Acórdão nº 1303/09.4 PBLRA.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 06 de Abril de 2011

Magistrado ResponsávelBRÍZIDA MARTINS
Data da Resolução06 de Abril de 2011
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam, em conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

* I – Relatório.

1.1. Nos autos de instrução em causa, nos quais se mostra requerente o assistente GS...

, e requerido o arguido AH...

, ambos já devidamente identificados, foi proferida decisão instrutória, a fls. 351/367, com data de 28 de Setembro de 2010, que não pronunciou o arguido.

Decisão esta proferida findo o decurso da fase de instrução cuja abertura o assistente requerera no intuito de infirmar o despacho de arquivamento que o Ministério Público exarara relativamente a uma queixa que apresentara contra o dito arguido, alegadamente incurso na prática de factualidade consubstanciadora da autoria material consumada de um crime de furto qualificado, previsto e punido através das disposições conjugadas dos art.ºs 203.º e 204.º, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal.

1.2. O assistente irresignado interpôs recurso pugnando pela revogação dessa decisão e sua substituição por outra que pronuncie o arguido pelo denunciado crime de furto qualificado (por lapso manifesto, mencionou “homicídio por negligência”!), apresentando 74 conclusões, as quais todavia se podem, essencialmente, resumir no seguinte: 1. A matéria de facto dada como provada na decisão recorrida não se mostra consentânea com a produção de prova que foi feita, quer na primitiva fase de inquérito, quer ulteriormente já na presente fase de instrução.

  1. Embora o despacho recorrido tenha começado por fazer o saneamento do processo, considerando não haver nulidades ou questões prévias e, seguidamente, passado a conhecer sobre o mérito do requerimento instrutório, tendo concluído pela não pronúncia do arguido, 3. Certo é que omite, no entanto, e completamente, a decisão fáctica, isto é, não descreve nem especifica quais os factos do requerimento instrutório que considera suficientemente indiciados e os que não considera suficientemente indiciados.

  2. Só após essa enumeração é que se poderia seguir a tarefa de decidir se os factos indiciados eram ou não suficientes para a sujeição do arguido a julgamento pelo crime imputado.

  3. O cumprimento dessa exigência é essencial para a fixação dos efeitos do caso julgado da decisão de não pronúncia, ficando o valor deste despacho, consequentemente, afectado por via de tal omissão.

  4. Sendo assim, a decisão recorrida padece de irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente, por aplicação ao caso do disposto no artigo 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

  5. O despacho de não pronúncia de que ora se recorre, está enfermo de contradição, na medida em que a prova produzida no inquérito e na instrução, impunham decisão diversa da constante do despacho recorrido.

  6. De acordo com o disposto no artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a fase de instrução termina com a prolação do despacho de pronúncia sempre que, da prova recolhida no inquérito e nas diligências instrutórias, resultarem indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.

  7. Critério que é concretizado no artigo 283.º, n.º 2, aplicável ex vi do n.º 2 daquele artigo 308.º, no sentido de que os indícios devem ser considerados suficientes sempre que deles resultar a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

  8. Juízo de probabilidade sobre a verificação dos elementos objectivos dos tipos de crime (únicos que importam considerar para efeito da decisão instrutória) que, no presente caso, face aos elementos de prova recolhidos em inquérito e na instrução, deve considerar-se completamente assegurado, relativamente ao crime denunciado pelo recorrente e a que respeita este recurso.

  9. Verifica-se que a prova testemunhal e documental constante dos autos não deixa persistir quaisquer dúvidas sobre o preenchimento dos elementos objectivos deste crime.

  10. Ficou cabalmente demonstrado que o carro [ZP... de matrícula ...] foi comprado pelo assistente.

  11. Vejam-se os depoimentos das testemunhas mencionadas ao longo da motivação, que confirmaram que quem comprou o veículo foi o assistente, quem escolheu o carro foi o assistente, e que o arguido nunca compareceu no stand de vendas onde o assistente comprou o dito carro – veja-se a venda a dinheiro junta aos autos a fls. 22 –.

  12. O M.mo Juiz a quo preferiu dissertar acerca do que as testemunhas disseram, e interpretar tais depoimentos de forma que se tem por inadequada, sem pronunciar o arguido.

  13. Na verdade, do decurso da instrução resulta provado que quem comprou efectivamente o carro foi o assistente.

  14. Resulta provado também ser ele o seu proprietário.

  15. Sendo quem detinha a sua posse, tendo efectivamente praticado actos de gestão, manutenção e utilização, de forma pública e pacífica.

  16. Até o arguido haver decidido furtá-lo para si, o carro que não era seu, facto que conhecia.

  17. Também resulta dos depoimentos colhidos que a forma que o arguido acordou com o pai do assistente para pagar uma dívida da venda de um barracão, era efectivamente aquele pagar o veículo ao assistente.

  18. Porque o assistente na data em que o arguido acordou com o seu pai a forma de liquidação da sua dívida, andava à procura de um carro.

  19. Como o pai do assistente não tinha forma de poder pagar o carro que lhe (ao seu filho) tinha prometido, resolveu então acordar com o arguido não receber o valor em falta da venda do barracão, desde que o arguido pagasse o valor do carro escolhido pelo assistente.

  20. Foi o arguido quem negociou o seu próprio financiamento junto da entidade bancária para poder pagar o carro ao assistente.

  21. Foi ele que contratou com a entidade financiadora um empréstimo com juros mais caros do que o normal, como o próprio se queixou nas declarações que prestou.

  22. No despacho recorrido, o M.mo Juiz não valorou correctamente os depoimentos das testemunhas arroladas pelo assistente, e do próprio assistente, que se mostraram isentas e conhecedoras de toda a matéria factual, e sem pertencerem à família do assistente.

  23. O M.mo JIC deu como provado, com o depoimento do irmão do arguido, uma conversa que diz que ouviu deste, sendo certo que “o quando” não soube precisar, que o assistente pagou àquele duas prestações.

  24. Tal não é mais do que um disparate, pois o assistente não pagou ao arguido qualquer quantia, muito menos referente às prestações do carro.

  25. Isto porque é claro, o assistente nada deve ao arguido.

  26. Mas sim o contrário.

  27. O arguido, quando prestou declarações, referiu que o assistente lhe entregara uma letra.

  28. A afirmação foi negada pelo assistente, aquando das suas declarações, referindo este, que desconhecia qualquer letra na posse do arguido, bem como a assinatura que dela constava, quando confrontado com a fotocópia singela do documento.

  29. Qual terá sido a motivação do M.mo JIC, quando considera provado que o assistente pagou ao arguido duas prestações – cujo valor não refere, nem a forma de pagamento, nem a data – e entregou uma letra – impugnada pelo assistente? 31. Após a produção da prova, o M.mo JIC não podia ter feito “suposições”.

  30. Apenas e antes se deve limitar a demonstrar o que está ou não provado – de direito e de facto – e fundamentar, o que não se verificou, in casu.

  31. Motivo pelo qual o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que pronuncie o arguido pelo cometimento de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos art.ºs 203.º e 204.º, alíneas a) e b), do Código Penal.

  32. Mas, mesmo a subsistir tal despacho, verdade é que o arguido não poderia ter agido como agiu.

  33. Isto porquanto à face do nosso ordenamento jurídico, não é permitido fazer justiça própria, ou melhor dizendo, fazer justiça com as próprias mãos.

  34. O assistente refere no seu requerimento de abertura de instrução, e o arguido confessou aquando da sua inquirição, que o arguido aproveitou o facto de se encontrar com o assistente no escritório do mandatário do assistente numa reunião, para mandar vir um reboque e levantar o carro que na altura estava na posse do assistente.

  35. Tal facto consubstancia-se num ilícito, que, mesmo que não se venha dar como provado ter existido, existem outras formas legais, para resolver essas questões; 38. Sucede que o M.mo Juiz a quo, ao arrepio do que devia ter feito, não apreciou essa questão suscitada pelo assistente, nem todas as provas constantes do processo, pois não considerou as que não constam da instrução.

  36. A decisão recorrida não contém um único facto concreto susceptível de revelar, informar e fundamentar a real e efectiva situação que determinou a não pronúncia do recorrido.

  37. Ademais do disposto nos art.ºs 307.º e 308.º, ambos do Código de Processo Penal, tal decisão violou ainda o disposto nos art.ºs 13.º; 27.º; 28.º; 32.º; 202.º, n.º 2; 204.º e 205.º, todos da Constituição da República Portuguesa.

    1.3. Dado cumprimento ao disposto no art.º 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, responderam quer o Ministério Público, quer o arguido, sustentando ambos dever prevalecer a decisão recorrida.

    1.4. Proferido despacho admitindo o recurso, foram os autos remetidos para esta 2.ª instância.

    1.5. Aqui, com vista respectiva, nos termos do art.º 416.º, n.º 1, do mesmo diploma adjectivo, a Ex.ma Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer conducente a idêntica manutenção do decidido, vale por dizer, de improvimento do recurso.

    1.6. Acatado o estatuído pelo subsequente art.º 417.º, n.º 2, nada disse o recorrente.

    No despacho a que alude o n.º 6 deste mesmo inciso, consignou-se que nenhuma circunstância sobrevinha impondo a sua apreciação sumária, e, igualmente, nada obstava ao conhecimento de meritis. Daí que devessem prosseguir os autos, com recolha de vistos e submissão à presente conferência.

    Urge, pois, ponderar e decidir.

    * II.

    Fundamentação.

    2.1. Relevante para a ponderação ora reclamada, o excerto seguinte da decisão recorrida, que passamos a descrever: “3. Fundamentação.

    Dispõe o art.º 286.º...

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