Acórdão nº 337/03 de Tribunal Constitucional (Port, 07 de Julho de 2003

Magistrado ResponsávelCons. Gil Galvão
Data da Resolução07 de Julho de 2003
EmissorTribunal Constitucional (Port

Acordão nº 337/03 Proc. n.º 727/02 3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão

Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:

I ? Relatório 1. Em processo que corre os seus termos na subdirectoria do serviço de Policia Judiciária Militar, e em que é arguido o Coronel A . .., o M.mo Juiz de Instrução junto da mesma subdirectoria lavrou despacho mandando constituir como arguida Z... (ora recorrente), casada com o primeiro arguido referido.

  1. Inconformada com esta decisão a arguida veio aos autos para arguir a nulidade daquele despacho, arguição que veio a ser julgada improcedente.

  2. Novamente inconformada a arguida recorreu deste despacho para o Supremo Tribunal Militar. A concluir a sua alegação, ponderou a recorrente:

    ?I) É nulo o despacho que constituiu a recorrente como arguida;

    II) A recorrente não é militar ? como, claramente, decorre dos autos;

    III) Ademais, os crimes que serão imputados à ora alegante (e que são aqueles que se indicam no item 4 do corpo destas alegações) exigem, na sua tipicidade, a função ou qualidade de militar;

    IV) Assim, se vier a ser julgada por actos por si praticados ( e que sejam considerados pela acusação como criminosos), é o tribunal comum o competente para o julgamento;

    V) Os artigos 28º e 29º do Código Penal não permitem a interpretação nem de que a recorrente possa jamais vir a ser punida por penas previstas no Código de Justiça Militar nem de que a competência para julgar uma civil deixe de ser dos tribunais comuns ou civis.

    VI) No sentido que se defende, veja-se a doutrina referenciada no item 5 do corpo destas alegações;

    VII) O entendimento do art. 28º, n.º 1, do Código Penal que está subjacente à constituição da ora requerente como arguida viola o preceituado nos art.º 29º, n.º 1, 30º, n.º 3 e 32º, n.º 9, todos da Constituição da República Portuguesa;

    VIII) O despacho sub judice violou os preceitos dos artigos 28º e 29º do Código Penal e 29º, n.º 1, 30º, n.º 3 e 32º, n.º 9, estes da Lei Fundamental;

    IX) Por isso, deve ser julgado procedente o presente recurso, declarando-se nulo o despacho que constituiu arguida a ora alegante?.

  3. O Supremo Tribunal Militar, por acórdão de 30 de Outubro de 2002, decidiu negar provimento ao recurso, decisão que fundamentou, para o que agora importa, nos seguintes termos:

    ?[...] De facto, a recorrente entende que, sendo civil, nunca pode ser julgada por tribunal militar.

    Não tem, porém, razão.

    Na vigência do Código de Justiça Militar de 1875 e seguintes, o foro militar conhecia dos crimes essencialmente militares fosse quem fosse o seu autor e ainda dos crimes comuns cometidos por militares.

    A partir do actual C.J.M. de 1977, os tribunais militares passaram a julgar somente os crimes essencialmente militares, em exclusivo e independentemente da condição de militar ou civil dos seus agentes.

    É o que resulta das normas constitucionais (hoje o artigo 213º, n.º 1 da Constituição ? versão de 1989 ainda em vigor) e do art. 309º do Código de Justiça Militar.

    Daí que a recorrente possa ser julgada por Tribunal Militar e ser constituída arguida em processo criminal militar, como qualquer cidadão militar ou civil, desde que seja indiciada pela prática de crime essencialmente militar.

    Segundo o despacho que mandou constituir a recorrente como arguida, esta terá praticado, em co-autoria, os crimes previstos no art. 193º, n.º 1, al. a); 195º, n.ºs 1 e 2 e 186º, n.º 1, al. a), todos do Código de Justiça Militar.

    Estes crimes exigem que o seu autor seja pessoa integrada ao serviço das Forças Armadas (artigos 193º, n.º 1 e 186º) e militar (artigo 195º), havendo forte indicação de que a recorrente não é nem uma coisa nem outra.

    Porém, o art. 28º, n.º 1, do Código Penal, aplicável in casu por força do art. 4º do C.J.M., preceitua: «se a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependerem de certas qualidades ou relações especiais do agente, basta, para tornar aplicável a todos os comparticipantes a pena prevista, que essas qualidades ou relações se verifiquem em qualquer deles, excepto se outra for a intenção da norma incriminadora».

    Esta foi a norma invocada pelo M.mo Juiz de Instrução recorrido para ordenar a constituição como arguida da recorrente, indiciada pela prática em co-autoria de crimes cometidos por um militar.

    A recorrente sustenta que este preceito não é aplicável aos crimes essencialmente militares próprios em que se exige, no tipo, a qualidade de militar ou de elemento integrado ou ao serviço das Forças Armadas, sustentando-se na opinião do Conselheiro Maia Gonçalves expressa no Código Penal Anotado.

    E adita que se interpretação contrária for aceite, ela seria inconstitucional por violação do disposto nos artigos 29º, n.º 1, 30º, n.º 3 e 32º, n.º 9 da Lei Fundamental.

    Tem este Supremo Tribunal a maior consideração e respeito pela opinião do Conselheiro Maia Gonçalves, antigo e ilustre Juiz do S.T.M.

    Todavia, no caso sub judicio, diverge-se da sua aludida opinião, por parecer que a qualidade de militar ou de integrado ou ao serviço das Forças Armadas, não constitui elemento definidor do ilícito como crime essencialmente militar, mesmo no crime militar próprio.

    Efectivamente, não é pela circunstância de o autor do crime ser militar que o ilícito se transfigura de comum para essencialmente militar.

    Os crimes essencialmente militares são aqueles que atingem gravemente os bens jurídicos e valores militares, tais como a disciplina, a coesão, a hierarquia, a segurança, etc. ..., independentemente de haver ou não crimes comuns com correspondentes ou semelhantes.

    Sucede que, pela natureza das coisas, há certos crimes que só podem ser cometidos materialmente por militares (v.g. a deserção, a insubordinação, o abandono de posto, etc. ...) e outros há que o legislador exige a qualidade de militar ou de pessoa integrada ou ao serviço das Forças Armadas como característica do seu autor material.

    Mas, em ambos os casos, o crime existe para proteger os bens jurídicos militares e por isso é crime essencialmente militar.

    Deste modo, tal como sucede em relação aos médicos, aos juizes ou aos funcionários públicos, em que existem crimes cuja autoria material só a eles pode ser atribuída, mas cuja comparticipação é punível em relação a outros agentes não detentores dessa qualidade, também nos crimes militares próprios a comparticipação é punível, nos termos do art. 28º, n.º 1, do Código Penal, mesmo quando só o seu autor material tenha a qualidade de militar ou de pessoa integrada ou ao serviço das Forças Armadas.

    Assim, a recorrente podia ser, como foi, indiciada como arguida pela co-autoria dos crimes que lhe são imputados.

    Alega a recorrente que esta interpretação dada ao art. 28º, n.º 1, do Código Penal viola o disposto nos artigos 29º, n.º 1, 30º, n.º 3 e 32º, n.º 9 da Constituição, mas igualmente, ao que se crê, sem razão.

    O art. 29º, n.º 1, da CRP estatui o princípio da nula poena sine lege, o que não impede a imputação à recorrente dos crimes cuja previsão e pena estão há muito previstos no C.J.M.

    O artigo 30º, n.º 3 da Lei Fundamental dispõe que «a responsabilidade penal é insusceptível de transmissão», o que também é inaplicável ao caso dado em que se atribui à recorrente a imputação de factos por ela praticados e que a responsabilizam penalmente. E não constitui transmissão de responsabilidade a circunstância de ser estendida uma qualidade pessoal existente num arguido a todos os comparticipantes do crime.

    Finalmente, quanto ao art. 32º, n.º 9 da Constituição, que estabelece que o princípio do juiz natural, não existe em execução da norma em causa qualquer subtracção ao foro competente.

    Pelo contrário, segundo a lei o tribunal competente para o julgamento dos crimes essencialmente militares é e sempre foi o tribunal militar.

    Desta sorte, não foram infringidas as regras de competência ao ser a recorrente constituída como arguida no foro militar, pelo que não existe nulidade em tal constituição e os despacho recorrido não merece censura?.

  4. Foi desta decisão que foi interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC, o presente recurso, para apreciação da inconstitucionalidade ?dos artigos 28º e 29º do Código Penal, tendo em conta a interpretação que lhes foi dada na decisão recorrida?, por alegada violação dos artigos 29º, n.º 1, 30º, n.º 3 e 32º, n.º 9 da Constituição.

  5. Já neste Tribunal foi a recorrente notificada, nos termos do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, ?para indicar a interpretação normativa dos artigos 28º e 29º do Código Penal que considera inconstitucional?.

  6. Em resposta a esta solicitação apresentou a recorrente o requerimento de fls. 59 e 60, que dispõe como segue:

    ?1. O despacho de que inicialmente se recorreu para o Supremo Tribunal Militar e o Acórdão proferido pelo mesmo Tribunal Militar entenderam que os artigos 28º e 29º do Código Penal são aplicáveis ao caso dos autos e que, portanto, a ora-requerente deve responder em Tribunal Militar.

  7. Mas, na esteira do Conselheiro Maia Gonçalves (Código Penal Português, Anotado e Comentado e Legislação Complementar, 12ª edição, 1998 páginas 149 e 150) a melhor interpretação daqueles preceitos é de molde a entender-se que ficam excluídas as qualidades que fundamentam a submissão a um ordenamento autónomo de crimes, como é o caso da qualidade de militar.

  8. A interpretarem-se os citados artigos do Código Penal, como o fizeram os Tribunal Militares, violar-se-iam os artigos citados no requerimento de interposição do presente recurso (artigos 29º, n.º 1, 30º, n.º 3 e 32º, n.º 9 da C.R.P.) em termos de sujeitar a requerente a julgamento em Tribunal claramente incompetente já que ela é civil e os crimes de que é acusada exigem, na sua tipicidade, a função ou qualidade de militar.

  9. Em suma, o referido entendimento dos artigos 28º e 29º do Código Penal levaria a que, ilegal e inconstitucionalmente, um civil viesse a ser julgado não no Tribunal Comum, como é seu direito, mas num Tribunal Militar, com o gravame que tal geraria e com total desrespeito pelos...

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