Acórdão nº 396/07 de Tribunal Constitucional (Port, 10 de Julho de 2007

Magistrado ResponsávelCons. Pamplona Oliveira
Data da Resolução10 de Julho de 2007
EmissorTribunal Constitucional (Port

Acórdão n.º 396/2007

Processo n.º 33/07

  1. Secção

Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira

ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

I.

Relatório:

    1. foi condenada no Tribunal de Vila Nova de Famalicão pela prática dos crimes de auxílio à imigração ilegal, previsto e punido no artigo 134.º-A do Decreto-Lei n.º 244/98 de 8 de Agosto e de lenocínio, na forma continuada, previsto e punido no artigo 170º n.º 2 do Código Penal. Recorreu do acórdão condenatório para a Relação do Porto e, na motivação do recurso, suscitou, para além do mais, as seguintes questões de constitucionalidade:

    – a autorização legislativa concedida pelo Lei n.º 22/2002 de 21 de Agosto não habilitava o Governo a criminalizar o favorecimento à permanência ilegal de cidadãos estrangeiros, pelo que o Decreto-Lei n.º 34/2003 de 25 de Fevereiro, nesta parte, e ao dar nova redacção ao artigo 134º-A n.º 2 do Decreto-Lei n.º 244/98, seria organicamente inconstitucional por violação do artigo 165º n.º 1 alínea c) da Constituição;

    – entendendo-se que a Lei de Autorização dava cobertura àquela alteração, então a inconstitucionalidade residiria na própria Lei n.º 22/2002, porque a mesma não definia, com o necessário rigor, o sentido da autorização legislativa, o que seria violador do artigo 165º n.º 2 da Constituição;

    – ao considerar como crime de auxílio à entrada em Portugal de cidadãs brasileiras sem visto e com propósito de exercerem a prostituição, o tribunal faria uma interpretação analógica das disposições contidas nos artigos 13º n.ºs 1 e 2 alínea b), 134º-A n.ºs 1 e 2 e 136º n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 244/98, o que seria inconstitucional por violação do artigo 29º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

    – o artigo 170º n.º 1 do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 65/98 de 2 de Setembro, enferma de inconstitucionalidade material por violação do artigo 18º n.º 2 da Constituição.

    1.1.

    Por acórdão de 15 de Fevereiro de 2006 a Relação concedeu, aliás, parcial provimento ao recurso, mas não julgou procedente qualquer uma das questões de inconstitucionalidade referidas pelo recorrente.

    No que agora interessa, disse:

    “ (…)

    B.

    1. Sustenta a recorrente a inconstitucionalidade orgânica da Lei de Autorização nº 22/2002, de 21 de Agosto, por ofensa da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, logo, do art. 165º, nº 1, al. c), da Constituição da República Portuguesa, na medida em que a aludida Lei não tinha o sentido nem a extensão de autorizar o governo a incriminar o auxílio à permanência ilegal de estrangeiros em território nacional.

    Vejamos se lhe assiste razão:

    O texto original do art. 134º do DL nº 244/98, de 8 de Agosto, dispunha o seguinte:

    1 - Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada irregular de cidadão estrangeiro em território nacional será punido com prisão até três anos.

    2 - Se o agente praticar as condutas referidas no número anterior com intenção lucrativa, a prisão será de 1 a 4 anos.

    3 - A tentativa é punível.

    Entretanto, na sequência de Parecer do Parlamento Europeu, o Conselho da União Europeia adoptou a Directiva nº 2002/90/CE, de 28 de Novembro de 2002, relativa à definição do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares, cujo art. 1º, na parte que agora interessa considerar, prevê que

  1. Os Estados-Membros devem adoptar sanções adequadas:

    (…)

    b) Contra quem, com fins lucrativos, auxilie intencionalmente uma pessoa que não seja nacional de um Estado-Membro a permanecer no território de um Estado-Membro, em infracção da legislação aplicável nesse Estado em matéria de residência de estrangeiros.

    Sem expressamente referir esta directiva, mas tendo-a presente, como claramente decorre do âmbito da autorização legislativa, a Assembleia da República autorizou o Governo a alterar o regime de entrada, permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros em território nacional, através da Lei nº 22/2002, de 21 de Agosto.

    O art. 1º deste diploma, sob a epígrafe objecto, dispõe que

    É concedida ao Governo autorização para alterar o regime de entrada, permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros em território nacional.

    Por seu turno, o art. 2º, estabelecendo o sentido e extensão da autorização legislativa, dispõe, além do mais, o seguinte:

    A presente lei de autorização tem como sentido e extensão autorizar o Governo a:

    (…)

    o) aperfeiçoar o regime sancionatório das infracções criminais associadas ao fenómeno da imigração ilegal, criando novos tipos criminais, designadamente no sentido de criminalizar o trânsito ilegal de cidadãos estrangeiros em território nacional e agravar as medidas das penas aplicáveis.

    (…)

    O alcance e sentido da autorização legislativa deverá ser encontrado através da análise do diploma de autorização no seu conjunto, avaliando as diversas normas em que aquele se decompõe numa perspectiva dinâmica, em interacção entre si.

    Na tese sustentada pela recorrente, a incriminação do auxílio à permanência ilegal de estrangeiros em território nacional excede o âmbito da Lei de autorização legislativa.

    Colhe-se, no entanto, desde logo no art. 1º da Lei nº 22/2002, que a finalidade da autorização legislativa foi também a de permitir ao Governo alterar o regime de permanência de cidadãos estrangeiros em território nacional.

    Por seu turno, a al. o) do art. 2º afasta qualquer dúvida relativamente à intenção da Assembleia da República, de autorizar a criminalização do trânsito ilegal de cidadãos estrangeiros, ao prever a criação de “…novos tipos criminais, designadamente no sentido de criminalizar o trânsito ilegal de cidadãos estrangeiros em território nacional…”.

    O trânsito (substantivo) - acto de transitar (verbo) - tem subjacente a noção de “estar em movimento”, ou de “passagem”. E nessa medida o trânsito a que alude aquela norma é essencialmente o trânsito de cidadãos estrangeiros a caminho do país de destino (passagem).

    O art. 134º do DL nº 244/98, de 8 de Agosto, não distinguia entre entrada, permanência e trânsito, o que não significa, no entanto, que a “permanência” e o “trânsito” ilegais de cidadãos estrangeiros fossem indiferentes. Simplesmente, eram apenas puníveis como decorrência necessária da “entrada” irregular, pois que - afirmação quase tautológica - só haveria permanência ou trânsito irregular de estrangeiros em Portugal após a respectiva entrada no território nacional.

    Como se referiu supra, a Directiva nº 2002/90/CE advertiu os Estados-Membros para a necessidade de criminalização do auxílio à permanência ilegal.

    A Lei nº 22/2002 autorizou o Governo a alterar o regime de permanência de cidadãos estrangeiros em Portugal, assim como o autorizou a aperfeiçoar o regime sancionatório das infracções criminais associadas ao fenómeno da imigração ilegal, encontrando aqui manifesto cabimento a criminalização do auxílio à permanência ilegal.

    No uso desta autorização legislativa, veio a ser publicado o DL nº 34/2003, de 25 de Fevereiro, que aditou ao DL nº 244/98 o art. 134º-A, (para o qual transitou, com alterações, a disciplina anteriormente constante do art. 134º), com a seguinte redacção:

    1 - Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional é punido com prisão até três anos.

    2 - Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional, com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de 1 a 4 anos.

    3 - A tentativa é punível.

    4 - As penas aplicáveis às entidades referidas no nº 1 do art. 134º são as de multa, cujos limites mínimo e máximo são elevados ao dobro, ou de interdição do exercício da actividade de um a cinco anos.

    Conforme expressamente consta dos respectivos preâmbulo e art. 1º, o diploma em questão procedeu à transposição para o direito interno do disposto na Directiva 2002/90/CE, do Conselho, de 28 de Novembro, relativa à definição do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares, e na decisão quadro, do Conselho, de 28 de Novembro de 2002, relativa ao reforço do quadro penal para a prevenção do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares.

    Assim, porque abrangida pela autorização legislativa a criminalização do auxílio à permanência ilegal de cidadãos estrangeiros em território nacional, nos termos supra expostos, não se mostra ferida de inconstitucionalidade orgânica.

    b) Por outro lado, não são absolutamente correctas as afirmações, expendidas pela recorrente, de que as cidadãs brasileiras identificadas nos factos provados não necessitavam de qualquer visto para entrar em Portugal, estando abrangidas pela excepção da al. b) do nº 3 do art. 13º do DL nº 244/98, ou que a regra, no que diz respeito aos brasileiros, é a permissão da sua entrada em território português.

    O Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, aprovado pela Resolução da Assembleia da República nº 83/2000, de 14 de Dezembro, não liberalizou totalmente a entrada de cidadãos brasileiros em Portugal, eliminando, relativamente a eles, qualquer controle ou limitação.

    Na verdade, dispõe o respectivo art. 7º, nº 1, que

    Os titulares de passaportes comuns válidos de Portugal ou do Brasil que desejem entrar em território da outra parte contratante para fins culturais, empresariais, jornalísticos ou turísticos, por períodos de até 90 dias, são isentos de visto.

    Ou seja, apenas constitui regra a permissão de entrada em território português aos brasileiros que aqui se desloquem no âmbito das previsões legalmente estabelecidas no referido Tratado. Interpretar a última norma transcrita como autorizando a entrada em Portugal, sem qualquer controle ou limitação, de cidadãos de nacionalidade brasileira, significaria atribuir-lhe um alcance que ela manifestamente não tem - nem nunca esteve na intenção das Partes Contratantes - esvaziando-a de sentido útil.

    E na verdade, as cidadãs brasileiras...

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