Acórdão nº 403/07 de Tribunal Constitucional (Port, 11 de Julho de 2007

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução11 de Julho de 2007
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 403/2007

Processo n.º 535/04

  1. Secção

Relator: Conselheiro Mário Torres

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

1. Relatório

Em 10 de Outubro de 2002, foi comunicada pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Oliveira de Azeméis ao representante do Ministério Público no Tribunal Judicial da mesma comarca a situação de duas menores, A. e B., de 14 e 15 anos de idade, respectivamente, cada uma já mãe de um filho, sendo pai de ambos C., que, segundo suspeitas, poderia andar a aliciar outras menores para a prática de relações sexuais.

Em 14 de Outubro de 2002, o representante do Ministério Público no Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira de Azeméis, considerando a situação descrita susceptível de integrar a prática de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal, em relação à menor A., e de um crime de actos sexuais com adolescentes, previsto e punido pelo artigo 174.º do mesmo Código, em relação à menor B., ilícitos que possuem natureza semi-pública, entendeu, porém, que, no caso, apesar de não ter sido apresentada queixa, o interesse das vítimas, ambas menores de 16 anos, justificava a instauração de procedimento criminal contra o denunciado, nos termos do artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal, até porquanto da prática dos factos participados resultou a gravidez das menores.

Determinada, assim, a instauração de inquérito, foi o mesmo, em 3 de Dezembro de 2002, remetido ao Ministério Público da comarca de Albergaria-a-Velha, por ser a territorialmente competente, tendo o respectivo magistrado, por despacho de 17 do mesmo mês, através de despacho fundamentado, reiterado a intervenção oficiosa inicial do Ministério Público, nos termos do artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal. Esse despacho é do seguinte teor:

“I. Aqui se deixa consignado, aliás na esteira do decidido no primeiro despacho do Ministério Público elaborado neste inquérito, ainda nos serviços do Ministério Público em Oliveira de Azeméis, que se iniciou o procedimento criminal contra o arguido no estrito cumprimento da norma do artigo 178.°, n.° 4, do Código Penal (que reproduz a do artigo 113.°, n.° 6, do mesmo diploma), ou seja, entendendo que o «interesse das vítimas» – ambas com menos de 16 anos à data dos eventos – vem a impor que se inicie o inquérito contra o arguido, independentemente da queixa apresentada por quem de direito (seus pais e representantes legais).

Aqui, o interesse da vítima é o da garantia das melhores condições para o seu desenvolvimento integral, que é uma obrigação constitucional da sociedade e do Estado (artigo 69.° da CRP), sendo a sua defesa colocada nas mãos do Ministério Público, magistratura que, de resto, tem por função estatutária – artigo 3.°, n.° 1, alínea a), do Estatuto do Ministério Público – representar os interesses dos menores, mesmo quando não coincidentes com os dos seus representantes legais.

Aos magistrados do Ministério Público cabe a responsabilidade de, mesmo se o procedimento criminal depender de queixa, na sua inexistência, garantir que o sistema funcione no sentido de a justiça penal ter intervenção quando, atendendo aos interesses do menor com menos de 16 anos, a deva ter.

Este preceito – artigo 178.°, n.° 4 – é de grande importância em casos como o presente em que o pretenso «abuso sexual de menores» terá ocorrido em contextos intrafamiliares, atentos os constrangimentos familiares, económicos e culturais que sempre derivam do facto de estarmos a falar de situações encobertadas pelo próprio universo familiar mais próximo das vítimas.

Assim sendo, o processo iniciou-se validamente, num caso em que está em causa a prática de crime contra a autodeterminação sexual, que deixou de ser, após a revisão de 1995 do Código Penal, um crime contra os valores e interesses da vida em sociedade para se transformar, e muito bem, num crime contra as pessoas – aqui, protege-se a autodeterminação sexual, não face a condutas que representem a extorsão de contactos sexuais por forma coactiva ou análoga, mas face o condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade.

A lei acaba por presumir iuris et de iure que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global (e o menor é um sistema) do próprio menor.

Fica, desta forma, devidamente fundamentada, na sequência do 1.° despacho proferido nos autos, a legitimidade do Ministério Público para iniciar o procedimento criminal in casu.”

Terminado o inquérito, foi, em 7 de Maio de 2003, deduzida acusação pelo Ministério Público contra C. e D., imputando ao primeiro a autoria material, em concurso real, de forma consumada e continuada, de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelos artigos 30.º, n.º 2, 172.º, n.º 2, e 177.º, n.º 3, e de um crime de actos sexuais com adolescentes, previsto e punido pelos artigos 30.º, n.º 2, 174.º e 177.º, n.º 3, e à segunda a autoria material, de forma consumada e continuada, de um crime de lenocínio de menores, previsto e punido pelos artigos 176.º, n.º 3, e 177.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, por os autos indiciarem suficientemente que:

“O arguido conheceu a menor A., nascida no dia 15 de Janeiro de 1988, em Maio de 2000, num bar em Pinheiro de Bemposta, onde esta foi acompanhada de sua irmã E..

Continuou a encontrar a menor, então com 12 anos de idade, nas noites de Sábado para Domingo nesse mesmo bar e na Discoteca adjacente («…»), com ela conversando.

Em Junho de 2000, a menor passou a ir fazer limpezas a casa do arguido, sita em Albergaria-a-Velha (T0 no edifício …), aos sábados, aí indo também lavar roupa e passar a ferro.

Em Agosto de 2000, a menor foi viver para uma outra casa do arguido, também em Albergaria-a-Velha (Rua … ), com o consentimento da sua mãe, a arguida D., passando a aí pernoitar.

Nesse apartamento, o arguido teve a primeira relação sexual de cópula completa com a menor, tendo, antes disso, um relacionamento que se caracterizava por carícias e beijos mútuos próprios de um trato amoroso.

Passou então o arguido a ter relações de cópula completa com a menor, levando e trazendo-a da Escola, deixando-a ficar em casa da mãe quando ia para Lisboa em trabalho, contando como contava com o consentimento da mãe da menor.

Viveu o arguido com a A. até Janeiro de 2002, altura em que o seu relacionamento cessou, tendo ainda vivido juntos na actual residência do arguido (…, em Albergaria-a-Velha).

A A. veio a engravidar na sequência do relacionamento sexual que encetou com o arguido, tendo desta relação nascido, em 8 de Setembro de 2002, uma criança do sexo feminino de nome F., registada como filha da menor A. e do arguido.

Entretanto, o arguido havia conhecido a menor B., nascida em 26 de Novembro de 1986, como amiga da A., em princípios do ano de 2001.

A menor era recebida assiduamente em casa do arguido, que com ela privava de forma cativante.

O relacionamento prosseguiu de tal forma que, em Janeiro de 2002, o arguido convidou a menor B. para ir viver com ele, tendo começado a relacionar-se sexualmente com a dita menor, então com 15 anos de idade, passando, a partir dessa altura, a viver com ela, mantendo relações de cópula completa com a menor que apenas cessaram quando souberam que a B. estava grávida.

Deste relacionamento, veio a nascer, em 23 de Setembro de 2002, uma criança do sexo feminino de nome G., registada como filha da menor B. e do arguido.

O arguido não ignorava as idades das duas menores quando começou a relacionar-se sexualmente com elas.

O arguido bem sabia, por isso, que as menores não tinham capacidade para avaliar e valorar os actos sexuais que praticavam, sabendo que elas não se determinavam livremente em termos sexuais, inexperientes que eram nessa matéria de índole sexual.

Nomeadamente, a menor B. era desconhecedora, por força da sua idade e natural imaturidade a ela inerente, do que significava, realmente, uma vivência a dois, debaixo do mesmo tecto, como se de um casal se tratasse.

A B. usufruía de uma vivência sem futuro e ilusória e de facilidades de índole económica que lhe foram proporcionadas pelo arguido por forma a que a mesma, prematuramente, tenha optado por deixar de estudar e de investir na sua formação como pessoa autónoma e em fase de crescimento.

A mãe da menor A., a arguida D., soube do relacionamento sexual existente entre a filha e o arguido, pelo menos desde o Natal de 2000.

Nessa altura, a arguida passou a fazer a limpeza da casa do arguido, onde vivia ao mesmo tempo a sua filha.

A arguida recebia dinheiro do arguido para fazer face às suas despesas.

A arguida nada fez para impedir o relacionamento entre a filha e o arguido, tendo antes facilitado, como pessoa que, sendo titular do poder paternal e que, efectivamente, o exercia relativamente à sua filha, a continuação dessa vivência tão precoce para uma criança, durante o tempo em que esta tinha 12 e 13 anos de idade.

Agiram os arguidos de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que praticavam actos punidos e proibidos por lei.”

Não tendo sido requerida instrução, o processo seguiu para julgamento.

Antes do início da audiência, os pais da ofendida B. apresentaram o requerimento de fls. 288 a 290, no qual declaravam desistir da queixa contra o arguido, e este apresentou a contestação de fls. 306 a 213, na qual, como “questão prévia”, suscitou a questão da ilegitimidade do Ministério Público por, tratando-se de crimes semi-públicos, os representantes legais das menores não terem apresentado queixa e já ter expirado o prazo de 6 meses, a contar da data em que tiveram conhecimento dos factos e do seu autor, de que dispunham para o efeito (artigos 113.º e 178.º, n.º 1, do Código Penal e 49.º, n.º 1, do CPP) e por não constar dos autos qualquer despacho dos representantes do Ministério Público com a legalmente exigível...

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