Acórdão nº 590/04 de Tribunal Constitucional (Port, 06 de Outubro de 2004

Magistrado ResponsávelCons. Artur Maurício
Data da Resolução06 de Outubro de 2004
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 590/2004

Processo n.º 944/03

Plenário

Relator: Conselheiro Artur Maurício

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I - Relatório

Um Grupo de Deputados do PS à Assembleia da República requer a este Tribunal a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº 305/2003, de 9 de Dezembro, que são do seguinte teor:

Artigo 1º

Crédito bonificado para habitação

São revogados os regimes de crédito bonificado e crédito jovem bonificado, relativamente à contratação de novas operações de crédito, destinadas à aquisição, construção e realização de obras de conservação ordinária, extraordinária e de beneficiação de habitação própria permanente, regulado pelo Decreto-Lei n.º 349/98, de 11 de Novembro, na sua actual redacção.

Artigo 2º

Entrada em vigor

O presente diploma entra em vigor em 1 de Janeiro de 2004.

Como fundamentos do seu pedido, alegou, em síntese, o Grupo de Deputados requerente:

- O Decreto-Lei nº 349/98, de 11 de Novembro, regula a concessão de crédito à aquisição, construção, conservação e beneficiação de habitação, quer em regime geral, quer em regime bonificado ou jovem bonificado.

- O Decreto-Lei nº 16-A/2002, de 31 de Maio, vedou a contratação de novas operações de crédito nos regimes bonificados e o Decreto-Lei nº 32-B/2002, de 30 de Dezembro, renovou aquela determinação para o ano de 2003.

- O Decreto-Lei nº 305/2003, de 9 de Dezembro, transformou num dispositivo de aplicação permanente as determinações anuais dos dois diplomas acima referidos.

- O artigo 1º do Decreto-Lei nº 305/2003, ao revogar os regimes de crédito bonificado e crédito jovem bonificado, relativamente à contratação de novas operações de crédito, destinadas à aquisição, construção e realização de obras de conservação ordinária, extraordinária e de beneficiação de habitação própria permanente, suscita dúvidas de conformidade com a Constituição por, desde logo, não ser compatível com o disposto na alínea d) [o pedido refere a alínea a), o que constitui, certamente, um lapso] do artigo 9º da Constituição, que estabelece como função do Estado “promover o bem estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais (...)”.

- A norma acima identificada incorre também em violação do disposto no nº 3 do artigo 65º da Constituição, que explicitamente determina o apoio do Estado ao “acesso à habitação”, uma vez que, por um lado, a protecção do direito à habitação implica a criação, em favor dos cidadãos, de regimes que facilitem o acesso à aquisição de casa própria e, por outro lado, o crédito bonificado desempenha um papel crucial neste campo (cf. Jorge Miranda e Bacelar Gouveia, O crédito bonificado à habitação e a Região Autónoma dos Açores, Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, Vol. XXXVII, nº 1, 1996, pág. 304).

- Efectivamente, o direito à habitação, tal como está consagrado na Constituição, não terá um mínimo de garantia se as pessoas não tiverem possibilidade de conseguir habitação própria em condições compatíveis com os rendimentos das famílias, cumprindo ao Estado – enquanto sujeito passivo do direito à habitação – adoptar os necessários instrumentos de satisfação ou de concretização do direito em questão, entre os quais está a criação de um regime de facilitação do acesso à habitação própria, designadamente, a criação de créditos bonificados (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra, Almedina, pág. 345).

- Numa outra perspectiva, a norma em questão põe em causa a concretização do direito fundamental consagrado no nº 1 do artigo 36º da Constituição, pois esta norma constitucional determina que todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade, sendo que a aquisição de casa própria reveste especial importância neste âmbito, facilitando a decisão de contrair casamento e constituir família por parte dos jovens.

- Por outro lado, a norma acima mencionada contradiz o princípio da diferenciação positiva consagrado na alínea c) do nº 1 do artigo 70º da Constituição, que refere que “os jovens gozam de protecção especial para efectivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais, nomeadamente (...) no acesso à habitação”. Efectivamente, a existência de um regime bonificado para a aquisição de casa própria por parte dos jovens constitui um mecanismo fundamental de afirmação de tal princípio.

- Finalmente, o diploma em questão afasta do sistema jurídico normas legais destinadas a conferir exequibilidade às normas constitucionais impostas ao Estado em matéria de direitos fundamentais sem as substituir por outras, incorrendo em inconstitucionalidade na medida em que o Estado não só está obrigado a criar esses mecanismos de exequibilidade como também a não abolir os já existentes (note-se que, praticamente desde a entrada em vigor da Lei Fundamental, o legislador ordinário vem publicando sucessivos diplomas legais consagrando o crédito bonificado para habitação, com o objectivo de dar cumprimento à referida imposição constitucional de facilitar o acesso à aquisição de habitação própria).

Conclui o Grupo de Deputados do PS à Assembleia da República no sentido de as normas constantes do Decreto-Lei nº 305/2003 serem inconstitucionais, por desconformidade com o disposto na alínea d) do artigo 9º, no nº 1 do artigo 36º, no nº 3 do artigo 65º e na alínea c) do nº 1 do artigo 70º, todos da Constituição.

Notificado do pedido, veio o Primeiro-Ministro responder, alegando, fundamentalmente, o seguinte:

- As normas impugnadas nos autos em nada afectam o “direito de acesso à habitação” constitucionalmente previsto, nem tão pouco se mostram incompatíveis com o disposto na alínea d) do artigo 9º da Constituição, que estabelece como função do Estado promover o bem-estar e qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais.

- O que resulta revogado é o sistema de bonificação ou incentivos ao crédito para habitação, não o crédito em si. Além disso, não estão abrangidos pela revogação os contratos que já se tinham iniciado à data da entrada em vigor da Lei nº 16-A/2002, de 31 de Maio, ou que se encontravam em fase de contratação e cujas escrituras públicas ou contratos de compra e venda titulados por documento particular, nos termos legais, foram celebrados até 30 de Setembro de 2002, preservando-se, deste modo, as “legítimas expectativas” dos cidadãos.

- O que está em causa no pedido é o direito de acesso a habitação própria, sendo certo que o direito à habitação, na sua complexidade e multidiversidade não se esgota nessa única dimensão. De facto, ele implica uma política urbana global que tem directamente a ver com a gestão do território e do ambiente, o que é confirmado pela alteração, introduzida pela revisão constitucional de 1997, na epígrafe do artigo 65º de “habitação” tout court para “habitação e urbanismo”.

- Noutro plano, a promoção do direito à habitação não compete unicamente ao Estado. Nos termos da Constituição, a “política de habitação e urbanismo” implica a colaboração das autarquias locais, quanto à construção de habitações económicas e sociais, para os sectores mais carenciados da sociedade, o estímulo e incentivo à construção privada, bem como o incentivo e apoio a iniciativas das comunidades locais e populações, com vista à resolução dos respectivos problemas habitacionais, fomentando a criação de cooperativas de habitação e auto-construção. É, pois, no quadro de uma actividade de estímulo e incentivo à construção privada, que o Estado, através de uma política social adequada, deverá criar condições de acesso a habitação própria ou arrendada.

- Ao Estado cumpre garantir os meios que facilitem o acesso à habitação em número e configuração igualmente diversificados. Ora, o sistema de crédito bonificado apresenta-se como um dos meios de acesso a habitação própria, destinando-se a beneficiar tão-só os titulares de rendimentos mais carenciados, já que assume a natureza de um incentivo, que se traduz, quanto à generalidade dos cidadãos que a ele não recorram, num encargo ou desvantagem. O que o Estado deverá promover não é uma igualdade universal de acesso à habitação, mas uma igualdade de oportunidades, tendo em conta os titulares de rendimentos mais carenciados.

- No âmbito de uma “política de saneamento e rigor das finanças públicas” e de “desenvolvimento da economia”, o Governo propõe-se levar a cabo uma política de adopção gradual de estímulos de natureza fiscal ao investimento privado e à poupança, aí se incluindo o sistema de poupança-habitação, que devem ser vistos, na sua globalidade, como meio idóneo de acesso à habitação e, designadamente, fomentando uma “revisão integrada da tributação do património imobiliário”.

- Nesta ordem de considerações, e tendo em conta que cerca de 80% das verbas se destinam a apoios à aquisição de habitação própria, o Governo propõe-se orientar a sua política de habitação e de juventude, tendencialmente, no sentido de favorecer outro tipo de intervenções, nomeadamente as que estimulem a reconstrução e manutenção de edifícios, potenciando o aproveitamento do património existente e contrariando a pressão de cariz especulativo para o consumo contínuo de novos solos. Na execução dessa política, o Governo levará a cabo uma revisão da legislação do arrendamento e, em simultâneo, oferecerá à população e aos jovens soluções de habitação com versatilidade e qualidade. Adoptar-se-á uma política efectiva de renovação urbana dos bairros sociais, melhorando o espaço envolvente no que respeita a infra-estruturas diversas, nomeadamente áreas de educação e de lazer, unidades geradoras de emprego local, acessibilidades e arranjos.

- Esta decisão do Governo está em conformidade com o seuPrograma...

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