Acórdão nº 07P647 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 29 de Março de 2007

Magistrado ResponsávelPEREIRA MADEIRA
Data da Resolução29 de Março de 2007
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1.

A 2ª Vara Mista de Gaia, em 26/06/2006, condenou AA, devidamente identificado, como autor material de um crime de homicídio qualificado, p. p. artigos 131.º e 132.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 15 anos e 6 meses de prisão e na pena acessória de cassação da licença de uso e porte da arma de caça de que era titular, apreendida nos autos, a qual também foi declarada perdida a favor do Estado, com as respectivas munições».

Inconformado, o arguido recorreu à Relação do Porto que, no provimento parcial do recurso, em 29-11-2006, reduziu a pena, no quadro de um crime de homicídio simples, a 12 anos de prisão.

Foi então a vez de o Ministério Público se manifestar inconformado, pelo que recorre agora ao Supremo Tribunal de Justiça, em suma, pedindo a requalificação do homicídio como «qualificado» (alíneas h) e i) do n.º 2 do art. 132.º do CP: meio insidioso e frieza de ânimo) e a restauração da pena aplicada em 1.ª instância Respondeu o arguido em defesa do julgado.

Subidos os autos, foi impulsionada a sua remessa para julgamento.

As questões a decidir centram-se: 1. Na qualificação dos factos - homicídio simples ou qualificado? 2. Medida concreta da pena 2.

Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir, com mudança de relator, por vencimento do inicial.

Factos provados 1. Durante cerca de 25 anos, o arguido viveu, em situação análoga à dos cônjuges, com BB, tendo desta relação nascido um filho, CC, residindo todos na Rua da Estrada de Cima, em ..., Vila Nova de Gaia.

  1. Desde há alguns anos que o casal tinha discussões frequentes, chegando por vezes a agredir-se mutuamente, motivadas essencialmente por questões financeiras, uma vez que um filho do arguido, nascido de um anterior casamento, havia causado um desfalque na empresa de metalurgia do pai, o que gerou dificuldades financeiras ao agregado familiar deste.

  2. Por algumas vezes, BB afirmou que a casa onde habitava com o arguido e com o filho de ambos era dela, dizendo ao arguido que se fosse embora. BB, por várias vezes, referiu aos vizinhos que o arguido a agredia bem como a iria matar, tendo, no dia 16 de Agosto de 2005, exibido perante um vizinho a arma caçadeira dentro da respectiva caixa e dito "É com isto que ele me vai matar".

  3. O arguido e ela há mais de 12 anos que dormiam em quartos separados.

  4. O arguido é proprietário de uma espingarda caçadeira de marca SKB com o nº de série S..., de dois canos sobrepostos, que se encontrava registada, manifestada e licenciada em seu nome, e que utilizava na caça, uma vez que era caçador.

  5. Na noite de 15 para 16 de Agosto de 2005, o arguido montou a sua espingarda caçadeira, fazendo barulho com o qual acordou a companheira e o filho, tendo sido chamada a força policial por um vizinho. Nessa mesma noite, o arguido desmontou a caçadeira.

  6. No dia 16 de Agosto de 2005, o arguido, uma vez que era o aniversário do filho de ambos, convidou a companheira a almoçar fora, o que esta recusou, tendo ido o arguido apenas na companhia do filho. Nessa noite, o arguido e a sua companheira tiveram uma discussão, e, quando o arguido se preparava para beber vinho do Porto, a vítima tirou-lhe a garrafa e escondeu-a, tendo feito o mesmo em relação a uma segunda garrafa que o arguido foi buscar.

  7. Na madrugada de 17 de Agosto de 2005, cerca das 02:00, o arguido foi chamar o filho CC, que já se encontrava deitado, para dormir à beira dele.

  8. CC deitou-se à beira do pai, que adormeceu de imediato.

  9. Cerca das 04:00, o arguido foi buscar a caçadeira, que havia montado em momento que não se conseguiu apurar e deslocou-se ao quarto onde a companheira dormia sobre um colchão directamente deitado no chão.

  10. Junto aos pés do colchão onde a ofendida dormia, o arguido apontou a arma em direcção à zona do tórax da mesma e desfechou um tiro.

  11. Em consequência directa e necessária do tiro, a ofendida sofreu as lesões traumáticas, designadamente orifício de forma ovóide, localizado na parte anterior do hemitórax esquerdo e fractura com infiltração sanguínea dos bordos e tecidos adjacentes, do primeiro ao quinto arcos costais anteriores, à esquerda, e lacerações com infiltrações sanguíneas, múltiplas, de todo o coração, associado à presença de múltiplos chumbos, cujo trajecto seguiu da caixa torácica da frente para trás, da esquerda para a direita e de cima para baixo. As lesões descritas foram causa directa da sua morte.

  12. Após ter disparado sobre a companheira, o arguido deu um tiro nele próprio que lhe causou um leve ferimento que não careceu de tratamento hospitalar.

  13. O arguido agiu com o propósito, que logrou alcançar, de retirar a vida à ofendida.

  14. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, agindo de modo livre e consciente.

  15. Em sede de audiência de discussão e julgamento, o arguido assumiu ter disparado um tiro da sua caçadeira sobre a ofendida nas circunstâncias de tempo e lugar referidas.

  16. O arguido sempre teve bom relacionamento com vizinhos e conhecidos.

  17. Antes de preso, o arguido era empresário do ramo da metalurgia.

  18. Tem dois filhos de um casamento anterior, um com 34 e outro com 35 anos.

  19. Tem uma boa relação com o filho CC, preocupando-se com o seu bem-estar.

  20. Na cadeia, desempenha o cargo de chefe dos faxinas e chefe de camarata.

  21. Recebe visitas da família e do filho. Tem a 4.ª classe, tendo começado a trabalhar aos 11 anos.

  22. Não tem antecedentes criminais.

    Factos não provados Não se provou: a) Que o arguido consumisse álcool de forma excessiva; b) Que, em face do mau relacionamento entre o arguido e a ofendida, aquele tenha decidido tirar-lhe a vida; c) Que, na prossecução do objectivo identificado em 2) dos factos provados, o arguido, durante a noite de 15 para 16 de Agosto de 2005, tenha montado a espingarda caçadeira de que era proprietário e descrita em 6), para que a mesma se encontrasse em condições de ser imediatamente utilizada na altura em que pretendesse consumar a morte da companheira; d) Que os factos provados referidos em 13) e 14) tenham ocorrido às 02h00 do dia 17 de Agosto de 2005; e) Que o arguido tenha propositadamente escolhido para matar a sua companheira uma altura em que esta dormia, para que desse modo não reagisse ou esboçasse qualquer defesa com vista a tornar mais fácil a obtenção dos seus intentos, com premeditação de meios e persistência da vontade de a matar por mais de 24 horas; f) Que a ofendida BB fosse pessoa muito nervosa e depressiva; g) que a ofendida BB tenha adoptado vários comportamentos com a intenção de levar o arguido a abandonar a casa em que habitavam; h) Que a ofendida BB provocasse de forma sistemática atritos e discussões com o arguido e que o insultasse de "bebedola", "porco" e "filho da puta"; i) Que a ofendida dissesse ao arguido que "fosse buscar o dinheiro a quem o roubou", que a casa era dela e ele ali nada mandava, dizendo ainda que "lhe iria tramar a vida" e "havia de o ver na cadeia"; j) Que a ofendida tenha dito aos vizinhos e demais pessoas com quem se relacionava que o arguido não lhe dava dinheiro para as necessidades de casa, passando a pedir emprestado dinheiro a vizinhos e conhecidos para a compra de alguns utensílios; l) Que as agressões físicas mútuas fossem iniciadas pela ofendida.

    Nesta matéria de facto não se vislumbram vícios capazes de afectarem a sua validade, mormente os referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, motivo por que se tem por definitivamente adquirida.

    A qualificação dos factos Sobre este ponto discorreu o tribunal recorrido: «(…) Argumenta o recorrente que não decorre da factualidade provada qualquer circunstância reveladora de especial censurabilidade ou perversidade, nem o tribunal recorrido a conseguiu localizar no âmbito das diversas alíneas do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal, e, por isso, o crime praticado é, apenas, o do tipo do art. 131.º do Código Penal. Vejamos. O arguido estava acusado da prática de um crime de homicídio qualificado pela verificação das circunstâncias referida nas al.s d), g) e i) do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal, no pressuposto de que teria agido: "sem qualquer motivo válido para o fazer", o que se fez equivaler a "motivo fútil" referido no segmento final da al. d); "com premeditação de meios e persistência da vontade de matar por mais de 24 horas", a que alude o segmento final da al. i); e mediante a utilização de "meio particularmente perigoso", por referência à arma do crime, a que alude a al. g). O acórdão recorrido, depois de caracterizar a norma do n.º 1 do art. 132.º do Código Penal como um "especial tipo de culpa" e as situações descritas nas diversas alíneas do nº 2 do mesmo artigo como "exemplos-padrão" de circunstâncias susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade, neste domínio citando os ensinamentos de Figueiredo Dias, apreciou cada uma daquelas três situações apontadas pelo Ministério Público na acusação como qualificativas do homicídio, para concluir do seguinte modo: "Assim, não resta senão concluir que o arguido não preencheu com a sua conduta qualquer uma das alíneas enunciadas, reveladora de especial censurabilidade ou perversidade. Acresce que a conduta do arguido também não encontra acolhimento em nenhuma das restantes alíneas do referido n.º 2 do art. 132.º do Código Penal". Ponderando, não obstante, o carácter meramente exemplificativo das hipóteses prefiguradas no nº 2 do art. 132º do Código Penal, considerou, na linha do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2005 (...), que (...) "podem ocorrer situações que, embora não consagradas em qualquer das alíneas do n.º 2 do art. 132.º, sejam reveladoras de uma especial censurabilidade ou perversidade traduzidas num especial juízo de censura formulado sobre o agente, que muitas das vezes têm que ver com o modo de execução do crime". Trata-se, como se vê, de uma interpretação do preceito do art. 132.º do Código Penal que é aceite como pacífica na doutrina e na jurisprudência. Em abstracto, a...

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