Acórdão nº 33/02 de Tribunal Constitucional (Port, 22 de Janeiro de 2002

Data22 Janeiro 2002
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 33/02

Procº nº: 1141/98.

  1. Plenário.

Relator:- BRAVO SERRA.

1. O Provedor de Justiça veio requerer, com fundamento na alínea d) do nº 2 do artigo 281º da Constituição, a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do nº 1 artº 85º do Regulamento de Disciplina Militar aprovado pelo Decreto-Lei nº 142/77, de 9 de Abril, para tanto, em síntese, aduzindo:-

- estabelecendo o nº 1 do artº 79º Regulamento de Disciplina Militar que a competência para instaurar ou mandar instaurar processo disciplinar coincide com a competência disciplinar, e o nº 1 do artº 85 do mesmo Regulamento que o instrutor do processo é, em regra, o chefe que determinou a sua instauração, daí resulta que é a mesma pessoa quem determina a instauração do processo, procede à respectiva instrução e aplica a decisão punitiva;

- o artigo 266º da Constituição, que consagra o princípio da imparcialidade administrativa e é aplicável à administração militar, não pode deixar de reger no âmbito do procedimento administrativo sancionatório;

- ora, se o disposto no nº 1 do citado artº 79º não parece prejudicar a aplicação daquele princípio, já a norma cuja declaração de inconstitucionalidade solicita põe em causa as garantias postuladas pelo mesmo princípio, tanto mais que o processo disciplinar militar pode culminar na aplicação de sanções tão gravosas como a prisão, que, por isso, reclamam especiais cuidados no que respeita às garantias de imparcialidade;

- não parece compatível com as garantias consagradas no nº 10 do artigo 32º da Constituição concentrar numa mesma pessoa a competência para mandar instaurar processo disciplinar, instruí-lo e punir;

- se do regime constitucional respeitante ao processo criminal, bem como do Código de Processo Penal, resulta que diferentes hão-de ser os juízes da pronúncia e do julgamento, o que é estabelecido tendo em vista a garantia da imparcialidade do julgamento, igualmente em processo administrativo sancionatório não deverá coincidir na mesma pessoa a competência para instruir e aplicar a sanção, e isso porque, de resto, a imparcialidade administrativa só é integralmente garantida se existir separação institucional e procedimental entre o órgão que conduz a fase instrutória do procedimento administrativo e o órgão competente para praticar o acto decisório.

2. Ouvidos sobre o pedido o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro Ministro, veio o primeiro oferecer o merecimento dos autos, enquanto que o segundo sustentou conformidade com a Lei Fundamental por parte da norma questionada.

Concluiu assim o Primeiro Ministro a resposta que apresentou:-

“Considerando:

A. Que, tal como resulta do nº 2 do artº 266º da CRP, o princípio da imparcialidade se revela essencialmente como um corolário de acção administrativa, que t[e]m como destinatários imediatos ‘os órgãos e agentes administrativos’ quando exercem ‘as respectivas funções’;

B. Que a sua incidência como vínculo ao legislador quando este dispõe sobre organização administrativa, emerge da conjugação dos princípios da justiça, proporcionalidade e igualdade, vendo fundamentada a sua aplicação como parâmetro de constitucionalidade das leis, apenas quando estas:

a) Direccionam a administração para o preenchimento de fins de natureza não exclusivamente pública;

b) Tornem manifestamente impossível ou criem necessariamente sérios riscos de tomada de decisões não isentas;

c) Ou omitam ou depreciem garantias constitucionais dos administrados [;]

C. Que o preceito impugnado ao permitir, na esfera do poder disciplinar militar, o cúmulo competencial de poderes instaurativos, instrutórios e de decisão na mesma autoridade, não preenche nenhuma das situações descritas na alínea precedente, tanto mais que existe uma relação de harmonização entre o mesmo preceito e o disposto no artº 86º do CPA, que, na qualidade de legislação geral e supletiva em matéria de procedimento administrativo, também admite a referida acumulação;

D. Que, contrariamente ao que o autor afirma, o Tribunal Constitucional não defendeu que todos os princípios de Processo Penal relativos às fases instrutória e decisória se deveriam ‘aplicar qua tale’ ao domínio da disciplina militar, já que, enquanto o primeiro consiste num processo judicial, o segundo é definível como um procedimento administrativo especial, para o qual a Constituição prevê, na al d) do nº 3 do seu artº 27º, a peculiar faculdade de os responsáveis pelo exercício do poder disciplinar poderem aplicar penas da privação da liberdade;

E. Que o Tribunal Constitucional reconhece no Ac. 103/87 as especificidades da ordem disciplinar militar, no quadro das notas características da instituição castrense, tais como ‘(...) a subordinação da actividade da instituição (e portanto da acção individualizada de cada um dos seus membros) não ao princípio da direcção e chefia comum à generalidade dos serviços públicos, mas a um peculiar princípio de comando em cadeia, implicando um especial dever de obediência; a sujeição dos mesmos a particulares regras disciplinares [e,] eventualmente, jurídico-penais;

F. Que o legislador detém, à luz do ordenamento constitucional, liberdade conformadora bastante para assegurar um procedimento de disciplina militar destinado a assegurar a eficácia dos imperativos da obediência e comando em cadeia, em cujo âmbito se inclui a possibilidade de concentração da função instrutória e decisória no âmbito do exercício do poder disciplinar;

G. Que a conduta administrativa dos órgãos da Administração Militar, se encontra sempre casuisticamente sujeita a ser invalidada quando bulir com o princípio da imparcialidade, mormente quando os actos concretamente praticados no mesmo exercício violarem as garantias dos arguidos; prosseguirem interesses alheios aos interesses públicos; revelarem um interesse pessoal e directo no caso de choque com o regime de impedimentos fixado pela legislação geral que regula o procedimento administrativo; demonstrarem uma manifesta falta de neutralidade; ou ostentarem uma visível falta de transparência na instrução e fundamentos da decisão[;]

H. Que da norma impugnada não decorre qualquer comando que determine, ou que crie riscos de ocorrência das situações acabadas de descrever;

Deve esse Venerando Tribunal não se pronunciar pela inconstitucionalidade do nº 1 do artº 85º do Regulamento de Disciplina Militar, assim fazendo a necessária Justiça”.

Apresentado memorando e fixada a orientação do Tribunal, cumpre decidir.

3. A norma sub iudicio determina que o instrutor do processo disciplinar é, em regra, o chefe que determinou a sua instauração.

De outro lado, no nº 1 do artº 79º do Regulamento de Disciplina Militar prescreve-se que a competência para instaurar ou mandar instaurar processo disciplinar (instauração essa que é imediata e obrigatoriamente efectivada por decisão dos chefes quando eles tenham conhecimento de factos que possam implicar responsabilidade disciplinar dos seus subordinados - cfr. artº 77º) coincide com a competência disciplinar, estatuindo-se no nº 1 do artº 94º que, se o chefe entender que a instrução do processo está completa, proferirá a sua decisão.

Como o requerente não põe em causa o citado nº 1 do artº 79º, tendo em conta que o teor literal da norma sindicada não rege sobre as relações entre a entidade instrutória e a entidade decisória e, por fim, ponderando o que comanda o aludido nº 1 do artº 94º, haverá que entender-se que o pedido abarca a norma ínsita no nº 1 do artº 85º do Regulamento de Disciplina Militar, no entendimento de que o chefe que instruir o processo disciplinar é o competente para aplicar a respectiva sanção.

Só assim, na verdade, é entendível o pedido, que não apela à conjugação normativa decorrente da articulação daqueles três preceitos.

É, pois, com estes cortornos que se irá analisar a questão.

4. Deverá, desde logo, sublinhar-se que o comando que se extrai da norma em causa (atendendo ao que acima ficou indicado) deve ser entendido como a «possibilidade» de convergirem numa mesma pessoa os poderes de instrução e decisão. E diz-se «possibilidade» já que, na prática usual - exceptuando as situações que se reportam a infracções leves - o que sucede é que, normalmente, o superior hierárquico que determina a instauração de procedimento disciplinar militar não é quem procede à instrução (cfr., aliás, o que se estatui nos números 2 e 3 do artº 83º do citado Regulamento).

Mas, dada aquela «possibilidade», importa verificar se, no processo disciplinar militar, a coincidência numa mesma pessoa das competências para instruir e punir se não compatibiliza com o princípio da imparcialidade da Administração.

Esta verificação impõe que sejam dadas respostas às seguintes subquestões:-

- saber se aquele princípio é aplicável no âmbito das Forças Armadas;

- saber se o mesmo princípio reclama, em geral, uma cisão entre a entidade instrutora e a entidade decisora;

- saber se, ainda que não seja dada resposta afirmativa à anterior subquestão, de todo o modo, a cisão é exigida quando estejam em causa processos sancionatórios;

- saber, por último, se, atenta a natureza das sanções aplicáveis em processo disciplinar militar - que pode culminar com a aplicação de penas de prisão -, o falado princípio terá de ser perspectivado como implicando inevitavelmente a cisão entre entidade instrutora e entidade decisora.

Comecemos pela primeira subquestão.

5. Tem sido sustentado que o princípio da imparcialidade da Administração, esteado no nº 1 do artigo 266º da Lei Fundamental, vincula “todas as autoridades ou entidades, públicas ou privadas, que de alguma forma exerçam a função administrativa ou pratiquem actos em matéria administrativa” (assim, Maria Teresa de Melo Ribeiro, O Princípio da Imparcialidade da Administração Pública, 1996, 123).

Porque aquela disposição constitucional está vertida no Título IX da Parte III do Diploma Básico, e porque os preceitos relativos à Defesa Nacional...

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