Acórdão nº 370/07 de Tribunal Constitucional (Port, 26 de Junho de 2007

Data26 Junho 2007
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 370/2007

Processo n.º 1132/06

  1. Secção

Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha

Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

  1. A., S. A., em acção administrativa especial intentada perante o Tribunal Central Administrativo, impugnou o despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que recusou a autorização para deduzir nos seus lucros tributáveis os prejuízos fiscais de «B., SA», e, em cumulação, pediu a condenação da entidade demandada na prática de um acto que, em substituição do acto impugnado, defira essa sua pretensão, que tinha como fundamento o disposto no artigo 69º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC) e o facto de a Autora ter adquirido, no âmbito de um processo judicial de recuperação de empresa, todos os direitos e obrigações daquela outra sociedade.

    A acção foi julgada improcedente, pelo que a Autora interpôs recurso jurisdicional para o Supremo Tribunal Administrativo, alegando, em síntese, o seguinte:

    i) A norma do artigo 69º, n.º 1, do CIRC não impede que, mesmo que se considere inexistir formalmente uma situação de fusão de sociedades, possa ocorrer a transmissão de prejuízos fiscais, nos casos em que se está perante a constituição, no seio de um processo de recuperação de empresa, de uma nova sociedade que assume todos os direitos e obrigações da sociedade em recuperação, deixando esta de exercer qualquer actividade em resultado da cedência de toda a sua capacidade produtiva à nova sociedade.

    ii) De resto, qualquer critério normativo, inferido do artigoº 9.° do Código Civil ou do artigo 11º da Lei Geral Tributária (LGT), que exclua a consideração de resultados de uma interpretação teleologicamente orientada ou uma extensão teleológica, com o fundamento de que com isso se viola o princípio da legalidade, seria, pela limitação do resultado interpretativo daí emergente em sacrifício da justeza material das decisões judiciais, inconstitucional por violação do próprio princípio do Estado de direito material.

    iii) O bom fundamento da aplicação do artigo° 69 ° do CIRC ao caso dos autos é potenciado pela existência de uma intolerável situação arbitrária e discriminatória no domínio das medidas de recuperação de empresas em situação económica difícil, carecendo de fundamento, na lógica do princípio da igualdade, o regime privilegiado que se institui para as medidas de reestruturação aprovadas pelo IAPMEI e as que são homologadas judicialmente.

    Por acórdão de 2 de Novembro de 2006, o STA confirmou o julgado, tendo em conta as seguintes ordens de considerações:

    i) A dedução dos prejuízos fiscais de uma sociedade nos lucros tributáveis de outra sociedade, nos termos do artigo 69º, n.º 1, do CIRC, só pode ocorrer quando elas estiverem envolvidas num processo de fusão e essa dedução tiver sido autorizada pelo Ministro das Finanças;

    ii) Face ao princípio da tipicidade fiscal, a ausência de tributação num determinado caso concreto só poderá ocorrer se existir norma legal que especificamente autorize a excepção à regra geral de incidência, sendo que as normas que estabeleçam isenções fiscais não podem ser interpretadas por analogia ou de forma extensiva, e apenas as normas que fixem benefícios fiscais são susceptíveis de interpretação extensiva;

    iii) A norma do artigo 69. °, n.º 1, do CIRC configura um benefício fiscal só aplicável no caso de fusão de sociedades, não se justificando a interpretação extensiva em termos de abranger a situação da recorrente;

    iiii) A Administração não violou o princípio da igualdade, visto que se não demonstra que tenha tratado situações idênticas às dos autos de modo diferente.

    É desse aresto que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo 70°, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pelo qual se pretende ver fiscalizada a constitucionalidade das seguintes normas:

    - artigo 11.° da Lei Geral Tributária, quando interpretado no sentido de vedar, com fundamento no princípio da legalidade fiscal, a admissibilidade de resultados da interpretação como a extensão teleológica, por violação do princípio do Estado de direito material, acolhido no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa e com idêntica expressão no artigo 202.º, nºs 1 e 2, da Lei Fundamental, na medida em que se considere que «as normas que estabeleçam essas isenções não podem ser interpretadas por analogia ou de forma extensiva», ainda que esta — e apenas esta — seja admitida em sede de benefícios fiscais;

    - artigo 69° do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, enquanto impeça que uma sociedade criada no âmbito de um processo judicial de recuperação de empresa e Falência (CPEREF), tendo adquirido todos os direitos e obrigações de uma sociedade em situação empresarial difícil, possa deduzir os prejuízos fiscais desta, por violação do princípio da igualdade e por efeito da articulação dessa norma com o disposto no Decreto-Lei n.º 14/98, de 28 de Janeiro, maxime artigo 6.°, e com o disposto no Decreto-Lei n.º 81/98, de 2 de Fevereiro, maxime, artigo 9°.

    Admitido o recurso, a recorrente apresentou as suas alegações em que formula as conclusões que seguem:

  2. A interpretação da lei traduz-se na determinação do seu sentido jurídico-normativo em ordem a obter, por referência ao caso, um critério jurídico adequado à justa resolução de um determinado problema jurídico concreto,

  3. Não tendo em vista uma intenção apenas hermenêutico-cognitiva pré-ordenada a desocultar tão-só o teor semântico-gramatical da norma, em abstracto, independentemente do caso concreto.

  4. Qualquer norma carece de ser interpretada por referência — e a partir do caso, respeitando sempre e em última análise o sentido jurídico normativo da fonte interpretanda.

  5. Radicando a interpretação jurídica na ‘determinação do sentido jurídico-normativo’ de uma norma, que não no seu significado textual, a obediência à norma não pode confundir-se com mera obediência à sua letra, independentemente de uma adequação prático-prudencial entre o caso e a norma.

    5 Impor-se-á, a esse propósito, considerar a intencionalidade prático-normativa da norma em face do problema jurídico de molde a garantir a efectivação da sua imanente teleologia normativa na resolução do caso concreto tendo em conta as especificidades deste, sendo que estas hão-de co-determinar, por via interpretativa, o sentido jurídico desocultado na interpretação da norma.

  6. Assumida a preocupação pelas exigências materiais próprias do direito e a realização judicativo-decisória deste centrada na especificidade dos problemas concretos e não numa mera lógica abstracta a reclamar uma intervenção técnico-linguística, mas não prático-jurídica, a evolução do pensamento jurídico metodológico caminhou de mãos dadas com a recompreensão do Estado de direito, metamorfoseado agora num Estado em que a lei (lex) terá de ser determinada pelo direito (ius) e em que, nesse domínio, se reserva agora à magistratura judicial um papel essencial na interpretação crítica da lei, considerada na globalidade dos seus elementos significativos, referidos ao problema jurídico-concreto

  7. Estando em causa um problema meta-positivo, que diz respeito ao pensamento jurídico globalmente considerado e não em exclusivo — ou exclusivismo — à instância legislativa, a verdade é que, em homenagem ao Estado de direito, e ao papel que a jurisprudência assume nesse âmbito, não pode o legislador estabelecer impositivamente um cânone metodológico de modo a limitar a actividade jurisprudencial na justa e materialmente adequada resolução dos conflitos.

  8. Ao fazê-lo, em termos restritivos, vedando a admissibilidade de resultados interpretativos como a mera interpretação extensiva ou a interpretação teleológica, o legislador ordinário condena o julgador a uma mera interpretação literal-gramatical da norma totalmente estranha às especificidades do caso, impedindo-o de valorar em termos comparativos o problema normativo assumido pela norma e o problema concreto cuja solução se demanda.

  9. No domínio de um Estado de direito não pode condenar-se o julgador a uma estrita e exclusiva obediência ao sentido literal das normas, compreendido na sua auto-subsistência filológico-gramatical, impedindo-o de considerar os demais elementos interpretativos de modo a perscrutar na norma o seu autêntico significado jurídico e não textual.

  10. Essa limitação dos resultados interpretativos, claramente injustificada à luz de um Estado de Direito, é também contrária, em absoluto, ao princípio da separação dos poderes na medida em que traduz uma ingerência no núcleo fundamental da actividade judicativa, amputando à magistratura os instrumentos metodológicos conducentes à justa decisão dos problemas jurídicos.

  11. É inconstitucionalmente intolerável que se limite a actividade metodológica da jurisprudência judicial a uma apreciação do teor semântico-gramatical das normas em termos de se lhe exigir tão-só que seja, como em oitocentos, ‘la bouche qui prononce les paroles de la loi’, numa interpretação jurídica apenas exegético-gramatical.

  12. Ao limitar a actividade interpretativa a determinado paradigma, o legislador ordinário está a aniquilar, na essência, o sentido substancial da actividade jurisdicional, o que, nos tempos actuais, perante uma jurisprudência que deve mais obediência ao direito que à letra da lei, não pode de todo admitir-se.

  13. A norma aqui em crise não se mostra minimamente conforme ‘com dimensões estruturantes do Estado-de-Direito, nomeadamente com dois dos seus mais nucleares corolários: o do reconhecimento da autonomia e do sentido, quer da normatividade jurídica, quer do específico pensamento chamado a assumir o problema da sua racionalizada realização judicativo-decisória (em virtude da consabida imbricação de ambos…)’.

  14. O acto de julgamento não pode ser predeterminado nos seus resultados pela imposição de uma teoria da interpretação que impeça a jurisprudência de determinar o sentido...

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