Acórdão nº 202/08 de Tribunal Constitucional (Port, 02 de Abril de 2008

Magistrado ResponsávelCons. Carlos Fernandes Cadilha
Data da Resolução02 de Abril de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 202/2008

Processo n.º 739/07

  1. Secção

Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha

Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional

  1. Relatório

    1. A. propôs no Tribunal da Comarca de Leiria acção declarativa sob forma ordinária contra B. e o Fundo de Garantia Automóvel, alegando que, enquanto conduzia um motociclo na via pública, fora vítima de um acidente de viação exclusivamente causado pelo primeiro réu, que na altura circulava, sem beneficiar de qualquer seguro válido e eficaz, com um motocultivador com reboque; pedia, em consequência, que os réus fossem condenados a pagar solidariamente a quantia de 9.265.005$00 acrescida dos juros legais que se vencessem após a citação, a título de indemnização pelos danos por si sofridos, entre os quais se incluía a amputação traumática pelo terço superior da perna direita e a incapacidade permanente global de 70%.

      Os réus contestaram e, ulteriormente, houve lugar à ampliação do pedido, por parte do autor.

      Por sentença de 24 de Abril de 2007, foi a acção julgada parcialmente procedente, nos seguintes termos:

      […]

      Nos casos de acidente de viação, aquilo que está coberto pelo seguro é a obrigação de indemnização que, em virtude do acidente, possa recair sobre o segurado (até ao limite do valor convencionado entre as partes).

      Ora, no caso vertente o Réu B. não tinha a responsabilidade por acidentes de viação, em que o seu motocultivador interviesse, transferida para qualquer Companhia de Seguros, pelo que, em caso de responsabilidade sua, é nossa humilde opinião, intervém o Fundo de Garantia Automóvel, apesar da redacção literal do artigo 21º do DL 522/85, de 31-12, que se transcreve:

      1 - Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer…as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes nacionais.

      2- O Fundo de Garantia Automóvel garante, por acidente originado pelos veículos referidos no número anterior, a satisfação das indemnizações por: a) morte ou lesões corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz ou for declarada a falência da seguradora; b) lesões materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido ou eficaz.

      2- Nos casos previstos na alínea b) do número anterior haverá uma franquia de € 299, 28 a deduzir no montante a cargo do Fundo

      .

      Adoptamos assim uma interpretação que não colhe no teor literal do nº 1 deste preceito quando parece exigir, cumulativamente, para que o FGA seja responsabilizado:

      1. : veículo sujeito ao seguro obrigatório

      2. e que seja matriculado…

      O motocultivador não está sujeito a seguro obrigatório nem a matrícula uma vez que tal situação não foi ainda regulamentada, conforme o impunha o artigo 117º, n.º 3, do Código da Estrada, vigente à altura.

      Tal situação implicaria, tomado o preceito à la lettre, que os lesados, nestes casos de acidentes provocados por motocultivador, não seriam inteiramente protegidos na sua pretensão indemnizatória em comparação com os lesados por acidente de viação provocado por veículo sujeito ao seguro obrigatório e matriculado.

      Assim, a redacção do referido preceito constitui uma clara violação do princípio constitucional da igualdade, consignado na CRP no seu artigo 13º, n.º 1, princípio esse estruturante do sistema constitucional global e inerente ao conceito de Estado de Direito Democrático e social pelo que se nega a sua aplicação.

      Só esta interpretação obedece ao princípio da eliminação das desigualdades fácticas, no sentido de que se atinja, sempre que possível, uma igualdade e protecção reais de todos os cidadãos.

      Entender-se o contrário seria tratar diferentemente situações facticamente iguais e retirar protecção ao lesado que tivesse “a desventura” de sofrer acidente de viação causado por veículo não sujeito a seguro obrigatório e a matrícula.

      Aliás, podemos aqui considerar até que o Estado Português, ao não regulamentar a situação relativa aos motocultivadores, como já o impunha o artigo 117º, n.º 3, do Código da Estrada vigente à altura, comete omissão grave do seu dever de legislar neste campo, como lhe é imposto pela Directiva 84/9/CEE, do Conselho, de 30-12-1983, no que toca a estas situações, pelo que até o próprio Estado pode incorrer em responsabilidade.

      Isto posto:

      A circulação rodoviária é uma actividade perigosa pelo que está sujeita a regras de conduta plasmadas no Código da Estrada a que todos devem obediência.

      Assim, e em caso de acidente de viação, cabe em 1º lugar averiguar se existiu violação ou não de uma norma estradal, e, no caso de existir violação, se esta pode ser imputada ao agente a título de culpa (dolo ou negligência).

      Ora, da prova produzida nos autos resulta que o acidente se deve a culpa exclusiva do condutor do motocultivador, que, com negligência, violou as mais elementares normas estradais, nomeadamente a obrigação de cedência de passagem imposta pelo artigo 31º, n.º 1, alínea a), do Código da Estrada vigente à altura.

      Quanto aos danos a indemnizar?

      […]

      Ora, passando aos danos efectivamente comprovados, temos o seguinte:

      […]

      V - Decisão:

      Pelo exposto, condeno os Réus B. e Fundo de Garantia Automóvel, solidariamente, a pagar ao autor a quantia de:

      - € 49.879,79 (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos) pelo dano corporal emergente da amputação do membro inferior direito;

      - € 37.409,87 (trinta e sete mil quatrocentos e nove mil e oitenta e sete cêntimos) a título de danos futuros;

      - € 29.927,87 (vinte e nove mil novecentos e vinte sete euros e oitenta e sete cêntimos) pelos danos morais sofridos;

      - € 769,67 (setecentos e sessenta e nove mil e sessenta e sete cêntimos) a título de danos patrimoniais,

      Acrescidas, tais quantias, de juros de mora à taxa legal desde a data da citação até integral pagamento

      Quanto aos danos materiais, e relativamente ao FGA, há que deduzir a franquia de 229, 28 € - artigo 21º do DL n.º 522/85.

      No mais vão os RR absolvidos.

      […]

      Declara-se inconstitucional a norma do artigo 21º, n.º 1, do DL n.º 522/85, de 31-12, por violação do preceituado no artigo 13º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (princípio da igualdade).

      […].

      Desta sentença – e na medida em que nela “se recusou a aplicação dos ditames do artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, por violação do artigo 13º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa” - interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 571).

      O recurso de constitucionalidade foi admitido por despacho de fls. 585.

      Nas alegações, sustentou o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional o seguinte (fls. 600 e seguintes):

      […]

      O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da decisão, proferida no Tribunal Judicial de Leiria, na acção indemnizatória por acidente de viação intentada por A., na parte em que julgou inconstitucional a norma constante do artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, considerando que a exclusão da responsabilidade civil do Fundo de Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros por viatura agrícola, não sujeita a matrícula, e cujo proprietário está legalmente dispensado da obrigação de celebrar contrato de seguro obrigatório, afronta o princípio constitucional da igualdade.

      Percorrendo as normas relevantes para a dirimição do caso, verifica-se que no acidente a que a acção se reporta teve intervenção um veículo agrícola – dispensado de obrigatoriedade de matrícula, nos termos do nº 3 do artigo 117º do Código da Estrada – e cujo proprietário não se encontrava sujeito à obrigatoriedade de segurar a respectiva responsabilidade civil face aos lesados, nos termos previstos no nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 522/85, precisamente por estar em causa “máquina agrícola não sujeita a matrícula”.

      Por sua vez, tal regime implica que – em termos previstos no artigo 21º, nº 1, do citado Decreto-Lei nº 522/85 – o FGA não seja responsável pelas indemnizações devidas aos lesados, já que tal responsabilidade aparece condicionada, quer à “matrícula” do veículo terrestre a motor em Portugal, quer à exigência de que se trate de veículo “sujeito ao seguro obrigatório” (condições que, como se viu, se não verificam no caso sub judicio).Como é evidente – e dá nota a sentença recorrida – tal regime normativo implica uma completa desprotecção dos lesados em acidentes originados pelos referidos veículos agrícolas, prejudicando, de forma...

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