Acórdão nº 55/20.1T8VLN.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 12 de Abril de 2021

Magistrado ResponsávelTERESA COIMBRA
Data da Resolução12 de Abril de 2021
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Juiz Desembargadora Relatora: Maria Teresa Coimbra.

Juiz Desembargadora Adjunta: Cândida Martinho.

Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I.

No processo 55/20.1T8VLN que corre termos pelo juízo de competência genérica de Valença foi decidido julgar improcedente o recurso de impugnação intentado por M. J. e, consequentemente, manter a decisão administrativa que determinou a cassação do título de condução nº ……, bem como a impossibilidade de concessão de novo título de condução no prazo de 2 anos.

Inconformado com a decisão, recorreu para este tribunal da Relação concluindo o seu recurso do seguinte modo:

  1. Na fase administrativa inicial do processo não foi M. J. constituído arguido de acordo com o estatuído nos artºs 57º e segs. CPPenal, o que, por remissão, é consagrado no art.º 22º do Regime Geral das Contra-Ordenações e exigido e exigível na defesa das garantias e dos direitos e dos deveres substantiva e adjectivamente consagrados, a propósito.

  2. Nem, depois, foi cabalmente respeitado o seu direito de audição, nos termos do disposto no art.º 50º RGC-O, por não lhe terem sido comunicados os elementos necessários para que ficasse a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão a proferir.

  3. Sequentemente ao (ilegalmente) eivá-lo a ‘arguido’, tudo o processado não passa de uma proclamação urbi et orbi de que o seu título de condução será cassado, resumindo-se ao pretenso cumprimento do que é tido como uma mera ‘obrigação formal’.

  4. Tais postergações e omissões geram e consubstanciam nulidades insanáveis por não terem sido devidamente assegurados os direitos de efectiva defesa e de audiência, como, entre outros, decorre e obriga o no nº 10 do art.º 32º CRPort. – destarte violado.

  5. É tão flagrante esta violação que o aqui recorrente, v. g., nem sequer foi notificado que gozava do direito de constituir advogado ou de solicitar a nomeação de um defensor ou, tão pouco, da possibilidade de oferecer provas, o que é do mais básico e imprescindível mesmo em sede contra-ordenacional – v. art. 61º CPPenal.

  6. A Constituição da República Portuguesa, no n.º 4 do seu art.º 30º, proíbe que um cidadão perca direitos civis, profissionais ou políticos como efeito necessário de uma pena.

  7. Ora, o propugnado e decidido pela ANSR e sancionado pelo Tribunal a quo é que tendo o recorrente praticado os crimes em 1) e 2) de factos provados e sido, em cada, sentenciado à “perda de seis pontos, nos termos do artigo 148º n.º 2 do Código da Estrada”, não há senão lugar à inexorável perda automática do título de condução, por cassação. E dizem mais: que a proibição de obter novo título de condução tem uma duração fixa de dois anos.

  8. Tal contradiz um dos principais e basilares princípios do direito: a de que a pena deve ser graduada em função da culpa do infractor.

  9. O que acontece, na asserção formal / positivista sucessivamente adoptada, é uma aplicação cega e sem excepção duma única e mesma pena para todos os que atinjam a perda de 12, 13, 14, 15, 18, 24 ou mais pontos(!!!), já que todos eles ficam impossibilitados da obtenção de novo titulo de condução por esse período de dois anos e de exercer a condução de qualquer veículo a motor nesse mesmo lapso temporal.

  10. Donde, não só o disposto nos n.ºs 2, por reporte ao corpo do n.º 1, e 11 do art.º 148º CEst. como o n.º 1 do art. 169º desse diploma (que atribui a competência ao Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária para decidir sobre a verificação dos respectivos pressupostos e ordenar a cassação do título de condução) são materialmente inconstitucionais, por reporte ao no n.º 4 do art.º 30º CRPort.

  11. Não faz qualquer sentido atribuir, ab initio, a uma qualquer autoridade administrativa mais amplos e extensos poderes que aos Tribunais.

  12. Se a estes últimos apenas couber aplicar a(s) pena(s) acessória(s) de inibição de condução mas já não, ab initio, a cassação do título de condução, em última análise, tal até põe em causa os poderes (e as responsabilidades) do órgão de soberania Tribunais e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

  13. É que são os Tribunais que têm o direito à coadjuvação de outras entidades e não o invés! O) Violado ficou, pois, o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do art.º 202º CRPort.

  14. In casu, a cassação e a inerente impossibilidade de concessão de novo título de condução no prazo de dois anos, implica uma dupla condenação, em manifesta e ostensiva violação do princípio ne bis in idem – cfr. n.º 5 do art.º 29º, ancorado no disposto no n.º 5 do art.º 32º (estrutura acusatória do processo), ambos da CRPort.

  15. É que se cada condenação penal implicou a inibição de condução (de três meses e dez dias, a primeira, e de quatro meses, a segunda), de acordo com o referido princípio, ninguém pode ser julgado, nem condenado, mais que uma vez sobre os / pelos mesmos factos.

  16. Atente-se que os crimes cometidos, temporalmente próximos, resultaram de mera negligência e, ainda, que o aqui recorrente viu completamente paralisada a sua actividade profissional de motorista com o cumprimento dessas inibições e o mesmo sucederá com a cassação do seu título de condução, impedindo, nova e inexoravelmente, o exercício da sua profissão – e, concomitantemente, o seu sustento e o de sua família (agora de forma irreversível), como se vê e mostra de 6) de factos provados, S) In casu, a cassação decorrerá mecânica e automaticamente da sua segunda condenação.

  17. Então, mais não fosse, os quatro meses de inibição sempre teriam de ser subtraídos aos dois anos da cassação… Mas, à luz deste princípio, de condenação suplementar e ilegal se cuida, pelo que ‘cairá’ a cassação.

  18. O que o n.º 4 do art.º 30º CRPort. pretende proibir e proíbe é que à condenação em certas penas se acrescente de forma mecânica e automática, independentemente de decisão judicial que a venha a sancionar, a posteriori, uma outra pena com a mesma natureza ou fim.

  19. Ora, a inibição e a cassação são duas faces duma mesma e única moeda, sendo que a cassação tem o mesmo escopo da inibição – punir violações à segurança rodoviária – e pretende ser (rectius, pretende-se que seja) de aplicação mecânica, automática e sucessiva (administrativamente complementar), o que, como reportado, é constitucionalmente vedado e proibido.

  20. Para além da perda de direitos civis (afectando / destruindo a validade do título de condução) a propugnada cassação acarreta a violação do direito ao trabalho do aqui recorrente, também constitucionalmente consagrado (na consideração da actividade profissional exercida) – cfr. n.º 1 do art.º 58º CRPort. (v., ainda, o art. 23º n.º 1 DUDH e o em 6) de factos provados).

  21. A preconizada cassação viola, também, de forma grave e irreversível os princípios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação, sendo que os seus efeitos excedem largamente a culpa do agente, tanto mais que as infracções sentenciadas não foram praticadas com dolo e o título de condução é imprescindível ao exercício da actividade profissional e à própria subsistência do recorrente e do seu agregado familiar, pelo que a decisão do Tribunal a quo pode, deve e há de ser revertida.

Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento V/Excias., deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a, aliás douta, sentença recorrida, não se procedendo à pura e simples cassação do título de condução do recorrente pelo prazo de dois anos, assim se fazendo sã, serena, objectiva e a mais lídima JUSTIÇA!*Recebido o recurso e remetido a este tribunal, a ele respondeu o ministério público pugnando pela manutenção da decisão.

*Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (CPP).

*Após os vistos, foram os autos à conferência.

*II. Cumpre apreciar e decidir tendo em conta que em matéria de contraordenações o tribunal da Relação funciona como tribunal de revista por conhecer apenas de matéria de direito (artigo 75.º nº 1 do DL 433/82 de 27/10), sem prejuízo do disposto no nº 2 da referida norma e das questões de conhecimento oficioso.

Analisando a síntese conclusiva são as seguintes as questões trazidas à apreciação deste Tribunal: - nulidade insanável decorrente da falta de constituição do recorrente como arguido e desrespeito pelo direito de defesa; - violação do nº 4 do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa (CRP); - inconstitucionalidade material dos nºs 2 e 11 do artigo 148º e nº 1 do artigo 169º do Código da Estrada (CE), com a consequente incompetência da autoridade administrativa para decretar a cassação do título de condução e violação do disposto no artigo 202º, nº 1, 2 e 3 da CRP; - violação do princípio ne bis in idem; - subtração aos 2 anos de cassação do título, dos 4 meses de inibição impostos na última condenação criminal sofrida pelo recorrente; - violação do direito ao trabalho; - violação dos princípios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação.

É a seguinte a matéria de facto fixada em primeira instância e respetiva motivação: 1) No âmbito do processo 40/17.0GTVCT, o recorrente, por decisão transitada em julgado em 02.10.2017, o arguido foi condenado, pela prática, em 02.08.2017, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 6 euros, e na pena acessória de inibição de conduzir pelo período de três meses e dez dias.

2) No âmbito do processo 39/18.0GTVCT, o recorrente, por decisão transitada em julgado em 01.10.2018, o arguido foi condenado, pela prática, em 14.07.2018, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 6 euros, e na pena acessória de inibição de conduzir pelo período de quatro meses.

3) Por carta enviada com aviso de recepção e recebida a 15.04.2019, o recorrente foi notificado nos termos e para os efeitos previstos no art.50.º RGCO.

4) Da notificação referida em 3., cujo teor, a fls.13 a 15, se dá por integralmente reproduzido, constava o seguinte...

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