Acórdão nº 422/04 de Tribunal Constitucional (Port, 16 de Junho de 2004

Data16 Junho 2004
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 422/2004 Processo n.º 462/03 Plenário

Relator: Conselheiro Artur Maurício (Conselheiro Rui Moura Ramos)

Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional

1- A Câmara Municipal de A., visando a construção do Parque Industrial da cidade, promoveu a declaração de utilidade pública e consequente expropriação de uma série de prédios situados no concelho de A.. Contava-se entre estes a totalidade da área de um prédio inscrito na matriz predial rústica, pertencente a B. e sua mulher, C..

Fixado por arbitragem o valor da indemnização e adjudicada a propriedade à expropriante, veio esta interpor recurso [artigo 52.º do Código das Expropriações (adiante designado CE, reportando-se a referência ao Código aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro)] para o Tribunal Judicial da Comarca de A., visando reduzir o valor indemnizatório fixado na arbitragem.

Realizada a avaliação do prédio (artigo 61.º, n.º 2 do CE) foi-lhe atribuído o valor de 20.256 euros, proferindo o Tribunal de A. a decisão de fls. 687/689 v.º, que, julgando parcialmente procedente o recurso, fixou a «justa indemnização» nesse mesmo montante. Nesta decisão (parte 3.2. a fls. 689) recusou o Tribunal, por a considerar inconstitucional, a aplicação do n.º 4 do artigo 23.º do CE (ou seja, deduzir ao montante fixado a diferença entre as quantias pagas até aí pelo expropriado, a título de Contribuição Autárquica, e as que teria pago com base na avaliação efectuada no processo de expropriação). Fundou-se tal recusa na violação dos “princípios constitucionais da igualdade, na sua vertente externa, e da justa indemnização (artigos 13.º e 62.º, n.º 2 da CRP)”.

Desta decisão, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (adiante designada LTC), recorreu o Ministério Público para este Tribunal. Paralelamente, a expropriante/Câmara Municipal de A. (requerimento de fls. 694), pretendeu apelar da mesma, sendo que, através do despacho de fls. 697, em que foi admitido o recurso para o Tribunal Constitucional, foi relegada para momento posterior a tomada de posição sobre o recurso da Câmara, por se encontrarem interrompidos, em função do recurso de constitucionalidade, os prazos de interposição de outros recursos (artigo 75.º, n.º 1 da LTC).

Chegado o processo a este Tribunal, apresentou o Ministério Público alegações, pugnando pela procedência do recurso, rematando-as com as seguintes conclusões:

“1 – A norma constante do artigo 23º, nº. 4, do Código das Expropriações de 1999, ao prever a compensação entre o montante da indemnização devida ao expropriado e resultante da avaliação efectuada em tal processo e o direito da Fazenda Pública à correcção e revisão oficiosa da liquidação da contribuição autárquica, resultante da actualização dos valores matriciais – e devida no período temporal em que não ocorreu ainda caducidade do direito à liquidação- não viola os princípios da não retroactividade da lei fiscal e da igualdade, confiança, segurança jurídica e justa indemnização.

2– Na verdade – e face ao regime instituído nos artigos 20º. e 21º. do Código da Contribuição Autárquica – a liquidação desta com base nos valores constantes de matrizes não actualizadas reveste natureza provisória até ao momento da caducidade do direito à liquidação e revisão oficiosa, podendo ser corrigida pela Administração Fiscal sempre que uma superveniente avaliação dos bens revele um valor patrimonial superior ao que constava da matriz.

3– E inexistindo, deste modo, qualquer expectativa minimamente fundada do contribuinte na estabilidade dos valores liquidados com base na matriz, sendo os mesmos oficiosamente revisíveis sempre que uma avaliação ulterior dos bens mostre que os valores patrimoniais não estavam actualizados.”

Não houve contra-alegações.

No uso dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 79º-A n.º 1 da LTC, o Presidente deste Tribunal determinou, com a concordância do Tribunal, que o julgamento do recurso se fizesse com intervenção do Plenário.

Cumpre decidir

2 - A recusa de aplicação que está na base do presente recurso de constitucionalidade vem referida ao artigo 23.º, n.º 4 do CE que estabelece:

Artigo 23.º

(Justa indemnização)

“...........................................................................................

  1. Ao valor dos bens calculados por aplicação dos critérios referenciais fixados nos artigos 26.º e seguintes, será deduzido o valor correspondente à diferença entre as quantias efectivamente pagas a título de Contribuição Autárquica e aquelas que o expropriado teria pago com base na avaliação efectuada para efeitos de expropriação, nos últimos cinco anos.”

    Trata-se de uma disposição inovadora do actual Código das Expropriações, introduzida pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, sem qualquer correspondência no direito anterior [ou seja, no Código aprovado pelo D.L. n.º 438/91, de 9 de Novembro (CE 91), e no diploma que antecedeu este último: o Código das Expropriações aprovado pelo D.L. n.º 845/76, de 11 de Dezembro].

    A explicitação do juízo de desconformidade constitucional da norma recusada é feita na decisão recorrida remetendo para dois trabalhos publicados na vigência do actual CE. Vejamos, pois, o que, nos trechos em causa dessas obras, afirmam a tal respeito os dois autores respectivos:

    “……………………………………………………………………

    Esta disposição (o artigo 23.º, n.º 4) obsta a que o montante indemnizatório corresponda ao valor real e corrente do bem, pelo que é inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da igualdade e da justa indemnização.

    Nem sequer se pode afirmar que é um pagamento retroactivo da contribuição autárquica, dado que o montante deduzido não será entregue à entidade que legitimamente tem o direito de arrecadar o imposto (a autarquia), beneficiando, pelo contrário, única e exclusivamente a entidade expropriante que (…), pode, até nem estar integrada na Administração estadual.

    ………………………………………………………………........”

    (Pedro Elias da Costa, Guia das Expropriações por Utilidade Pública, Coimbra, 2003, pág. 257);

    “……………………………………………………………………

    O n.º 4 visa reduzir artificialmente a indemnização, traduz-se numa flagrante violação aos princípios constitucionais da igualdade na sua vertente externa e da justa indemnização (artigos 13.º e 62.º, n.º 2, da Constituição), na medida em que impõe exclusivamente aos expropriados e não a todos aqueles que transmitam onerosamente bens imóveis este sacrifício.

    Como há muito ensina Pedro Soares Martinez, o fim da expropriação por utilidade pública não consiste na realização de uma receita pública e dela emerge o dever de indemnizar os expropriados (Direito Financeiro e Direito Fiscal, Coimbra 1983, pág.40). Não se trata tecnicamente do pagamento retroactivo da Contribuição Autárquica, uma vez que essa dedução no valor da indemnização não se destina à autarquia, que tem o direito a arrecadar o imposto (artigo 1.º do Código da Contribuição Autárquica), mas apenas beneficia a entidade expropriante, que pode até não se enquadrar na Administração Estadual, será o caso das concessionárias dos serviços públicos.

    ……………………………………………………………………”

    (João Pedro de Melo Ferreira, Código das Expropriações Anotado e Legislação Complementar, 2.ª edição, Coimbra, 2000, págs. 114/115).

    Significa isto que a decisão recorrida adere expressamente a argumentos que reportam a inconstitucionalidade da norma a dois aspectos distintos: ofensa ao princípio constitucional expresso no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (adiante designada CRP); violação do princípio constitucional da «justa indemnização», em matéria de expropriação por utilidade pública, decorrente da parte final do artigo 62.º, n.º 2 da CRP.

    Assinale-se que a tese da inconstitucionalidade material da norma em causa não é nova - ela tinha sido já defendida na doutrina, embora com fundamentação mais alargada, por Alves Correia, que refere existir violação dos princípios da justa indemnização, da não retroactividade fiscal e da igualdade nas vertentes externa, interna e fiscal [A Jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre Expropriações por Utilidade Pública e o Código das Expropriações de 1999, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Anos 132 e 133, nºs. 3904 a 3913/3914 (págs. 118/119 dos nºs. 3913/3914)], e, antes ainda, por Marcelo Rebelo de Sousa, neste caso com base em fundamentos que apontam para a ofensa ao princípio constitucional da justa indemnização (Expropriações: Código Inconstitucional, Jornal «Expresso», de 23.10.1999).

    3 - A violação do princípio constitucional da igualdade decorre, na óptica da decisão recorrida, da circunstância de o sacrifício traduzido na redução do valor indemnizatório afectar apenas os expropriados “e não todos aqueles que transmitam onerosamente bens imóveis” (João Pedro de Melo Ferreira, ob, cit. pág. 115). Trata-se aqui daquilo que usualmente se qualifica como o princípio da igualdade na relação externa da expropriação (compara expropriados com não expropriados). Não obstante a decisão em causa se referir, exclusivamente, à perspectiva externa do princípio da igualdade, adiante focaremos também a chamada vertente interna deste (comparação entre expropriados).

    Embora de um ponto de vista doutrinário se discuta se a expropriação por utilidade pública pode ser vista como implicando a transmissão de um bem (cfr. neste sentido, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol II, 9ª ed., reimpressão, págs. 1020/1021; Fernando Alves Correia, As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, separata do volume XXIII do suplemento do BFDUC, Coimbra 1982, pág, 77), ou constitui antes uma forma de extinção de direitos reais sobre bens imóveis, com a concomitante constituição de novos direitos na esfera jurídica do expropriante (esta é a posição de Menezes Cordeiro, Direitos Reais, II vol., Lisboa 1979, págs 794/795; no mesmo sentido, José Osvaldo Gomes, Expropriações por Utilidade Pública, Lisboa 1997, págs. 18/21), o que é facto é que...

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