Acórdão nº 0642462 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 08 de Novembro de 2006

Data08 Novembro 2006
ÓrgãoCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Acordam, em conferência, na Secção Criminal da Relação do Porto: I - Relatório.

I - 1.) Inconformado com o despacho judicial proferido em 21/02/2006 (cfr. fls. 246 a 252), nestes autos com o n.º ……./04.7TDLSB do Tribunal Judicial de Paredes, em que o Sr. Juiz, na sequência da instrução requerida pelo arguido B……….. decidiu pela sua não pronúncia, relativamente ao crime de abuso de confiança qualificado (art. 205.º, n.ºs 1, 4.º, al. b) e 5.º, do Cód. Penal) que lhe era imputado pela acusação pública, recorre o Ministério Público para esta Relação, para esse efeito sustentando as seguintes conclusões: 1.ª - O crime de abuso de confiança consiste no descaminho ou dissipação de qualquer coisa móvel, que ao agente tenha sido entregue, de forma lícita e voluntária, por título e com um fim que o obrigaria a restituir essa coisa ou um valor equivalente.

  1. - Por conseguinte, da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito, bem como na instrução, há-de resultar uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação, não bastando um mero juízo de carácter subjectivo, antes se exigindo um juízo objectivo fundamentado nas provas recolhidas.

  2. - O actual Código de Processo penal estabelece no seu artigo 283.º, n.º 1 que "se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público deduz acusação contra aquele". E, no n.º 2 do citado normativo legal, estabelece-se que "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança", tendo aplicação na Instrução por via do disposto no artigo 308.º do Código de Processo Penal.

  3. - Face à prova recolhida em sede de Inquérito e em sede de Instrução existem indícios suficientes de que o arguido praticou o crime em crise.

  4. - Da prova recolhida, não temos dúvidas, salvo o devido o respeito por opinião em contrário, que o arguido, no exercício das suas funções, sabia que tal dinheiro não era seu e que tinha recebido em razão da sua profissão e, quis apropriar-se dele para cobrir as despesas e dívidas resultantes da actividade comercial por si exercida com o estabelecimento comercial "C………..", preenchendo, desta forma, o elemento subjectivo do tipo, na forma de dolo directo.

  5. - A restituição da coisa ou a reparação do prejuízo não influi na culpa. Não são só os interesses da vítima que estão em causa na punição destes crimes patrimoniais, mas também, e sobretudo, razões de politica criminal, nomeadamente, razões de prevenção.

  6. - Assim, não podemos aceitar que a restituição ou reparação do prejuízo seja vista como uma causa de exclusão da culpa. A intenção do legislador não foi excluir a culpa, como fez entender o Exmo. Juiz de Instrução, foi sim, salvo melhor opinião, atenuar especialmente a pena em homenagem a um princípio vitimológico, como fundamento da consideração da vítima como principal destinatário da política criminal, sendo nesses precisos termos que deve ser entendido tal comportamento e não como refracção de uma qualquer disponibilidade do objecto do crime patrimonial conducente ao seu tratamento ainda em quadros subsidiários do direito privado.

  7. - Ao interpretar de modo diverso e ao não pronunciar o arguido, violou o despacho recorrido as disposições conjugadas dos artigos 205.º, n.º 1 e n.º 4, alínea b) e artigo 206.º, ambos do Código Penal e os artigos 308.º e 283.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.

    Deve assim o despacho recorrido ser, nessa parte, revogado e substituído por outro que pronuncie o arguido B………. pelos factos constantes da acusação que integram o crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 e n.º 4, alínea b) do Código Penal.

    I - 2.) Na sua resposta, o arguido B………… concluiu pela forma seguinte: 1.ª - Nos termos do artigo 205.º n.º 1 do Código Penal, apropriação significa fazer sua a coisa, integrá-lo no seu património, tornar-se proprietário.

  8. - O crime de abuso de confiança consuma-se com a apropriação, passando o agente a dispor da coisa como sua. O simples uso nos casos das contas (dinheiro) é insuficiente para integrar o elemento objectivo do crime, ou seja a apropriação.

  9. - Mais tarde teria que resultar da apropriação da coisa sem que houvesse intenção de restitui-la, acrescendo a tudo isto o dolo. Ora no caso sub judice, nada disto se passou (o arguido devolveu tudo o que usou e com autorização dos proprietários das contas).

  10. - O facto de o arguido ter tido sempre a intenção de restituir como o fez, exclui o dolo de apropriação, excluindo assim, o tipo subjectivo do crime de abuso de confiança.

  11. - Do apuramento da prova indiciária apurada quer em fase de inquérito quer em fase de instrução não resultam indícios suficientes da prática do crime de abuso de confiança pelo arguido, o que faz com que a probabilidade do mesmo vir a ser condenado em sede de julgamento seja menor do que o contrário.

  12. - Acresce a tudo isto que o arguido é pessoa de bem e muito considerado por todos os que o conhecem, nomeadamente os que lhe deram autorização para movimentar as suas contas, e que prestaram declarações em sede de instrução, reconhecendo tê-lo feito por nele confiarem na altura e continuando a confiar, pois mantêm negócios com o mesmo.

    Deve assim o despacho recorrido ser mantido e não ser o arguido pronunciado pelo crime pelo qual foi acusado pelo Ministério Público.

    II - Subidos os autos a esta Relação, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.

    * No cumprimento do preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, nada mais foi acrescentado.

    * Seguiram-se os vistos legais.

    * Teve lugar a conferência.

    III - 1.) De harmonia com as conclusões apresentadas, fácil será intuir, que a finalidade última prosseguida pelo recurso interposto pelo Ministério Público, tem em vista a pronúncia do arguido B………… pelo crime de abuso de confiança qualificado (valor consideravelmente elevado) cuja indiciação foi afastada pelo Sr. Juiz no despacho ora posto em crise.

    III - 2.) Vamos conferir o seu teor, na parte que aqui releva: «(…) Vejamos o caso sub judice e o que dos autos dimana.

    Na douta acusação proferida nos presentes autos é imputada ao arguido a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança qualificado, previsto e punido pelo art. 205°, n.º 1, 4 alínea b) e 5 do Código Penal.

    Refere-se, para tanto e em síntese, na douta acusação que o arguido, no exercício da actividade de subgerente da G………. (…..) e aproveitando as atribuições inerentes a tal cargo, começou a emitir diversos cheques pós-datados que uma vez vencidos davam origem a um descoberto, em virtude de não terem provisão.

    Para regularizar esta situação o arguido assinava outros cheques de outros bancos, que depositava na conta dos primeiros. Através deste procedimento o arguido ganhava dois a três dias para tentar resolver a situação através da atribuição de financiamentos.

    Porém, após a CGD ter deixado de aceitar esses depósitos de valor e de igual forma, e de igual forma recorrendo àquele cargo, o arguido decidiu utilizar contas de clientes particulares da agência onde trabalhava para depósito de cheques sacados por D………., com recurso à utilização de ATS's instaladas na mesma.

    Assim, o arguido efectuava o levantamento dos montantes em numerário ou através da emissão de cheques sobre o país, permitindo o aprovisionamento das contas sediadas no E………. e no F……….. .

    O arguido, utilizando aquelas contas de clientes particulares, iniciou um processo de rotação de valores que deu origem a um descoberto na ordem dos €180.000,00.

    Importa, antes de mais e apesar do que doutamente se escreveu no despacho ora colocado em crise, uma breve análise ao tipo legal de crime em apreço.

    Estatui o art. 205.º do Código Penal, sob a epígrafe "Abuso de confiança", que "(n.º 1) quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. (n.º 2) A tentativa é punível. (n.º 3) O procedimento criminal depende de queixa.

    (n. º 4) Se a coisa referida no n.º 1 for: a) de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias; b) de valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

    (n.º 5) Se o agente tiver recebido a coisa em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicia4 é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos".

    Como resulta claro do exposto, o tipo legal de crime imputado ao arguido é de natureza pública, sem desnecessário ou juridicamente irrelevante o exercício do direito de queixa, bastando a mera notícia do crime.

    Cai, por conseguinte, por terra, passe a expressão, o primeiro argumento invocado pelo arguido no seu requerimento de abertura da instrução.

    Quanto a este tipo legal de crime, escreve o Prof. Figueiredo Dias, in "Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 94 e ss., o seguinte: "abuso de confiança é, segundo a sua essência típica, apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio; é, vistas as coisas por outro prisma, violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção (por isso sendo este crime chamado, em várias ordens jurídicas de diferente linguagem, «apropriação indevida»). Daqui resulta que o crime de abuso de confiança, tal como o crime de furto, é um crime...

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