um tipo legal de crime, faceta esta que incumbe exclusivamente ao legislador alínea c) do nº 1 do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa;

  11. Ao retirar-se daquele preceito uma dimensão normativa igual à do artigo 228º, n.º 2, do Código Penal de 1982 e, em ambas, afastando-se da noção legal civilista de 'documento autêntico ou com igual força', não indicando qualquer dispositivo legal que os defina, não constante explicitamente do seu elemento literal, estar-se-á a preencher uma lacuna de regulamentação.

  12. Assim e também em conformidade com o sentido do que é 'expresso' referido no nº 3 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, não caber ao intérprete ou aplicador do direito aplicar normas penais com base em critérios por si formulados.

  13. Com a interpretação perfilhada pelo acórdão recorrido, nem sequer é possível ao próprio legislador, (sem ofender a Constituição), estabelecer por via legislativa solução idêntica àquela que resulta da interpretação ou integração (inconstitucional) da lei realizada pelo tribunal 'a quo', pois equiparando a alteração dolosa da chapa de matrícula a documento autêntico ou com igual força, teria sempre o legislador que definir, primeiramente, 'documento autêntico ou com igual força' para efeitos penais, ou, independentemente da definição supra, expressamente tipificar como crime agravado a falsificação dos elementos identificativos dos veículos...".

    Nas suas alegações, o MINISTÉRIO PÚBLICO começou por afirmar não existir, nem fundamento para imputar à norma penal qualquer inconstitucionalidade orgânica, por violação da alínea c) do nº 1 do artigo 165º da Constituição, nem qualquer questão perspectivável como de aplicação retroactiva da lei.

    No que toca à invocada inconstitucionalidade da interpretação realizada pelas instâncias, o Ministério Público entendeu que tal questão não poderia integrar o objecto do recurso, afirmando:

    O Tribunal Constitucional já definiu, em termos de clara maioria, nomeadamente no Acórdão nº 674/99 – aderindo à tese recentemente sustentada por Rui Medeiros – que 'hipóteses em que se questionam certas interpretações normativas por ofensa do princípio da legalidade penal – ou hipóteses idênticas, no âmbito do respeito pelo princípio da legalidade fiscal – não traduzem verdadeiras questões de inconstitucionalidade normativa, mas reflectem antes questões de inconstitucionalidade da própria decisão recorrida ou do acto de julgamento' – naturalmente insindicáveis num sistema que comete ao Tribunal Constitucional, não a apreciação e julgamento de um 'recurso de amparo', mas de estritas questões de inconstitucionalidade de 'normas'.

    (...)

    Só que – pelas razões constantes do dito aresto, para cuja fundamentação inteiramente se remete – tal não constitui objecto idóneo de um recurso de fiscalização da constitucionalidade de 'normas'.

    No tocante à inconstitucionalidade "normativa" invocada, o Ministério Público afirmou no essencial que "não se verifica qualquer 'esssencial indeterminação' do conceito legal utilizado pelo legislador no dito artigo 256º, nº 3, do Código Penal, incompatível com as exigências do princípio da tipicidade".

    Deste modo, o magistrado do Ministério Público concluiu nos seguintes termos:

    1. - Conforme resulta da jurisprudência firmada maioritariamente no Acórdão 674/99, não integra objecto idóneo de um recurso de fiscalização da constitucionalidade normativa a imputação à decisão recorrida de interpretação e aplicação extensiva ou analógica de certo conceito legal, usado pelo legislador penal para tipificar certo crime.

    2. - A norma constante do artigo 256º, nº 3, do Código Penal, ao tipificar o crime de falsificação de documento' com base no conceito de 'documento autêntico ou com igual força', não afronta o princípio da legalidade, já que o mesmo não obsta a que o legislador se possa socorrer de cláusulas gerais ou conceitos indeterminados na definição dos tipos penais.

    3. - Termos em que não deverá conhecer-se da questão de inconstitucionalidade 'interpretativa' suscitada pelo recorrente, devendo julgar-se improcedente a questão da 'inconstitucionalidade normativa' por ele levantada quanto ao artigo 256º, nº 3 do Código Penal.

    1. Notificado para se pronunciar sobre a questão prévia de não conhecimento parcial do recurso, veio o recorrente responder.

      Em síntese, quanto à invocação da alínea c) do nº 1 do artigo 165º, o recorrente esclareceu, no essencial, que questionava "o facto de a norma do caso sub judice possibilitar ao aplicador da lei a aplicação de penas a crimes não previstos inequivocamente pela mesma, e permitir concretamente, através de conceitos indeterminados, a criação de crimes por parte do aplicador da lei, contrariando frontalmente o disposto" naquele artigo. Assim, a interpretação "levada a cabo pelo tribunal recorrido" seria inconstitucional, "porquanto estando em causa matéria ligada a direitos fundamentais, formular critérios interpretativos que levem à criação de crimes, ou ao agravamento do tipo legal de crime caber unicamente ao legislador, ao qual é cometida a tarefa de emissão legislativa consubstanciadora de alterações ou modificações pertinentes a...

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