Acórdão nº 0615753 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 07 de Fevereiro de 2007

Magistrado ResponsávelGUERRA BANHA
Data da Resolução07 de Fevereiro de 2007
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Acordam, em audiência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I 1. Nos presentes autos de processo comum nº …/04.7TAPNF, vindos da .ª Vara Criminal do Círculo do Porto, por acórdão de 6-07-2006, a fls. 304-311, foi condenado o arguido B……….: a. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217º, nº 1, 218º, nº 2, al. a), e 73º, nº 1, als. a) e b), do Código Penal, na pena de 15 meses de prisão; b. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de descaminho de objecto colocado sob o poder público, previsto e punido pelo artigo 355º do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão.

  1. Em cúmulo jurídico das referidas penas, foi o arguido condenado na pena única de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos.

    1. Desta sentença recorreu o arguido para esta Relação, formulando as seguintes conclusões: 1º. A condenação do arguido - por convicção - resultou de um conjunto de mal entendidos, cujo colectivo não logrou deslindar na sequência da produção da prova.

      1. Não ficou provado que o arguido tenha recebido qualquer auto de apreensão da viatura, assim como não ficou provado que os agentes da GNR tenham advertido expressamente o arguido das cominações em que incorreria se vendesse e/ou por qualquer forma a onerasse enquanto se mantivesse a apreensão.

      2. O tipo legal previsto e punido pelo art. 355º do Código Penal em vigor tem como elemento típico essencial que o agente destrua, danifique, inutilize ou subtraia o objecto ... apreendido, não se incluindo na descrição do corpo do artigo uma conduta que preencha o conceito de descaminho que consta da respectiva epígrafe.

      3. Dos factos provados parece não se poder preencher o conceito de direito que envolve o tipo pelo qual o arguido veio a ser condenado, isto é, pelo descaminho.

      4. Não se pode aferir com precisão penal relevante que o arguido tenha destruído, danificado, inutilizado ou subtraído a viatura identificada nos autos, e muito menos que o possa ter feito com a intenção de frustrar a finalidade de uma apreensão.

      5. Não tendo ficado provado que ao arguido tenha sido entregue qualquer auto de apreensão da viatura - que este se recusou a assinar - e que este tenha sido expressamente advertido das cominações inerentes à situação de fiel depositário, nem sequer que este tenha como tal sido constituído, não se pode impor, sem mais, a existência do elemento volitivo fundamental, com expressão em conduta dolosa por parte do arguido recorrente.

      6. O que tem como consequência a inexistência desse elemento fundamental do tipo para que se possa subsumir a sua conduta a tal crime, ou a qualquer outro de que tal conduta pudesse decorrer - desobediência qualificada ou abuso de confiança.

      7. A fundamentação do douto acórdão em crise acaba por entender que o arguido praticou o crime de descaminho porque deve saber que não se pode conduzir um veículo automóvel sem seguro, e daí dever exigir-se-lhe que tivesse conhecimento da apreensão e respectiva cominação - cfr. 9º parágrafo da pagina 6 do acórdão recorrido.

      8. Trata-se de presunção que inverte o ónus da prova, violando-se dessa forma o princípio do acusatório, da presunção de inocência e do in dubio pro reo, com consagração na Lei constitucional e ordinária.

      9. O arguido somente poderia ter cometido o crime de burla contra o ofendido se soubesse e tivesse consciência que a viatura estava apreendida, se tivesse expressamente sido advertido da cominação para as consequências de violar os deveres de fiel depositário, e que, para além disso, tivesse com a sua conduta preenchido os requisitos que são exigidos para que se preencha o tipo.

      10. Inexiste o dolo específico da intenção volitiva de enganar com artifício e astúcia o ofendido para obter enriquecimento ilegítimo.

      11. Quanto a este aspecto, para além de se reproduzir tudo o alegado quanto à inexistência da consciência da cominação por violação de apreensão, sempre será relevante realçar a contradição e insuficiência de factos provados para que se tenha condenado o arguido pela prática deste crime.

      12. Os factos contidos nas alíneas i), j), l), n) e o) - que são os que poderiam conter matéria relevante - não têm relevância probatória suficiente para incriminar.

      13. Não é legítimo nem possível dar-se como provado o que consta na al. n) dos factos provados, sendo notória tal discrepância entre o ali dito e a realidade da experiência comum.

      14. Somente se poderia relevar tal afirmação - cuja premissa é inexistente - se os documentos em questão, ou, em tese, todos os documentos apreendidos ficassem nessa situação ad aeternum, isto é, se não pudessem deixar de estar nessa situação.

      15. Para levantar a apreensão dos documentos bastaria que se tivesse dado cumprimento a determinadas exigências de natureza administrativa que se vieram a demonstrar necessárias, e que o arguido não deu cumprimento logo de início, como já supra se disse, por via de exigências dos outros intervenientes no acidente que vieram posteriormente a tentar obter benefícios ilegítimos.

      16. Necessário seria ainda provar que o arguido sabia que tal apreensão era irreversível e inalterável, o que colide com outros factos provados, como sejam que o arguido afirmou expressamente ao ofendido que lhe entregaria os documentos, o que sempre foi sua intenção real aquando da venda.

      17. Os restantes factos provados, os quais apontam para uma conduta quanto muito omissa, leva-nos a concluir pela inexistência de qualquer artifício fraudulento para, com astúcia, enganar o ofendido.

      18. É que como contraprestação da quantia que recebeu pela venda, o arguido entregou a viatura que lhe pertencia, a qual tinha pago para revenda no âmbito da sua actividade comercial, isto é, não existe enriquecimento do arguido sem uma causa que a tivesse justificado, precisamente a compra e venda que celebrou com o ofendido, com as respectivas prestação e contraprestação - o que transporta a questão para o foro cível, aliás foro a que o ofendido recorreu, tendo sido ressarcido por via da procedência de acção por si proposta.

      19. O douto acórdão recorrido violou as disposições das als. a), b) e c) do nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal.

      20. Violou ainda o art. 355º do Código Penal e 117º e 118º do mesmo diploma legal.

      21. Violaram-se ainda os princípios da legalidade, da presunção de inocência, do acusatório e do in dubio pro reo, com relevância constitucional e na lei ordinária.

      22. Se interpretadas em conformidade, tais disposições legais deveriam conduzir a acórdão absolutório, impondo-se que tais deficiências sejam corrigidas por esse Venerando Tribunal.

      Pretende, assim, que seja revogado o acórdão recorrido e seja substituído por outro que, suprindo as suas deficiências e vícios, absolva o arguido dos crimes de que foi acusado.

    2. O Ministério Público respondeu à motivação do recurso, pronunciando-se no sentido de que os vícios a que alude o nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal só poderão ser atendidos se resultarem, evidentes e ostensivos, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que não ocorre; que os factos provados preenchem todos os elementos integradores dos dois tipos de crime por que foi condenado o arguido; que não faz sentido falar em violação do princípio in dubio pro reo, que é um princípio ligado à prova, e não à matéria de direito. Concluindo pelo não provimento do recurso.

    3. Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer que consta a fls. 357-358, em que aderiu àquela resposta do Ministério Público e acrescentou que, não tendo havendo registo de prova, não há como sindicar a relevância de eventuais contradições e discrepâncias, de molde a por em crise a livre convicção do julgador, e também não resulta do texto da decisão recorrida, mesmo que conjugada com as regras da experiência comum, a existência de qualquer dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do Código de Processo Penal. Também concluindo pelo não provimento do recurso.

      O recorrente foi notificado daquele parecer, nos termos e para os fins do disposto no nº 2 do art. 417º do Código de Processo Penal, tendo apresentado a resposta que consta a fls. 364-365, em que esclarece que o objecto do recurso não incide sobre a matéria de facto julgada provada, que considera definitivamente fixada, mas reafirma que no acórdão recorrido se verificam os vícios que expôs na motivação do recurso, reiterando ainda que os factos provados são insuficientes para condenar o recorrente pelos crimes de burla e de descaminho de objecto colocado sob o poder público.

      Os autos foram a visto dos Ex.mos Juízes adjuntos e, após, realizou-se a audiência.

      II 5. Na sentença recorrida foram considerados provados os factos seguintes:

  2. Em 24/09/2002, nas instalações da GNR/Porto, elementos desta corporação apreenderam o veículo BMW, de matrícula ..-..-HL, por meio da apreensão efectiva do livrete e do título de registo de propriedade do mesmo.

  3. Tal apreensão ocorreu por o veículo ter sido interveniente num acidente de viação no dia 08/09/2002, quando era conduzido por C………., conforme consta da participação de acidente de viação elaborada pelos elementos da GNR que compareceram no local e não ter seguro válido em qualquer seguradora.

  4. Na altura da apreensão, os elementos da GNR entregaram o veículo ao arguido - quando este se apresentou nas instalações daquela corporação, apresentando o seu "seguro de carta" e pretendendo que passasse a figurar como o condutor do veículo aquando do acidente - constituindo-o como fiel depositário do mesmo, sendo que ele se recusou a assinar o respectivo auto de apreensão.

  5. Dois dias depois, em 26/09/2002, na D………., nesta cidade, onde o arguido vendia automóveis e onde tinha o dito BMW guardado, compareceu o ofendido E………. que, na sequência de um anúncio, se mostrou interessado em adquirir o veículo e contactou o arguido para esse efeito.

  6. Então, o arguido logo...

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