Acórdão nº 370/05 de Tribunal Constitucional (Port, 07 de Julho de 2005

Magistrado ResponsávelCons. Mota Pinto
Data da Resolução07 de Julho de 2005
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 370/05

Processo n.º 91/03 2ª Secção

Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto

Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório

AUTONUM 1.Por despacho saneador proferido em 14 de Janeiro de 2002, pelo Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Idanha-a-Nova, em acção de despejo instaurada pelo Procurador da República dessa comarca, em representação do Estado Português/Direcção Regional de Agricultura da Beira Interior DRABI, do Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, foi admitido o pedido reconvencional formulado pela ré, A. – CRL, e, consequentemente, alterada a forma do processo, que de acção sumária passou a ordinária, apesar da oposição do demandante, o qual defendeu que o pedido de condenação ao pagamento de benfeitorias, e, subsidiariamente, ao reconhecimento de um direito de retenção enquanto tais despesas não fossem pagas, se situava fora do âmbito da relação jurídica configurada na acção, “só podendo, eventualmente, ser objecto de apreciação em acção própria”.

O demandante interpôs então recurso, de agravo, para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por acórdão de 1 de Outubro de 2002, decidiu conceder-lhe parcial provimento, revogando o despacho saneador recorrido “na parte em que admitiu o pedido reconvencional, quanto ao direito de retenção de que gozariam as benfeitorias reclamadas pela ré, confirmando, em tudo o demais, embora com fundamentos, em parte diversos, a douta decisão agravada”.

Esta decisão foi tomada, designadamente, por o Tribunal da Relação ter concluído que:

“I. Não se enquadra em qualquer escopo compreendido na função administrativa do Estado o contrato de arrendamento rural de prédios rústicos nacionalizados, quando a sua finalidade contende com a exploração agrícola ou pecuária.

  1. Integra um único contrato de arrendamento rural, constituindo o seu alongamento ou extensão retroactiva, o complemento do mesmo sobre a forma de pagamento de um determinado montante das rendas em atraso, pelo inquilino, correspondente à utilização das terras, durante o período antecedente à sua celebração.

  2. A previsão do normativo do artigo 34.º, do DL n.º 158/91, de 26 de Abril, nos termos do qual ‘todos os litígios emergentes dos contratos previstos no presente diploma são da competência do contencioso administrativo’, afronta o estipulado pelos artigos 209.º, n.º 1, b), e 212.º, n.º 3, da Constituição da República, que só atribuem à categoria dos tribunais administrativos a competência para o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, por ser materialmente inconstitucional.

  3. A incompetência, em razão da matéria, inutiliza a reconvenção deduzida e inviabiliza a prorrogação da competência do Tribunal, se este não for competente, em razão da matéria, para as questões formuladas, em via de reconvenção.

  4. O direito a benfeitorias, reconhecido ao arrendatário rural de bens dominiais do Estado, não goza da garantia real das obrigações, em que se traduz o direito de retenção.”

    AUTONUM 2.Desta decisão vem interposto, pelo Ministério Público, recurso para este Tribunal, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º e dos artigos 72.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, e 75.º, n.º 1, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, para reapreciação do referido juízo de inconstitucionalidade que incidiu sobre a norma do artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 158/91, de 26 de Abril.

    Nas alegações aqui produzidas, concluiu assim o recorrente:

    “1º – A Lei de Bases da Reforma Agrária configura os contratos de arrendamento rural, celebrados pelo Estado relativamente aos prédios expropriados ou nacionalizados, como contratos de natureza civil, submetidos à legislação comum sobre arrendamento rural, incluindo-se nesta remissão a aplicabilidade de normas procedimentais e atinentes à definição da ordem jurisdicional competente para dirimir os litígios que surjam no desenrolar de tais relações locatícias: os tribunais judiciais.

    1. – A norma constante do artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 158/91 – ao devolver, em termos aparentemente irrestritos, ao contencioso administrativo a dirimição de todos os litígios emergentes dos contratos previstos nesse diploma (em que se inclui o arrendamento rural – artigo 13.º) – tem de ser interpretada em conformidade com a Constituição, de modo a que tal regime – constante de mero decreto-lei de desenvolvimento daquela lei de bases – não implique uma inovatória atribuição de competências materiais ao foro administrativo, nem envolva colisão com a natureza e o regime de tais contratos, tal como delineados naquela lei de valor reforçado.

    2. – Tendo as instâncias, no exercício dos poderes de valoração da matéria de facto e da vontade das partes e de aplicação e interpretação do direito infraconstitucional, qualificado certa relação jurídica complexa, existente entre o Estado e a sociedade ré, como integrando um único contrato de arrendamento rural, está prejudicada a questão que se traduzia em aferir da aplicabilidade do referido artigo 34.º a uma parcela de tal relação complexa, perspectivada pelo autor como traduzindo celebração de um contrato administrativo de concessão em exploração de determinados prédios, expropriados ou nacionalizados.

    3. – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade da referida interpretação normativa do artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 158/91, que conduzisse a outorgar aos tribunais administrativos uma inovatória competência para apreciar litígios atinentes a um contrato de arrendamento rural, submetido pela lei a um regime de direito privado.”

    Não houve outras alegações.

    Cumpre apreciar e decidir.

  5. Fundamentos AUTONUM 3.A norma cuja aplicação foi recusada na decisão recorrida – acima transcrita, nas conclusões do tribunal a quo, e cuja apreciação sub specie constitutionis constitui o objecto do presente recurso – integra-se no Decreto-Lei n.º 158/91, de 26 de Abril, que veio disciplinar a entrega para exploração de terras nacionalizadas ou expropriadas. Anteriormente a este diploma, a entrega para exploração de terras nacionalizadas ou expropriadas fora disciplinada pelo Decreto-Lei n.º 111/78, de 27 de Maio e pelo Decreto-Lei n.º 63/89, de 24 de Fevereiro, tendo a norma em questão redacção idêntica à do artigo 41.º deste último diploma (“Todos os litígios emergentes dos contratos previstos no presente diploma são da competência do contencioso administrativo”) e muito próxima da do artigo 52.º daquele diploma de 1978.

    Segundo o tribunal a quo, a norma do artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 158/91, de 26 de Abril, seria materialmente inconstitucional, por violar os “artigos 209.º, n.º 1, b), e 212.º, n.º 3, da Constituição da República”, pois estes apenas atribuem aos tribunais administrativos competência para apreciar litígios emergentes de relações jurídico-administrativas.

    Ora, importa deixar claro desde já que não compete ao Tribunal Constitucional apurar, com independência da questão de constitucionalidade normativa que lhe é submetida, se a decisão recorrida procedeu a uma correcta qualificação da relação jurídica em causa, e seu enquadramento nas previsões (contraditórias) da lei de bases e do seu diploma de desenvolvimento. E essa qualificação foi, claramente, no sentido de estarmos perante um contrato de natureza civil, podendo ler-se na decisão recorrida:

    “(…)

    O acto administrativo é uma conduta voluntária de um órgão da administração que, no exercício de um poder público e para prossecução de interesses postos a seu cargo, produz efeitos jurídicos num caso concreto.

    Os actos jurídicos de celebração do contrato de arrendamento rural, realizados pelo autor, objectivam-se em declarações negociais de direito privado, relativas a um contrato civil, no âmbito da sua capacidade de direito privado, como pessoa jurídica, não respeitando a qualquer contrato administrativo, muito menos se tratando de actos administrativos, definitivos e executórios, ou, segundo a terminologia actual, de actos administrativos ‘tout court’, que integrem decisão autoritária da administração, no exercício de um poder público, imposto aos particulares, coercivamente.

    (…)

    Na hipótese em apreço, considerando os objectivos visados com a celebração do contrato de arrendamento rural e com a propositura da actual acção de despejo, não se alcança como o Estado tenha agido investido do poder público, em ordem...

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