Acórdão nº 153/05 de Tribunal Constitucional (Port, 16 de Março de 2005

Magistrado ResponsávelCons. Mota Pinto
Data da Resolução16 de Março de 2005
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃ0 N.º 153/2005 Processo n.º 184/05 2.ª Secção

Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto

Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

  1. Relatório

    AUTONUM 1.No processo comum colectivo n.º 387/03, que correu termos no 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Figueira da Foz, o arguido A. foi condenado como autor material de um crime continuado de abuso sexual de criança, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 172.º, n.ºs 1, 2 e 3, alíneas a), b) e c), 22.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e c), e 30.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de cinco anos de prisão, com desconto do tempo da prisão preventiva sofrida. Mais foi o arguido condenado a pagar à menor ofendida a importância de 25.000,00 € (vinte e cinco mil euros).

    Desta decisão interpuseram recurso o Ministério Público e o arguido. O arguido interpusera ainda recurso interlocutório da deliberação do tribunal colectivo, tomada na sessão de julgamento do dia 28 de Maio de 2004, que não homologou a desistência de queixa apresentada pela assistente B., por si e em representação da sua filha (a menor ofendida), por considerar relevante a oposição deduzida pelo Ministério Público a essa desistência, bem como a sua promoção no sentido da continuação do procedimento criminal, nos termos do artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal, não obstante esse procedimento não ter sido iniciado pelo Ministério Público.

    No recurso interlocutório o arguido apresentou as seguintes conclusões:

    1.ª A decisão recorrida, de não homologação da desistência da queixa, viola o disposto nos artigos 48.º e 51.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o disposto no artigo 178.º, n.ºs 1 e 4, do Código Penal, e o disposto nos artigos 2.º, 29.º, n.º 1, e 164.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa.

    2.ª A decisão recorrida estriba-se, exclusivamente, na suposta faculdade que o n.º 4 do artigo 178.º do Código Penal concederia ao Ministério Público, no sentido de lhe permitir opor-se relevantemente à desistência de uma queixa apresentada pelos titulares do direito respectivo.

    3.ª Ora, o único poder concedido ao Ministério Público pelo n.º 4 do artigo 178.º do Código Penal é o poder de, na ausência de queixa apresentada pelo titular do direito respectivo, iniciar o procedimento criminal.

    4.ª A possibilidade de aplicação desse n.º 4 está condicionada ao preenchimento de um pressuposto prévio: a ausência de queixa!

    5.ª Existindo queixa, como in casu acontece, falece a possibilidade de aplicação desse n.º 4.

    6.ª Da conjugação n.º 4 do artigo 178.º do Código Penal com o n.º 1 da mesma norma, e com os artigos 48.º a 51.º do Código de Processo Penal, resulta que os crimes previstos no artigo 172.º do Código Penal revestem sempre natureza semi-pública.

    7.ª Apenas nos casos excepcionais expressamente tipificados e descritos nas alíneas a) e h) do n.° 1 do artigo 178.º, a lei penal qualifica os delitos previstos no artigo 172.º do Código Penal como crimes públicos!

    8.ª O n.° 4 do artigo 178.º do Código Penal constitui, tão-só, uma norma especial complementar da disposição geral constante do artigo 49.º do Código de Processo Penal.

    9.ª O n.º 4 do artigo 178.º do Código Penal não constitui, nem sistemática nem teleologicamente, uma suposta nova alínea c) do n.° 1 do artigo 178.º do Código Penal!

    10.ª Ao permitir ao Ministério Público a prossecução de um procedimento criminal que não iniciou e relativamente ao qual existe uma desistência de queixa apresentada pelo titular do direito respectivo, a decisão recorrida representa uma inconstitucional extensão analógica das excepções tipificadas nas duas alíneas do n.º 1 do artigo 178.º do Código Penal.

    11.ª A decisão recorrida significa, assim, a inconstitucional qualificação e conversão judicial como crimes públicos de crimes que o legislador penal no artigo 178.º, n.º 1, do Código Penal, expressamente considerou e tipificou como delitos semi-públicos.

    12.ª A decisão recorrida viola também, portanto, os artigos 2.º (princípio da separação de poderes), 29.º, n.º 1 (princípios da lega1idade e tipicidade criminal) e 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP (reserva exclusiva da Assembleia da República em matéria de definição dos crimes e dos respectivos pressupostos).

    13.ª A mãe da menor, assistente que deu início ao procedimento criminal apresentando em representação daquela a queixa, exerce sem qualquer limitação ou restrição o seu poder paternal.

    14.ª O tribunal a quo não apresenta qualquer razão concreta, palpável, consistente ou credível da suposta “incapacidade” da assistente queixosa em exercer adequadamente o poder paternal e em zelar pelo interesse da menor.

    Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, homologando-se a apresentada desistência de queixa.

    Responderam assistente e Ministério Público, a primeira concordando com a posição defendida pelo arguido e o segundo defendendo a confirmação da decisão recorrida.

    O representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra emitiu parecer em que sustentou a improcedência de todos os recursos interpostos.

    O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 3 de Novembro de 2004, decidiu negar provimento ao recurso interlocutório, bem como ao recurso interposto pelo Ministério Público. Decidiu ainda conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido da decisão condenatória, reduzindo a pena de prisão aplicada para 4 anos. Pode ler-se no referido aresto, no que ora importa:

    [...]

    Desistência da Queixa

    A questão suscitada no recurso interlocutório interposto pelo arguido, qual seja a de saber se a desistência da queixa apresentada pela assistente deve ou não ser considerada relevante e, caso afirmativo, ser homologada e assim determinar o arquivamento do processo, obviamente que deve ser conhecida imediatamente.

    Decidindo, dir-se-á.

    No caso vertente estamos perante uma desistência de queixa apresentada pela queixosa/assistente e mãe da menor ofendida (menor de 9 anos), já na fase de julgamento, designadamente já depois de o arguido e de duas testemunhas de acusação terem sido ouvidas.

    Não são pois razões atinentes ao interesse da menor, maxime a reserva da sua intimidade e da sua imagem, bem como a preservação do seu equilíbrio emocional e da sua personalidade, subtraindo-a à exposição pública, que subjazem à desistência apresentada.

    Ao que parece, serão razões puramente economicistas que estão na base do comportamento de favor relativamente ao arguido assumido pela assistente. Deste modo, a motivação nuclear ou a razão de ser da natureza semi-pública do crime objecto do processo, (já) não está em causa neste momento.

    O interesse da menor inflecte-se e projecta-se, pois, de forma exclusiva no sentido da procura e da descoberta da verdade, da reparação do mal que eventualmente lhe foi causado e da punição do responsável pela produção desse mal e prática do respectivo facto típico, ou seja, no sentido do exercício da acção criminal.

    Feita esta breve observação, tendo em vista um melhor enquadramento da questão jurídica submetida à nossa apreciação, vejamos se a lei concede ou não ao Ministério Público a faculdade de prosseguir com o processo ou procedimento nos casos em que o procedimento criminal pelo crime do artigo 172.º do Código Penal (abuso sexual de crianças) se iniciou com a apresentação de queixa pelo respectivo titular, havendo posteriormente uma desistência, suposto que a vítima é menor de 16 anos.

    Primeira observação a fazer é a de que, podendo o Ministério Público, de acordo com o artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal, dar início ao procedimento criminal se o interesse da vítima o impuser, entre outros, no caso de crime do artigo 172.º, certo é que este crime, nesse contexto, perde a natureza de crime semi-público e, portanto, o respectivo estatuto ou regime.

    Segunda observação é a de que a lei ao exigir como requisito do exercício daquela faculdade pelo Ministério Público o interesse da vítima, pressupõe, por um lado, a inércia ou a posição de quem, sendo representante legal daquela, podia e devia exercer o direito de queixa e não o faz por razões alheias ao interesse da mesma e, por outro lado, a existência de razões atinentes à protecção e ao interesse da vítima que exijam ou justifiquem o exercício da acção criminal. Isto é, a lei pretende suprir uma...

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