Acórdão nº 203/00 de Tribunal Constitucional (Port, 04 de Abril de 2000

Magistrado ResponsávelCons. Mota Pinto
Data da Resolução04 de Abril de 2000
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 203/00

Processo n.º 430/97

  1. Secção

Relator - Paulo Mota Pinto

Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:

Relatório: 1. No Tribunal Judicial da Comarca de Cuba respondeu, em processo comum e para julgamento em tribunal singular, J..., acusado da prática do crime p. e p. pelo n.º 10 do artigo 31º da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto, em conjugação com o disposto nos artigos 16º e 19º do mesmo diploma e com os artigos 22º, 24º, 27º, alínea e) e 32º, todos do Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro, e ainda com o disposto na Portaria n.º 640-B/94, de 15 de Julho.

Submetido a julgamento, veio a provar-se que o ora recorrido se encontrava, no dia 31 de Março de 1994, cerca das 20.30 horas, a caçar espécies animais em estado selvagem, numa zona de caça associativa da qual não era sócio.

Na sentença que, julgando procedente a acusação do Ministério Público, condenou J... na pena única de 180 dias de multa, à taxa diária de 350$00, num total de 63.000$00, e na interdição do direito de caçar por um período de três anos, o juiz do processo recusou-se a aplicar um dos segmentos dispositivos do artigo 31º, n.º 10 da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto.

Pode ler-se na decisão recorrida, proferida em 6 de Março de 1996:

"De acordo com o já citado art. 31 n.º 10 da Lei 30/86, a prática da infracção aí prevista, ‘...acarreta sempre a interdição do direito de caçar por um período de cinco anos...’.

As penas acessórias dependem da aplicação de uma pena principal – distinguindo-se dos chamados efeitos das penas, porquanto nestes se trata de consequências, necessárias ou pendentes de apreciação judicial, determinadas pela aplicação de uma pena, principal ou acessória, que não assumem a natureza de verdadeiras penas por lhes faltar o sentido, a justificação, as finalidades e os limites próprios daquelas (Assento STJ de 29 de Abril de 1992, in, DR I série-A, de 10.7.92) – e a respectiva moldura penal abstracta, obedece aos critérios legais de fixação da medida concreta.

Em nosso entender, tal disposição legal, na parte em que estabelece a sanção acessória da interdição do exercício de um direito como efeito automático da condenação pela prática do crime, é inconstitucional, por violação do art. 30 n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

Também por outro lado, na medida em que estabelece uma medida concreta fixa da sanção acessória a aplicar, sem atender ao suporte axiológico-normativo da culpa concreta que toda a pena tem de ter, viola o princípio da culpa, nulla poena sine culpa, e o disposto nos arts. 1, 13 n.º 1 e 25 da Constituição da República.

Nestes termos, de acordo com o art. 207 da Constituição, não deverá ser, nessa parte, aplicada a disposição legal em apreço."

  1. Desta decisão interpôs a representante do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Cuba recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 70º, n.º 1, alínea a) e 72º, n.º 3 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, o qual foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito suspensivo.

    Nas alegações apresentadas junto deste Tribunal, o senhor Procurador-Geral Adjunto concluiu do seguinte modo:

    "1º - Não é inconstitucional a norma constante do artigo 31º, nº 10, da Lei n.º 30/86, na parte em que estatui a sanção acessória de inibição do exercício do direito de caçar por um período fixo de 5 anos, sem, todavia, precludir ao julgador a valoração do suporte axiológico-normativo da culpa do arguido, como pressuposto da aplicação daquela pena acessória fixa.

    1. - Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente."

    O recorrido não contra-alegou.

    Corridos os vistos legais, e após mudança do relator devida a alteração na composição do Tribunal, cumpre decidir.

    1. Fundamentos:

    1. Objecto do recurso

  2. O artigo 31º da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto (Lei da Caça) pune os "crimes de caça" (v. o artigo 109º do Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro, que estabelece o regime jurídico do fomento, exploração e conservação dos recursos cinegéticos).

    O n.º 10 desse artigo 31º, que é a norma que vem posta em crise, dispõe assim:

    "Artigo 31º

    (Dos crimes e das contra-ordenações)

    (...)

    10 - A prática do exercício venatório em zonas de regime cinegético especiais, em épocas de defeso ou com o emprego de meios não permitidos, é punível com prisão de 30 dias a um ano, multa até 200 dias e acarreta sempre a interdição do direito de caçar por um período de cinco anos, bem como a perda dos instrumentos e produtos da infracção."

    A decisão recorrida recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, do segmento deste preceito segundo o qual a comissão do acto ilícito nele tipificado acarreta sempre a interdição do direito de caçar por um período de cinco anos.

    A Lei n.º 30/86 rege no seu artigo 32º sobre a aplicação e agravamento das penas e sanções acessórias, dispondo nos seus n.ºs 3 a 4, que aqui importa referir, do modo seguinte:

    "Artigo 32º

    (Aplicação e agravamento das penas

    e sanções acessórias)

    (...)

    3 - A condenação por qualquer das infracções criminais previstas nesta lei poderá implicar ainda a interdição do direito de caçar (...).

    4 - A interdição do direito de caçar pode vigorar por três a cinco anos.

    Só que, por força da imposição contida na norma do n.º 10 do artigo 30º, a prática do exercício venatório nas condições ali tipificadas, acarreta sempre a interdição do direito de caçar, e por um período de 5 anos, tendo sido aquele n.º 10, na referida parte, a norma cuja aplicação foi recusada.

    O objecto do presente recurso é, pois, a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 31º, n.º 10, da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto na parte em nela se estabelece que a comissão do acto ilícito nele tipificado (a prática do exercício venatório em zonas de regime cinegético especiais, em épocas de defeso ou com o emprego de meios não permitidos) acarreta sempre a interdição do direito de caçar por um período de cinco anos.

    Vejamos então.

    1. Apreciação do recurso

  3. A decisão recorrida, suportando-se no artigo 32º, n.º 4, da Lei n.º 30/86, impôs ao arguido a inibição do direito de caçar por um período de 3 anos, apenas rejeitando, em bom rigor, a parte da norma do artigo 31º, n.º 10 que faz sempre decorrer da condenação a imposição obrigatória da interdição do exercício cinegético com duração temporal fixa de cinco anos, automaticamente decorrente da lei.

    Cabe perguntar se o segmento normativo do artigo 31º, n.º 10, da Lei n.º 30/86, ora em apreço, ao prescrever a necessária interdição do direito de caçar por um período fixo de cinco anos, à revelia de uma concreta avaliação jurisdicional das circunstâncias do caso, colide com algum preceito constitucional, nomeadamente com a regra contida no artigo 30º, n.º 4 e com os princípios da igualdade e da proporcionalidade.

    Existirá aqui, efectivamente, violação de norma ou princípio constitucional? Designadamente, será violada a norma que proíbe que a lei ligue como efeito necessário a uma pena a perda de direitos civis, políticos ou profissionais (artigo 30º, n.º 4, da Constituição)?

  4. A sanção prevista no segmento em causa do artigo 31º, n.º 10 da Lei da Caça é, literalmente, a interdição de um direito, que é imposta obrigatoriamente e com uma duração fixa, como consequência da prática do ilícito previsto nesse artigo. Tratar-se-á aqui de um efeito da pena ou de uma pena acessória?

    As sanções penais acessórias são aquelas que só podem ser pronunciadas na sentença condenatória conjuntamente com uma pena principal.

    De um ponto de vista puramente teorético distinguem-se, pois, tais sanções dos chamados efeitos das penas, que são consequências determinadas pela aplicação de uma pena, principal ou acessória; e, em particular, distinguem-se das penas acessórias por não assumirem a natureza de verdadeiras penas, por lhes faltar o sentido, a justificação, as finalidades e os limites próprios daquelas.

    A qualificação precisa como pena acessória ou efeito da pena depara-se, porém, com as dificuldades resultantes da verificação, a este propósito, na evolução legislativa e na tradição doutrinal tanto portuguesa, como estrangeira, da existência de "uma insegurança e uma confusão – não meramente terminológicas! – quase inextricáveis" – assim, Jorge de Figueiredo Dias, Direito penal português. As consequências jurídicas do crime, Lisboa, 1993, § 86, referindo que

    "existe quem, pondo na sombra o conceito de «efeito das penas», considere que são penas acessórias todas as que de direito se seguem à condenação, como efeitos penais desta. Outros contrapõem as penas acessórias, que se acrescentam automaticamente (ope legis) à pena principal, às penas complementares, as quais, mesmo quando obrigatórias, têm de figurar expressamente na condenação. A orientação mais difundida é, porém, ainda, aquela que contrapõe o caracter automático ou ope legis da produção dos efeitos da pena à exigência de que a pena acessória – ainda quando obrigatória – seja pronunciada na sentença condenatória; e neste sentido se formou largo consenso na doutrina portuguesa, dado para mais o disposto no art. 83.° do CP de 1886. O CP de 1982 parece ter querido considerar como penas acessórias os efeitos das penas, a cuja produção retirou, de resto, automaticidade e mesmo carácter necessário; ao lado daqueles prevê, porém, a possibilidade de se produzirem, por força da lei, efeitos de certos crimes (art. 69.°-2)."

    As penas acessórias e os efeitos das penas encontram-se historicamente ligadas à infamia da legislação medieval e às suas penas da honra, com incapacidades, inabilitações e restrições de outra e diversa natureza que em regra atingiam o delinquente mesmo após o cumprimento da pena principal (v., em perspectiva histórica, J. Figueiredo Dias, ob. cit., §90, António Manuel Almeida Costa, O registo criminal, Coimbra, 1985, pág. 7, nota 6, págs. 40 e segs.), pensando-se com elas conseguir uma intimidação eficaz da generalidade das pessoas. Considerando-se, hoje, porém, de forma...

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