Acórdão nº 541/04 de Tribunal Constitucional (Port, 15 de Julho de 2004

Magistrado ResponsávelCons. Fernanda Palma
Data da Resolução15 de Julho de 2004
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 541/04

Processo nº 786/2003

  1. Secção

Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma

Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional

I

Relatório

  1. A. e B. intentaram acção com processo ordinário contra Instituto de Gestão do Crédito Público, pedindo o reconhecimento do direito à transmissão da totalidade dos certificados de aforro (identificados a fls. 3) ou, no caso de assim não ser decidido, do direito à transmissão da meação dos referidos certificados.

    O Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, por decisão de 8 de Abril de 2002, julgou a acção procedente, condenando o Réu a reconhecer aos Autores o direito à transmissão da totalidade dos certificados de aforro identificados, bem como aos rendimentos inerentes.

  2. O Instituto de Gestão do Crédito Público interpôs recurso da decisão de 8 de Abril de 2002 para o Tribunal da Relação de Lisboa.

    O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 12 de Dezembro de 2002, entendeu o seguinte:

  3. O Direito.

    A sentença recorrida assenta nos seguintes fundamentos: a herança manteve-se jacente até ao momento em que a A. a aceitou, o que sucedeu nas datas em que outorgou nas escrituras públicas de habilitação. Por outro lado, o direito de aceitação da sucessão não caducou, face ao que se dispõe no art. 2059º, nº 1, do C.Civil, contando-se o prazo de 10 anos a que alude esta disposição legal a partir do momento em que o sucessível conhece a existência de relações jurídicas patrimoniais constitutivas da herança aberta por morte, ou seja, a partir do momento em que a A. teve conhecimento da existência dos certificados de aforro, o que aconteceu em 13.6.2000.

    Donde o art. 7° do DL. n° 172-B/86 tem de ser interpretado restritivamente, no sentido de que o legislador tão-só quis determinar que, após a concretização do direito de exigir a partilha, o herdeiro ou o cônjuge meeiro tem o direito de averbar a sua propriedade nos certificados de aforro (art. 2101° do C. Civil).

    O R., nas alegações de recurso, reconhece o direito dos apelados à transmissão da parte dos certificados de aforro que pertenciam a C., mãe da A., por força da meação que lhe coube por morte de D., porquanto eram casados no regime de comunhão geral de bens e em relação ao óbito daquela não tinha ainda decorrido o prazo de 5 anos previsto no art. 7º, n° 1, do DL. n° 172-B/86, o mesmo não acontecendo quanto aos certificados de aforro que integram o acervo hereditário do aforrista.

    O recurso restringe-se, portanto, a estes últimos certificados de aforro.

    As diferentes posições assumidas na sentença e conclusões do recurso colocam-nos, desde logo, perante o problema da interpretação da lei (art. 9° do C.Civil).

    Está em causa o art. 7° do DL. n° 172-B/86, na redacção anterior à introduzida pelo art. 12° do DL. n° 122/2002, de 4 de Maio, uma vez que, quando este diploma legal entrou em vigor (5 de Maio de 2000), já havia decorrido o prazo de 5 anos previsto na primitiva redacção.

    Dispunha o referido art. 7° que “Por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efectivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhe deram origem, ou o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado (nº 1).

    Findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições relativas à prescrição (nº 2).

    Como ensina Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1995, págs. 182 e sgs.), o texto é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei. A letra (o enunciado linguístico) é, assim, o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9º, nº 2, do C.Civil: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.

    Ainda pelo que se refere à letra (texto), esta exerce uma terceira função: a de dar um mais forte apoio àquela das interpretações possíveis que melhor condiga com o significado natural e correcto das expressões utilizadas. Com efeito, nos termos do art. 9º, n° 3, o intérprete presumirá que o legislador “soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. Só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzam à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo.

    No mesmo sentido, escreve Oliveira Ascensão: “a letra é não só o ponto de partida, mas também um elemento irremovível de toda a interpretação, funcionando também o texto como limite da busca do espírito” (O Direito, 6ª ed., 1991, pág. 368).

    Dos ensinamentos expostos, podemos, desde já, adiantar que do nº 1 do art. 7º que regula a sucessão na titularidade dos certificados de aforro, decorre que o facto que despoleta a contagem do prazo de prescrição é a morte do titular dos mesmos e que esse prazo é de cinco anos após a morte e não cinco anos após a partilha.

    Isso mesmo se depreende, ainda, do nº 1 do art. 3° do mesmo Dec.-Lei, que dispõe que os certificados de aforro da denominada «série E», cuja administração está a cargo da Junta de Crédito Público, «são nominativos, reembolsáveis e só transmissíveis por morte».

    Mas será que o legislador adoptou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que pretendia dizer, a ponto de o intérprete não dever deixar-se arrastar pelo alcance aparente do texto, mas dever restringi-lo em termos de o tornar compatível com o pensamento legislativo, de modo a que onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance (cessante ratione legis cessat eius dispositio)?

    Ou seja, deverá proceder-se a uma interpretação restritiva daquele dispositivo legal, na medida em que consagra soluções contrárias ao sistema jurídico, temperando-o na sua literalidade por uma hermenêutica sistemática, como refere a sentença recorrida?

    Entendemos que não.

    É verdade que o domínio e posse dos bens da herança se adquire pela aceitação.

    Resulta também do art. 2050º, nº 1, do C.Civil, que o direito fundamental que a lei confere ao chamado é o de aceitar ou repudiar a herança. Trata-se de um direito potestativo que se dirige à produção de determinados efeitos jurídicos. E mediante o exercício desse direito - exercício no sentido da aceitação - que o chamado ingressa na titularidade dos bens ou direitos hereditários, embora a aquisição se considere retroagida, em principio, ao momento inicial da abertura. Até lá a herança é um património sem sujeito, constitui um património autónomo.

    O direito de aceitar a herança caduca ao fim de dez anos, contados desde que o sucessível tem conhecimento de haver sido a ela chamado (art. 2059º, nº 1, do C. Civil).

    Decorrido este limite temporal, não são apenas os bens da herança que se perdem; é a própria qualidade de herdeiro.

    Por outro lado, qualquer co-herdeiro ou o cônjuge meeiro tem o direito de exigir a partilha quando lhe aprouver, não podendo renunciar-se ao direito de partilhar, mas pode convencionar-se que o património se conserve indiviso por certo prazo, que não exceda cinco anos, sendo lícito renovar este prazo, uma ou mais vezes, por nova convenção (art. 2102° do C. Civil).

    Porém, contrariamente ao defendido pelo M° Juiz “a quo”, estas normas não ficam esvaziadas com a aplicação do referido art. 7º, nº 1, do DL. n° 172-E/86, pelo facto deste preceito fixar um prazo de prescrição que, no entendimento da sentença recorrida, não se harmoniza com aqueles outros prazos referidos.

    Se assim fosse, então o mesmo poderia acontecer com todos os preceitos legais que fixam os prazos da prescrição (v. arts. 309° e sgs. do C. Civil) e não se vislumbra que o legislador tenha consagrado soluções que contendem com a unidade do sistema jurídico e que acarretem, em consequência, insegurança do comércio jurídico.

    Como também não se mostram violados quaisquer princípios constitucionais, designadamente o art. 62° da Constituição, uma vez que não está em causa o direito à propriedade privada e à sua...

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