Acórdão nº 0645774 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 16 de Maio de 2007

Magistrado ResponsávelLUÍS GOMINHO
Data da Resolução16 de Maio de 2007
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Acordam, em conferência, na Secção Criminal da Relação do Porto: I - Relatório: I - 1.) Inconformado com a decisão instrutória proferida a fls. 462 a 482 destes autos, na parte em que não se verificou pronúncia do arguido B………. pela prática de um crime de omissão de auxílio e bem assim na que se entendeu que o mesmo, com a sua conduta, cometeu um único crime de ofensa à integridade física negligente, recorreu o Ministério Público para esta Relação, que na sintetização das razões da sua irresignação apresentou as seguintes conclusões: 1.ª - Não existe qualquer razão para que no concurso de crimes cometidos com negligência inconsciente se afastem as regras contidas no art. 30.º do Código Penal; 2.ª - Este preceito que consagra o chamado critério teleológico para distinguir entre a unidade e pluralidade de infracções não faz distinção entre o dolo e a negligência ou entre a negligência consciente e inconsciente; 3.ª - O princípio da culpa não afasta a pluralidade de infracções pois se o agente devia prever as consequências da sua actuação, tal dever também se verifica em relação a um ou vários resultados; 4.ª - Esta posição, defendida pela doutrina, tem sido também seguida em diversas decisões dos Tribunais Superiores; 5.ª - Tendo em conta os factos pelos quais o arguido foi acusado e pronunciado, não pode deixar de considerar-se que o mesmo praticou não um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 148.º, n.ºs 1 e 3, com referência ao art. 144.º, alínea a) e b) do Código Penal, mas três crimes de ofensa à integridade física por negligência, p. e p., um deles pelo art. 148.º, n.º 1 do Código Penal e os outros dois pelo art. 148.º, n.º 3 do Código Penal.

6.ª - Nos autos está suficientemente indiciada a prática pelo arguido de um crime de omissão de auxílio p e p. pelo art. 200.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal.

7.ª - A esta conclusão se chega quer se considere apenas as declarações do arguido e da testemunha por ele indicada, quer se tenha em atenção somente o declarado pela testemunha C……….a e D………. .

8.ª - Efectivamente, está suficientemente indiciado que após o embate as vítimas estavam em estado de grave necessidade pois estavam feridas, dentro do veículo, gemendo de dores, situação de que o arguido se apercebeu; 9.ª - De acordo com as declarações da testemunha C………., confirmadas em parte por D………., B………. abandonou de imediato o local, em passo acelerado, não providenciando por qualquer socorro às quatro vítimas; 10.ª - Mas ainda que tivesse actuado conforme por si referido em inquérito (limitando-se a pedir a alguém que chamasse uma ambulância) o arguido teria incorrido no aludido crime de omissão de auxílio; 11.ª - Efectivamente, o arguido não se aproximou das vítimas, não falou com elas verificando se as mesmas necessitavam de alguma coisa, não ofereceu ajuda para as tirar do veículo e nem sequer se assegurou que a ambulância tinha chegado e que os ofendidos eram socorridos, abandonando o local antes disso; 12.ª - O "afastamento de perigo" referido no art. 200.º do Código Penal engloba as situações em que a violação da integridade física já ocorreu, mas cuja extensão ou possíveis futuras consequências se não tomem perceptíveis a quem se depare com a situação em causa, como acontece no caso dos autos; 13.ª - O arguido não prestou o auxilio necessário ao afastamento do perigo e de que era capaz.

14.ª - Na decisão instrutória proferida, pronunciando o arguido apenas por um crime de ofensa à integridade física por negligência, e não se pronunciando o mesmo pelo crime de omissão de auxilio, violou-se o preceituado no art. 30.º, art. 148.º, n.ºs 1 e 3, 200.º, n.ºs 1 e 2 todos do Código Penal e art.ºs 283.º, n.º 2 e 308.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Penal.

Nestes termos, deve o despacho recorrido ser revogado, determinando-se a sua substituição por outro que contemple a pronúncia do arguido relativamente a um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo art. 200.º, n.ºs 1 e 2, e de três crimes de ofensa à integridade física por negligência, um deles p. e p. pelo art. 148.º, n.º 1 e dois p. e p. pelo art. 148.º, n.ºs 1 e 3 (um com referência à al. a) e outro à al. b) do art. 144.º), todos do Código Penal.

I - 2.) Não foi apresentada resposta.

II - Subidos os autos a esta Relação, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer sustentando o provimento do recurso.

*No cumprimento do preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, nada mais foi produzido.

*Seguiram-se os vistos legais.

*Tendo lugar a conferência.

Cumpre pois apreciar: III - 3.1.) De harmonia com as conclusões apresentadas, suscita o recorrente Ministério Público para apreciação desta Relação, duas questões: - Uma primeira de índole essencialmente doutrinal, que se traduz em saber, se nos crimes negligentes em que com o mesma acção tenham sido produzidas lesões corporais na integridade física de diversas pessoas, se deve computar apenas um crime ou tantos crimes quantas as pessoas ofendidas; - Depois, uma outra, de natureza mais factual, conexa com a existência ou não, de indícios suficientes da prática, por parte do arguido, de um crime de omissão de auxílio.

III - 3.2.) Como temos por habitual, vamos conferir antes que tudo, os trechos mais relevantes da decisão recorrida: (…) 1. O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido B………., imputando-lhe a prática em autoria material, e em concurso efectivo, de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, previstos e punidos pelo artigo 148.º, n.ºs 1 do Código Penal, de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, previstos e punidos pelo artigo 148º, n.ºs 3 do Código Penal, e de um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo artigo 200.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal (de facto só por mero lapso terá sido omitido, a fls. 320, o artigo 200.º).

(…) 2. O mencionado arguido B………., inconformado com a dedução da acusação pelo crime de omissão de auxílio, veio requerer a abertura de instrução, alegando, em síntese, que após o acidente ficou em estado de choque, e que pediu a uma pessoa que o acompanhava para se dirigir ao veículo onde se encontravam os ofendidos. Além disso, logo de seguia acorreram ao local do sinistro várias pessoas que se encontravam nas proximidades. Conclui que não lhe pode ser imputado o citado crime.

(…) 4. A instrução, como fase intermédia entre o inquérito e o julgamento «visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» (art. 286.°, n.º 1, do CPP).

(…) Finda a instrução, o juiz deverá proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia - art. 307°, n.º 1.

A opção por um ou por outro prende-se com o facto de, até ao encerramento da instrução, se ter logrado ou não recolher indícios suficientes de se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança - arts. 308.°, n.º 1 e 283.º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Penal.

Efectivamente, nesta fase não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas, tão-só indícios de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido, sendo certo que a decisão a proferir nesta fase não é uma decisão jurisdicional de mérito, mas apenas um juízo sobre a acusação, em ordem a verificar da admissibilidade da submissão do arguido a julgamento, com base na acusação que lhe é formulada - Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 13ª ed., pág. 584. Trata-se, pois, de uma mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento.

Deve, assim, o juiz de instrução compulsar e ponderar toda a prova recolhida e fazer um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.

No fundo, a fase de instrução permite que a actividade levada a cabo pelo Ministério Público durante a fase do inquérito possa ser controlada através de uma comprovação, por via judicial, traduzindo-se essa possibilidade na consagração, no nosso sistema, da estrutura acusatória do processo penal, a qual encontra assento legal no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

Por isso, a actividade processual desenvolvida na instrução é materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações - ac. RL de 12.07.1995, CJ XX-IV-140 e Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 128.

Na medida em que o artigo 308.º, n.º 1, do CPP, condiciona o proferimento de uma decisão de pronúncia do arguido à existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena, impõe-se que, antes de mais, precisemos o conceito de indícios suficientes.

Para lograr tal desiderato, podemos lançar mão, desde logo, da noção avançada pelo legislador no art. 283.º, n.º 2, do CPP, quando considera «suficientes os indícios sempre que deles resultar a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».

Esta fórmula foi influenciada pela orientação da doutrina e da jurisprudência que, uniformemente, entendiam que eram bastantes os indícios quando estivesse presente um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticara os factos incrimináveis que lhe eram imputados; por outras palavras, os indícios suficientes reconduziam-se aos vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações - suficientes e bastantes - para convencer que havia crime e que o arguido era por ele responsável.

Assim, para proferir despacho de pronúncia não é preciso uma certeza da existência da infracção; exige-se, tão-só, que os factos indiciários sejam bastantes e suficientes, ou seja, que, uma vez logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade séria da prática pelo mesmo do crime que lhe é imputado.

Em suma: os...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT